When I Dreamed escrita por Shiroyuki


Capítulo 4
Capítulo 4. sound and video




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4. sound and video

 

Eros.

Yuuri já havia ouvido a música na repetição automática pelo menos uma dezena de vezes só naquele dia. Já havia decorado cada acorde de violão, cada momento acelerado e cada mudança de tom daquela música. Era cheia de vigor, energia e presença. Yuuri não combinava com nada disso.

Ele não sabia como ser sexy, como seduzir uma plateia e envolver as pessoas com somente os movimentos do seu corpo. Não importava o que Phichit e o resto do mundo pensassem sobre aquela maldita festa e o pole dance no poste de luz, aquele evento isolado e absolutamente único não significava nada na sua carreira como dançarino. Se é que o que ele tinha podia ser chamado de carreira. E se apresentar bêbado estava completamente fora de questão, muito obrigado pela ideia, Phichit.

Como raios Minako esperava que alguém como Yuuri, que, no auge dos seus 22 anos nunca havia tido um relacionamento sequer, que dirá a experiência sexual que aquela performance exigia, fosse conseguir sozinho incorporar o espírito da sedução e dar àquela música o tom pretendido? Ele não conseguia imaginar.

O mais próximo que Yuuri já havia chegado de ter um contato romântico com alguém havia sido no primeiro ano do ensino médio, quando ele começou a sair com uma garota da sua turma de álgebra, a única outra asiática do seu ano. Eles andavam de mãos dadas, saíam para comer juntos e ir no cinema. Yuuri tentou beijá-la uma vez, e foi desastroso e embaraçoso, e ele preferia não lembrar. Eles terminaram logo depois desse incidente e nunca mais conversaram. Não era uma lembrança boa de se carregar.

Yuuri tinha consciência de que não se sentia atraído apenas por garotas, mas nunca tentou fazer nada para explorar esse outro lado. Alguns (poucos) garotos já haviam se aproximado dele com essa intenção, e, mesmo que ele não se incomodasse exatamente, nunca havia se sentido à vontade o bastante para avançar e investir em qualquer coisa. Estava bem daquele jeito, afinal.

E, por fim, havia os sonhos. Mas esses não contavam. Provavelmente.

— Se eu ficasse doente até o mês que vem talvez não precisasse inventar uma desculpa para fugir da Minako… – Ele pensou, alto demais, enquanto terminava de preparar um sanduíche, na bancada da cozinha. – Ela não vai deixar eu me livrar disso a não ser que eu esteja no meu leito de morte...

—  Nem ela, nem eu! – Phichit estava ali, e Yuuri nem tinha o notado se aproximar. Ele se aproximou pela lateral e surrupiou o sanduíche recém-feito, sem ligar para o protesto do outro. Escorou-se no balcão do outro lado, comendo tranquilamente enquanto Yuuri começava a fazer outro sanduíche para si, conformado. – Você vai ser a estrela dessa apresentação, Yuuri, confie em mim. Vai ser um sucesso. Eu sei que você consegue.

—  Vocês dois devem estar bebendo no mesmo lugar, pra estar com essas ideias. Eu nem sei como começar a pensar em alguma forma de representar essa música. É complexo demais para mim, eu não consigo entender de jeito nenhum o sentimento. Não vou convencer ninguém. – Ele desabafou, colocando o dobro de queijo no sanduíche só de raiva. Phichit mastigava, olhando para o teto da cozinha, analisando alternativas.

—  Você podia… ver vídeos pornô?

— Argh, Phichit, não! – Yuuri não sabia nem por onde começar a rechaçar aquela sugestão estapafúrdia. Phichit deu de ombros, sem mais alternativas.

— A única coisa que eu consigo pensar então é para você usar a imaginação. Você nunca, sei lá, pensou em seduzir ninguém? Aquele cara na fila do refeitório que você achou bonito uma vez, por exemplo?

— Eu achei ele bonito, não significa que eu quisesse… fazer qualquer coisa com ele! Isso é até esquisito, eu não consigo pensar essas coisas de alguém que nem conheço. – Yuuri explicou. Phichit assentiu com a cabeça, entendendo perfeitamente o cerne da questão. Yuuri sempre havia sido reservado, e ele não esperava que o amigo mudasse apenas por causa de uma apresentação, não importando o quanto fosse importante. Mas isso não ajudava em nada, nesse caso.

— Podemos procurar alguns filmes? Algo com tipo… Richard Gere, Orlando Bloom, ou sei lá quem você acha sexy? Assim você pode estudar, e eu, sair do tédio enquanto te ajudo. Que tal 50 Tons de Cinza? Ou você prefere algo mais subjetivo... Acho filmes de máfia super sensuais, que tal? Poderoso Chefão, hm, o que me diz?

— Você acha o Don Corleone sexy? – O ar de incredulidade de Yuuri era indisfarçável. Phichit deu de ombros, dando mais uma mordida no sanduíche roubado.

— Talvez? Pode ser o sotaque. O Al Pacino eu acho, com certeza! – Phichit notou a falta de compreensão no semblante do amigo. – Ok, eu tenho gostos peculiares, você não entenderia. Só estou tentando ajudar…

Yuuri olhou para o sanduíche na sua mão por alguns segundos, e voltou a colocá-lo no prato à sua frente. Parecia estar pensando seriamente na questão.

— Eu não consigo conceber essa ideia de “ser sedutor”, sabe? – Ele não respondeu a Phichit, nem deu sinal de tê-lo ouvido, e seguiu com seu raciocínio. – Eu não consigo nem imaginar o que é ter esse sentimento direcionado para alguém. Eu nunca quis ser assim para ninguém. Como é que eu vou… transmitir para centenas de pessoas um sentimento que eu nunca senti?

— Nunca sentiu nada parecido nem… nem só imaginando? – Phichit tentou. – Sabe, nesses seus sonhos com o cara imaginário, você vive falando sobre como ele é lindo, cintilante, e tem os olhos azuis de uma fada, e parece uma estátua de mármore esculpida por anjos, iluminado, de perfeição quase divina…

—  Eu nunca disse nada disso.

— … e mesmo com tudo isso, você nunca pensou em nada? Os sonhos nunca ficaram… mais provocantes?

— Não. – Yuuri foi curto em sua resposta. Phichit o fitou por alguns segundos, e terminou de comer o sanduíche com mais uma mordida, limpando as mãos no pano sobre a bancada.

—  Ok, então. Vou tentar pensar em alguma coisa pra te ajudar, mas agora tenho que ver se consigo aquele lance do estágio, e… Acho que já tô atrasado pra chegar lá… – Ele olhou a hora no celular, e se apressou para a sala, pegando sua mochila e os tênis no caminho. – Me deseje boa sorte!

—  Boa sorte! – Quando Yuuri gritou, Phichit já havia saído e ele ouviu apenas a porta da frente do apartamento bater em resposta.

Yuuri soltou o ar, sentindo as suas orelhas esquentando. Havia mentido para Phichit.

Naquela mesma noite, ele havia tido de fato mais um sonho, e este havia sido bem diferente dos anteriores. Yuuri culpava Minako, já que, por causa da insistência de fazê-lo dançar Eros, ele havia passado tempo demais pensando nisso. Então… Aquele sonho havia acontecido, e ele estava fazendo um ótimo trabalho em mantê-lo afastado da sua mente. Pelo menos, até Phichit citar isso.

O início do sonho havia sido como a maioria dos outros. Yuuri estava sozinho, com o homem, em uma sala vazia que parecia muito um dos quartos da pensão dos seus pais, mas sem todos os móveis. Eles conversaram, e Yuuri não lembrava de nada sobre o que quer que tivessem falado. Lembrava de como os cabelos dele pareciam cintilar com a luz que invadia o cômodo pela janela ampla. E de como se sentiu, quando aqueles inacreditáveis olhos azuis faiscaram na sua direção.

Um tremor o invadiu, quando percebeu a maneira como estava sendo fitado. Nunca havia acontecido nada parecido com isso nos sonhos anteriores. A mão dele se aproximava, lentamente, tocando-o com a ponta dos dedos, como se também hesitasse sobre os seus movimentos. Yuuri sentia com massacrante perfeição aqueles dedos subindo pela sua mão, e então pelo seu braço, em um toque tão leve que era surpreendente o quanto ele se arrepiava ao sentí-lo.

Ele se aproximava. Yuuri nunca foi muito bom lidando com invasões do seu espaço pessoal, com pessoas tocando-o sem a sua permissão e com proximidade no geral. Havia levado pelo menos um ano para se acostumar com o jeito de Phichit e com o fato de que ele adorava abraçar as pessoas sem motivo algum às vezes. E, no entanto, ali estava aquele homem, envolvendo sua cintura com uma das mãos, enquanto a outra subia até seu maxilar, e isso parecia tão natural quanto respirar. Enquanto ele aproximava o rosto do seu – e, sinceramente, era possível até mesmo sentir a respiração dele bater em sua pele – Yuuri só conseguia pensar no quanto queria que ele se apressasse e chegasse ainda mais perto logo. Isso o assustava.

Essa urgência, essa ânsia de ser tocado. A mão dele, firme, em sua cintura. O calor que se espalhava rapidamente pela sua pele, e parecia formigar, quase como se estivesse ardendo em febre. Yuuri moveu-se, desejando tocá-lo também. Fechou os olhos, o tremor espalhando-se em seu corpo, e ele já não sabia mais o que fazer. Era uma massa disforme de sensações e expectativas. Queria mais. Queria sentir mais, queria saber mais, queria que aquilo jamais tivesse fim.

Mas era só um sonho. E, cedo demais, Yuuri abriu os olhos, na sua cama fria, solitária e vazia. O calor ainda estava ali, no fundo da sua mente, e Yuuri sentiu a vergonha se espalhar quando se deu conta de tudo o que havia sonhado e sentido. Havia sido tão real, que, por vários minutos depois de despertar, Yuuri precisou permanecer imóvel, separando o que era produto da sua imaginação, e o que era realidade. Pela primeira vez em toda a sua vida, precisou tomar um banho frio logo depois de acordar. Embaraçado, enterrou a lembrança fundo em sua mente. Não pensaria nisso pelo resto do dia.

Não estava tendo muito sucesso na parte de esquecer o ocorrido, já que os problemas com a sua coreografia o mantinham presos naquele mesmo patamar, e, mesmo que ele tentasse evitar, sempre voltaria a esse ponto.

Nesse caso… Bem… Será que…

Ele podia considerar que aquilo era Eros?

.

.

.

Ajeitando os fones em seu ouvido, Victor se acomodou melhor no sofá, e clicou no próximo vídeo da lista de “recomendados para você” do YouTube. Ouviu a porta do apartamento bater, e Makkachin entrar como um furacão para dentro, sem nem tirar a coleira antes. Yuri veio logo atrás, nos seus típicos passos vagarosos e arrastados que traduziam seu incômodo com clareza. Victor nem havia notado quando ele saíra levando seu cachorro.

— Eu odeio calor, odeio! Esse lugar é quente demais.

— Bem, estamos no verão. Verão é quente. – Victor deu de ombros, sem tirar os olhos da tela do celular. – Aqui não é a Rússia, afinal.

Yuri soltou um palavrão em russo que Victor nem mesmo sabia se tinha tradução para inglês. Melhor não pesquisar.

— Eu não aguento ficar preso dentro desse apartamento, mas ficar longe do ar condicionado é uma tortura, então o que eu deveria fazer? Tecnicamente eu ainda estou de férias, sabe? – Percebendo que Victor não dava a menor atenção ao seu lamento, Yuri se inclinou por cima do sofá onde ele estava deitado, para verificar o que ele tanto assistia, embora já pudesse desconfiar. – De novo assistindo ballet? Você não cansou ainda?

—  Não. Eu tive um lapso de inspiração, mas ainda preciso de mais pra transformar isso em uma história. Só uma imagem não é o suficiente. – Victor franziu as sobrancelhas, os olhos focados nos movimentos fluídos e delicados que acompanhavam a música clássica. Podia sentir a similaridade, mas não era a mesma coisa. Não era assim que o seu dançarino, musa de toda a sua inspiração, se movia. Havia algo nele, alguma particularidade… Ele era apenas autêntico, natural. Único. E Victor não conseguiu captar nada disso, em nenhum dos vídeos que continuava vendo.

Infelizmente, ele já não lembrava com clareza do semblante daquele que o inspirara. Por mais que tentasse recordar, o rosto continuava sendo um borrão, ainda que ele tivesse a impressão de que, durante o sonho, pudera vê-lo claramente em todos os detalhes. Sua memória nunca foi de confiança, e, neste momento, ele amaldiçoava este fato mais do que nunca. Ainda assim, conseguia se lembrar com um pouco mais de clareza sobre a forma que o vira se mover, e estava concentrando todo o seu poder de observação em encontrar qualquer coisa que fosse minimamente similar a isso, por mais que não fizesse o menor sentido.

— Então seu próximo livro vai ser sobre dança? – A careta de Yuri deixava claro que este seria o último assunto possível na sua lista de leituras, se ele tivesse uma.

— Provavelmente.

— Pensei que ser filho de Lilia Baranovskaya já fosse base suficiente para não precisar ver mais ballet por uma vida inteira, pelo menos.

— Não, não é a mesma coisa… – Victor não sabia dizer o que procurava, mas, de todos os recitais de ballet clássico que ele já havia assistido na vida (e ele podia afirmar com certo nível de convicção que não foram poucos), ele nunca havia visto qualquer bailarino minimamente semelhante àquele dos seus sonhos. Não havia visto ele dançar, de fato, mas apenas com a forma como ele se movia era possível ter ideia (e expectativas) sobre como seria, e não era nada parecido com qualquer coisa que ele já pudesse ter visto na realidade.

Por mais que ele conseguisse ver claramente o tipo de história que queria contar com aquele personagem, e o sentimento que queria transmitir… Ainda não tinha ideia de como faria isso. Era mais difícil do que o normal. Geralmente, ele tinha um plot na cabeça, e, a partir daí, criava personagens e situações que se encaixassem nisso. Era fácil, fluía naturalmente. Na maior parte das vezes, ele ia criando a história enquanto escrevia, tirando soluções e ideias do nada e trabalhando com elas no decorrer da escrita. Sempre funcionou bem, assim.

Mas agora era diferente. Victor sentia que estava lidando não com um personagem, mas com uma pessoa real, que existia e que merecia ser retratada com tanta fidelidade quanto possível. Ele não estava trazendo um personagem à vida – estava simplesmente traduzindo em palavras uma existência completa, que parecia já viva, independente de quaisquer atos de Victor. Essa era uma experiência completamente nova para ele, como escritor.

Victor fechou o aplicativo do YouTube e tirou os fones de ouvido, voltando a sentar no sofá. Precisava de conselhos para avançar; agora, conhecia a si mesmo bem o suficiente para admitir isso. Jamais sairia daquele mesmo ponto se continuasse a debater isso sozinho. Estava na hora de recorrer ao Editor.

— Hey, Yura, Você estava reclamando de não ter o que fazer, não quer ir ver onde seu irmão trabalha? – Ele ofereceu, animado. Yuri soltou um som que ficava entre um resmungo e um nariz fungando em desgosto. – Ótimo, eu vou chamar um Uber...

— Por que não vai de metrô? É mais rápido.

Victor virou para trás, encarando o garoto como se ele tivesse acabado de dizer que havia um poço de petróleo embaixo dos seus pés.

— Você andou de metrô? Aqui? Nesta cidade? – A admiração dele não tinha fim, enquanto ele se aproximava de Yuri com os olhos arregalados e incrivelmente brilhantes.

— Bem, sim? No outro dia, quando eu saí pra caminhar. E quando você me pediu pra comprar ração para o Makka. Não tem loja nenhuma aqui por perto, eu fui mais longe. Além disso, preciso me acostumar com as linhas de metrô quando as aulas começarem. – Yuri percebeu que não precisava estar se justificando ali, e ergueu os olhos, fitando seu irmão mais velho com o semblante ligeiramente indignado. – Como exatamente você faz pra ir para os lugares, Victor?

— Taxi? E Uber? Às vezes Chris ou Mila me dão carona… E eu gosto de andar a pé. – Victor parecia quase hesitante ao responder.

— Isso deve custar uma fortuna, se cada vez que precisa ir a algum lugar chama um táxi! Por que não usa transporte público??

—  Da primeira vez que eu tentei, logo que vim para cá, eu me perdi e fui parar em um lugar bem… peculiar. – Yuri notou o arrepio do outro só de lembrar, e decidiu que não queria saber o que havia acontecido na ocasião, decididamente. – As linhas de metrô são confusas, as pessoas não param para dar informação, e as ruas são todas iguais!  Então, eu não tentei mais.

— Droga, Victor, você é um caso perdido mesmo, mais do que eu imaginava. – Yuri suspirou e começou a amarrar seus cabelos em um rabo de cavalo um pouco mais alto, enquanto andava decidido em direção à porta. – Vamos. Eu vou te ensinar a pegar o metrô.

Acontece que Yuri era realmente bom nesse negócio de usar transporte público, e Victor parecia uma criança em excursão de escola enquanto eles seguiam em direção ao centro da cidade, animado demais com uma perspectiva tão simples. Precisaram recorrer ao Google Maps, mais de uma vez, porque Victor simplesmente não conseguia lembrar o caminho para o seu próprio local de trabalho. “No táxi eu só preciso dizer para onde quero ir e nada mais”, foi o que ele disse. Por fim, depois de perder pelo menos uma hora além do necessário, eles conseguiram chegar ao seu destino.

Manhattan era movimentada mesmo àquela hora da tarde, em que todas as pessoas supostamente deviam estar em seus escritórios trabalhando. Yuri parecia ter se adaptado extremamente bem à mudança de ambiente, e se movia por entre a massa de pessoas e de prédios como um verdadeiro nativo. Só restava a Victor seguí-lo de perto para não perdê-lo de vista.

A editora que publicava Victor se localizava em um dos prédios baixos e mais antigos dali, em uma das ruas paralelas à principal, e quando Victor visualizou o local conhecido, se encaminhou sem demora naquela direção, dessa vez tomando a frente do caminho.

— Esse lugar é tão pequeno, tem certeza de que é aqui? Parece um prédio residencial. – Yuri observou, enquanto eles entravam pelo único elevador visível no hall de entrada. Victor apertou o botão do 10º andar.

— Provavelmente porque é um prédio residencial. Em parte. A Editora ocupa apenas os dois últimos andares, o resto do prédio é alugado para coisas como escritórios de advocacia e contabilidade pequenos. E alguns poucos moradores.

Morar naquela parte da cidade devia ser tudo menos barato. O prédio estava longe de parecer medíocre, mas, comparado aos enormes arranha-céus das empresas ao redor, parecia quase… simples demais. Yuri tentou não pensar mais no porquê Victor trocaria a maior Editora da Rússia, que tinha uma sede pelo menos 10 vezes maior do que essa, por esse lugar onde as pessoas não sabiam nem mesmo o seu nome.

O elevador abriu para um corredor vazio, e à frente havia apenas uma larga porta de vidro, com a marca da editora em destaque. Foi para lá que Victor se direcionou, e Yuri o seguiu, dessa vez em silêncio. O interior não era exatamente o que Yuri estava esperando, embora ele não tivesse quaisquer perspectivas prévias. Só havia entrado na antiga editora de Victor uma vez, e definitivamente não havia nenhuma semelhança com aquele lugar.

Para começar, o espaço interno era completamente aberto, com colunas de sustentação aqui e ali, e divisórias de vidro separando o que provavelmente seriam os escritórios individuais. Logo na entrada, havia um espaço mais amplo com sofás, uma estante moderninha coberta de livros e uma máquina de café. Um pouco mais além, uma mesa onde uma garota de cabelos lisos e escuros falava no telefone. Ela acenou rapidamente para Victor ao vê-los ali, sem parar de falar. Banners enormes cobriam uma das paredes de divisória laterais com algumas capas de livros - entre elas, os livros de Victor.

— Hey, Vitya! Fazia tempo que você não aparecia!

Yuri desviou os olhos dos banners para ver quem se aproximava. Era uma garota, mais velha do que ele, certamente, mas não parecia ser da mesma idade de Victor. Tinha cabelos muito vermelhos, ondulados e curtos, e parecia pronta para sair, com uma mochila nos ombros e uma câmera pendurada no pescoço.

— Precisava falar com Chris, pessoalmente dessa vez. – Ele respondeu simplesmente, com um sorriso exagerado demais para a ocasião, na opinião de Yuri. – Ah! Você já conhece meu irmãozinho? Ele está morando comigo! – Ele puxou Yuri pelo ombro, e ele tentou protestar, mas se aproximou mesmo assim. – Esta é Mila Babicheva, Yurachka, é fotógrafa aqui da editora.

O resmungo em resposta de Yuri podia significar prazer em conhecê-la, foda-se, ou não sei por que eu vim pra cá, ou as três coisas ao mesmo tempo, possivelmente.

— Ah, então este é o famoso Yuri! Você falou que ele viria… – Ela sorriu, inclinando-se ligeiramente, apenas o suficiente para examinar Yuri mais de perto. Ele estava extremamente desconfortável com isso, e seu olhar furioso não estava surtindo efeito, já que ela continuava a sorrir.  Seu próximo instinto era o de sair correndo.

—  Falei? – O tom de surpresa  de Victor irritou Yuri ainda mais. – Quando?

—  Quando saímos para beber um tempo atrás. – Ela disse, como se isso não fosse mais importante, e voltou a olhar para Yuri. – Mas Victor não me falou que você jogava Aura… – Ela apontou descaradamente para a camiseta de Yuri, e ele sobressaltou.

—  Você conhece Aura Nation? – A surpresa estampada no rosto do garoto era evidente. Ninguém conhecia aquele jogo, e ele não esperava por isso, ainda mais vindo de uma garota bem mais velha.

—  Você tá brincando? Eu já sou Sergeant First Class lvl 85.

—  Caralh-

—  Yura.

Com a interrupção, Yuri se conteve e adotou um tom mais comedido para continuar a falar com Mila, mas Victor já não estava mais prestando atenção para vigiar o vocabulário do irmão, porque a conversa rapidamente tomou um rumo completamente indecifrável para ele. Coisas sobre armas, monstros e habilidades. Então, ele decidiu deixar os jovens se entendendo e seguiu diretamente para a divisão de vidro isolada por persianas brancas fechadas, que ele sabia que era a sala de Chris, e que, afinal, era seu objetivo ali.

Bateu com os nós dos dedos na porta. Podia ter simplesmente aberto sem se anunciar, mas experiências passadas o alertavam sobre o perigo de fazer isso quando se tratava de Christophe. Quando Victor ouviu uma interjeição de sobressalto, seguida de barulho de coisas caindo no chão, soube que havia sido uma decisão correta a de não invadir aquela sala sem antes bater.

Alguns poucos minutos se passaram, até que a porta fosse aberta. Do outro lado, estava um homem alto, de cabelos castanhos completamente desordenados, os lábios suspeitosamente inchados demais, e uma marca muito evidente aparecendo no pescoço, por entre o colarinho desalinhado da camisa.

O homem, que Victor sabia que se tratava de outro editor da empresa, teve a decência de parecer embaraçado, enquanto cumprimentava Victor com um aceno de cabeça e saía dali o mais rápido possível. Chris, por outro lado, não conhecia o significado da palavra vergonha, e ajeitava os objetos da sua mesa como se nada demais tivesse acontecido.

—  Victor! Você demorou para aparecer. – Chris comentou casualmente, voltando a sentar na sua cadeira, como se já estivesse esperando por Victor, mesmo que ele não tivesse marcado nada.

— Você parece ocupado, tem certeza de que eu posso tomar seu tempo? – A falsa inocência presente no tom de Victor era risível, e Chris apenas sorriu em resposta, mantendo-se tão neutro quanto alguém como ele poderia.

— Ah, você já me atrapalhou totalmente mesmo, não finja que tem alguma consideração agora. – Com um gesto amplo, Chris indicou a cadeira à sua frente, e Victor se acomodou, tentando não pensar se Chris havia utilizado essa cadeira na atividade anterior, e esperando sinceramente que a resposta para isso fosse não. – Tem alguma coisa para mim?

Sem enrolações, direto aos negócios, esse era o jeito de Chris trabalhar. Victor suspirou, desejando ter uma resposta diferente da que teria para dar a ele. Não gostava de decepcionar as pessoas, e Chris era um caso ainda mais especial, depois de tudo o que fizera por ele.

—  Você recebeu o que eu mandei ontem? – Ele indagou, apenas para garantir que os dois estavam no mesmo patamar. Chris abriu seu notebook e clicou em algumas coisas, antes de soltar um longo murmúrio em confirmação.

—  Um arquivo de cinco… Não, seis páginas, contendo apenas a descrição de um único personagem, com todos os detalhes possíveis e imagináveis. Sim, recebi. Li ontem à noite. Se me permite perguntar, onde exatamente você conheceu esta fonte de inspiração tão valiosa?

—  Eu não conheci, propriamente dizendo. Eu meio que o imaginei. Em um sonho, quero dizer. Ele apareceu para mim, simplesmente. – Victor tentou segurar o suspiro sonhador que se seguiu a esta afirmação, apenas para não parecer tão louco quanto sabia que soaria falando essas coisas, mas foi impossível. Chris soltou uma sonora risada, balançando a cabeça em negação.

—  E eu aqui pensando que você finalmente havia resolvido sair da sua caverna e conhecer alguém. Quanto tempo faz desde a última vez que você se divertiu com outra pessoa, Victor? – Chris se inclinou sobre a mesa, mais interessado neste tópico em especial do que no assunto que trouxera o escritor até ali.

            —  Como meu editor, você deve saber muito bem que entre o lançamento do primeiro livro, o período de escrita e o lançamento do segundo, eu não tive tempo para me dedicar a qualquer outra atividade.

— E como seu amigo, eu digo que você é jovem, Victor… Vai se arrepender de negligenciar sua vida amorosa dessa forma daqui há alguns anos. Deveria aproveitar enquanto ainda tem disposição para amar e ser amado. Você sabe o que é isso, melhor do que ninguém. Está nos seus livros, afinal.

—  Você parece saber melhor do que eu, não é? – Victor sorriu de canto, enquanto apontava para a gravata azul-marinho jogada de qualquer jeito no chão, que obviamente não pertencia a Chris.

Os olhos verdes de Chris faíscaram, e ele não se deixou abalar pela óbvia tentativa de provocação de Victor.

—  Exatamente por isso que você deveria me ouvir. – Chris soltou seu corpo para trás, em um movimento coordenado, fazendo a sua poltrona de couro girar para um lado e para o outro. – Mas, voltando ao seu garoto dos sonhos... – Ele gesticulou para o notebook, puxando seus óculos de leitura e ajeitando-os no rosto. – Você quer usá-lo no próximo livro, é isso? Um dançarino encantador, com lindos olhos castanhos e um sorriso doce e… Bem, você escreveu 3 parágrafos apenas sobre o cabelo dele. Acho que temos um personagem sólido aqui. – Voltando a focar os olhos em Victor, Chris rapidamente havia se colocado no modo editor sério. – Que tipo de história você quer escrever para ele?

—  Bem… – Os olhos de Victor vacilaram, observando o tapete felpudo do chão com mais atenção do que o necessário. – Sobre isso, eu ainda não consegui pensar em um… contexto. Esse personagem, ele não é nada parecido com qualquer coisa que eu tenha criado antes. Ele já tem sua própria vida. Eu só não consegui descobrir como ela é ainda, e não quero fazer nada que não pareça verdadeiro, entende?

— Entendo… – Chris murmurou, as sobrancelhas se juntando em pensamento profundo, e Victor quase podia sentir as engrenagens do cérebro dele se movendo, enquanto ele lutava contra o mesmo quebra-cabeça que assombrava Victor desde o sonho com o dançarino. – Por que você não… muda o ponto de vista? Ao invés de tornar este personagem o seu protagonista, você pode fazê-lo ser o objeto de admiração de alguém, exatamente como ele parece ser o seu agora. Seria muito mais natural, e não fugiria do seu prospecto inicial.

— Você diz, algo como… um admirador, que observa o dançarino e quer descobrir quem ele é? – Victor trabalhou com essa ideia por alguns segundos. – Isso soa quase como um stalker. Não sei se é isso o que eu quero colocar nessa história…

— Então faça algo mais com a sua identidade. Use a perspectiva desses seus sonhos, quem sabe? Isso já me parece algo possível de acontecer em um livro. E, como aconteceu com você, pode traduzir isso melhor do que ninguém, não é? – Chris sorriu, apresentando sua constatação final com o triunfo de quem tem consciência de que trouxe a solução perfeita para um problema.

Victor não respondeu de imediato, mas, pelo brilho que acendeu em seu olhar, era evidente que a ideia havia ativado a área criativa do seu cérebro sem esforço. Como ele não havia pensado nisso antes! Era tão óbvio agora.

Logo, Chris e Victor já estavam imersos em um intenso processo de brainstorming, jogando ideias para todos os lados. Chris anotava tudo o que pudesse ter algum valor no seu notebook, porque sabia muito bem que o escritor jamais guardaria tudo aquilo na memória, e ele não tinha trazido nem mesmo um caderno para fazer anotações, como era habitual. O tempo passou sem que ele tivesse sentido, e sua mente parecia fervilhar com a emoção que sempre o dominava durante o processo de criação. Quase havia esquecido daquela sensação. Era por isso que ele amava o seu trabalho.

—  Acho… Acho que eu posso trabalhar com isso! – Victor se ergueu de imediato, depois do que poderiam ter sido horas, já contaminado com animação demais para se manter parado. – Chris, você é genial!

—  Eu só cumpri com a minha obrigação. A criação é com você. – Chris apenas ergueu as mãos, a imagem da modéstia, embora aquele sorriso presunçoso de sempre continuasse lá. – Se continuar me elogiando assim, vou acreditar que está dando em cima de mim, Nikiforov. – Acrescentou, com uma piscadinha marota.

— Pena que você é comprometido, não é… – Victor atirou um beijo de longe para o outro homem, antes de seguir em direção à porta, sabendo que tinha o suficiente e desejando poder começar a trabalhar nisso naquele mesmo instante. – Inclusive, vou deixar você livre para voltar a “trabalhar” no que estava fazendo antes. Obrigado, mais uma vez, Chris! Você salvou minha vida!

Chris passou a mão pelos cabelos, tirando os óculos do rosto, ainda sorrindo.

—  Essa é minha missão na Terra.


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Notas finais do capítulo

Olá o/
Espero que tenham gostado de mais um capítulo ♥
Victor ainda às voltas com a súbita inspiração e as ideias para o novo livro. Yuuri sofrendo para descobrir o que raios é eros pra alguém que nunca teve um relacionamento sério na vida. Yurio ainda sendo o adolescente rebelde sem causa que todos conhecemos e amamos XD
E agora encontramos Chris e Mila também o/ Ai, como eu amo o Chris, adoro escrever com ele >< E Mila também, melhor pessoa~ ♥
Gostaria de acrescentar uma observação, coloquei Yurio falando sobre jogos mas a verdade é que eu conheço muito pouco sobre isso, e não quis fazer referências de coisas que não conheço direito e acabar errando rude, então inventei um jogo para o Yurio jogar XD espero que não fique meio sem sentido na história também.(edit: minha beta me ajudou com uma referência não muito óbvia à jogos estilo militar, ficou bem melhor XD)

Enfim! Aguardo ansiosamente por comentários, opiniões e tudo mais~ Até a próxima ♥



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