Afeição escrita por Sarah


Capítulo 1
Afeição




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Afeição

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Avaliando seus infortúnios recentes, ao menos o lugar em que o MACUSA o colocara era mais confortável do que o camafeu onde Grindelwald o mantivera preso pelos últimos três meses.

Encarcerado pelo encantamento do bruxo, Percival Graves estivera, na maior parte do tempo, em um estado de semiconsciência, apenas flutuando em angústia e medo. Se ele tinha comido ou bebido alguma coisa durante esse tempo não restava nenhuma memória do fato. Sua barba estava longa. Graves podia contar os ossos de suas costelas através da pele.

Não havia nenhuma acusação formal contra ele, então as masmorras não tinham sido cogitadas. Em vez disso, Percival fora conduzido para um quarto entre o Departamento de Invenções Magicas e a área onde ficavam as cozinhas, magicamente provido com uma cama macia e aquecimento. Havia uma jarra sobre o criado-mudo que voltava a se encher de água fresca cada vez que ele bebia. Graves já tinha perdido a conta de quantas vezes a esvaziara, porém sua garganta continuava seca.

Supunha que sua varinha tinha sido recuperada com a prisão de Grindelwald, mas ninguém se dera ao trabalho de devolvê-la. O quarto onde estava não possuía janelas. Percival não precisara sequer testar a porta para saber que estava fechada com um encantamento.

MACUSA tinha encontrado-o preso em um maldito camafeu, dentro de um porta joias no apartamento que Gridewald vinha usando como esconderijo, como se ele fosse uma medalha conquistada. Assim que o soltaram um auror que Graves conhecia apenas superficialmente lhe dera um resumo do que tinha acontecido enquanto ele estava preso, em seguida Tina havia se esgueirado na enfermaria onde ele recebia cuidados médicos e passado uma versão mais elaborada dos fatos; mas depois que ele fora conduzido para aquele quarto nenhuma outra visita tinha acontecido. Graves tinha andado passado a maior parte do tempo andando ao redor do aposento — sete passos até uma parede, e, então, sete passos de volta até a outra —, tentando prever como o MACUSA lidaria com ele.

Nada do que ele tinha imaginado parecia agradável. Era muito óbvio que ele fora uma vítima, ao menos durante uma parte de tudo aquilo, mas seria compreensível imaginarem que ele estivera mancomunado com Grindelwald no começo.

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Se fosse apostar, Graves diria que era Tina quem viria buscá-lo quando finalmente quisessem vê-lo. Em vez disso, foi Queenie quem abriu a porta do quarto, bonita e gentil como sempre.

— Sr. Graves — ela cumprimentou com bom humor, como se ele não estivesse preso ali, sendo acusado de envolvimento com magia das trevas.

— Queenie. — A bruxa sorriu, mas o gesto logo se desvaneceu em um suspiro.

Queenie correu os olhos por ele, e Percival se sentiu muito consciente da sua barba por fazer, do seu cabelo bagunçado, das suas roupas amarrotadas e da forma como as vestimentas não se encaixavam bem depois de todo o peso que ele perdera. Antes que Graves pudesse dizer qualquer coisa a respeito disso, ela puxou a varinha em um gesto displicente. Um dos bruxos parados na porta deu um passo para dentro do quarto, obviamente achando que era uma péssima ideia dar a Graves acesso fácil a uma varinha.

 Queenie também sorriu para o guarda.

— Está tudo bem.

Ela se voltou para ele. Graves sentiu seu feitiço como uma brisa morna. De repente seu cabelo estava bem penteado e suas roupas lisas e ajustadas. , Queenie não faz nada por sua barba — provavelmente pela falta de experiência com feitiços do tipo — mas, ainda assim, ela pareceu aprovar o resultado final.

—  Está muito melhor, querido. Queremos causar uma boa impressão, não é?

Percival sentiu seus ombros relaxarem ligeiramente: era bom saber que alguém além de Tina estava do seu lado.

Para sua surpresa, Queenie se aproximou e tocou seu rosto com a ponta dos dedos. Um lampejo de frustração cruzou a face da bruxa.

— Sempre impossível de ler. Você guarda suas emoções muito, muito fundo, não é, querido? Isso vai ser tão difícil para você... Mas Tina vai estar lá, ela vai cuidar para que as perguntas não sejam tão ruins, eu prometo.

Graves a encarou, confuso, porém aquele tipo de discurso intrincado não era incomum para Queenie. Antes que ele pudesse pedir algum esclarecimento ela estava conduzindo-o para fora do quarto, acompanhada dos dois guardas.

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Não o levaram para o tribunal, e ele não esperava por isso. O que quer que acontecesse com ele seria privado e sem formalismos. Por um instante Graves se perguntou quantas pessoas sabiam que ele tinha sido resgatado com vida... Poucas, e a maioria poderia ser facilmente obliviada. Bastaria o MACUSA dizer que ele tinha sido morto por Grindelwald e isso seria verdade. Graves forçou-se a respirar fundo.

Uma vida trabalhando no MACUSA e ele não conhecia a saleta onde Queenie o deixou. Como ela dissera, Tina estava esperando lá dentro. Picquery também o aguardava, parecendo muito rígida, além de outras duas pessoas do alto escalão.

Percival mal reparou neles, toda sua atenção caindo, inevitavelmente, no centro da sala, onde uma mesa estava posicionada. Um único recipiente de vidro estava sobre ela, pouco menor do que um frasco de perfume, contendo uma poção transparente.

De repente, as palavras de Queenie fizeram sentido.

Olhou ao redor, mas ninguém parecia disposto a lhe dar escolha sobre aquilo. Tina fez uma aceno de incentivo à sua direita quando Picquery se adiantou, começando a falar, e ele trincou os dentes.

O que quer que viesse daquele interrogatório, ao menos seria definitivo.

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O veritaserum tinha gosto de ar e era terrivelmente gelado. Pela primeira vez em dias, Graves sentiu sua sede saciada.

Demorou somente alguns minutos para a poção começar a fazer efeito, e, então, a secura em sua garganta foi substituída por segredos. Todas aquelas coisas que ele nunca se atrevera a contar para ninguém de repente estavam ali, na borda, há apenas um incentivo de escaparem.

Ele tinha doze anos e observava um primo mais velho no chuveiro. Vinte e cinco, e aceitara suborno de um bruxo enquanto cumpria uma missão para o MACUSA. Ele completara trinta e dois quando conhecera Tina e pensara em beijar uma mulher pela primeira vez. Era seu aniversário de quatorze anos, e Percival havia roubado o batom vermelho da sua irmã. Vinte e sete, e deixara de fora documentos essenciais de um relatório, de forma que seu superior fosse demitido e ele promovido. Logo depois dos trinta, vivendo um romance que durara sete meses com um homem non-maj. Dezesseis anos quando um garoto da sua classe tinha lhe dado seu primeiro boquete, em baixo das arquibancadas do campo de quadribol de Ivernory. Trinta e seis, permitindo que Tina escapasse com uma punição muito leve por um problema muito grande e prometendo cuidar do garoto non-maj por ela. Ainda trinta e seis e acabara de dar chocolates para Credence Barebone, e desejava beijá-lo, e pressioná-lo contra a parede daquele beco escuro onde costumavam se encontrar, e enfiar a perna entre as pernas dele, e, céus, o rapaz não era muito mais do que um menino...

— Você conhece Gellert Grindelwald? — A voz da presidente, firme e autoritária, quebrou aquela inundação de pensamentos.

Percival Graves respirou fundo, engolindo confissões e tentando se concentrar no que realmente importava.

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Pareceu uma eternidade até que o MACUSA o dispensou, livre de qualquer acusação. Picquery se dignou a lhe conceder um pedido de desculpas e falou algo sobre uma compensação que aparentemente envolvia indenização monetária e férias. Percival mal conseguiu registrar. Cada osso do seu corpo doía e seus músculos sentiam-se estirados ao extremo.

Ao fim, restaram apenas ele e Tina na sala.

— Acabou, Sr. Graves — ela disse com um pequeno sorriso. — Você pode ir para a casa. 

A ideia de voltar ao seu apartamento depois de tantos meses parecia um tanto absurda. Já não havia muito para ele lá antes... Não existia outro lugar para onde ele poderia ir, no entanto, e nenhuma ideia melhor lhe ocorreu.

— Sim, tudo bem — ele se forçou a dizer, mas Tina provavelmente percebeu que algo estava errado.

— Você quer que eu o acompanhe?

Aceitar aquela oferta seria uma fraqueza impensável três meses atrás, porém Percival supôs que tinha pouco a perder agora. Tina lhe devia uma, em todo o caso. Tudo teria sido absolutamente diferente se ela não tivesse se envolvido naquela confusão com os Novos Salesianos. 

Tal pensamento comprimiu seu peito, e Graves acenou, aceitando a companhia.

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Tina flutuou ao lado dele, um pouco encolhida, como se finalmente tivesse percebido que estava sozinha no apartamento de um homem. Mesmo assim os olhos dela estavam arregalados e ávidos, registrando o ambiente.          

Ao alcançar a sala, Percival se jogou no sofá. Levou um minuto para perceber que Tina continuava de pé, a coluna muito reta.

— Você pode se sentar, Tina, por favor — falou, apontando para a poltrona à sua frente. A bruxa tomou o assento. — Ainda deve ter algum chá que não tenha embolorado na cozinha... — disse em tom de oferta, sem muitas esperanças, mas Tina sacudiu as mãos em negativa.

— Estou bem, de verdade, Sr. Graves. Não preciso de chá.

Seu apartamento estava coberto de poeira. Obviamente, Grindelwald tinha andado por ali para pegar suas roupas, mas não parecia ter se demorado muito, nem usura os aposentos para pernoitar. O lugar estava tão estéril quanto quando Graves o vira pela última vez, quase quatro meses atrás. Seu olhar vagou, detendo-se no aquário sobre o aparador.

le costumava ter um peixe beta. Por que não se lembrara disso até então? Ele nunca tivera vontade de ter um peixe, mas a esposa do seu irmão achara que um aquário era um presente apropriado. O peixe era uma coisa viva, devia ter ocupado algum espaço em seus pensamentos... Agora a água estava completamente verde e lodosa, e o peixe beta estava morto dentro do aquário.

Percival deitou a cabeça contra os braços.

— Alguma chance de eu alcançar Grindelwald e matá-lo com minhas próprias mãos?

Tina deu um risinho baixo. A bruxa provavelmente era a única pessoa no mundo que achava que ele tinha algum senso de humor, mas ela sempre fora um pouco estranha também.

 — Nenhuma, Sr. Graves. Ele está seguindo para uma prisão na Inglaterra.

— O menino, Tina. Como está o menino? Credence?  — ele finalmente deixou a pergunta escapar. Não ousara falar sobre Credence sob o efeito do veritaserum, mas naquele momento decidiu que não se importava. O desespero em sua voz pareceu terrivelmente palpável.

— Vivo — ela respondeu, embora ele já soubesse disso e a informação fosse tão insuficiente que doía. — Eu ia esperar você estar melhor para falar sobre ele, mas...

Graves fez um grunhido impaciente.

— Pelas barbas de Mérlin, Tina, se acha que vai me fazer bem adiar esse assunto... Fale — ordenou em um tom que soou muito profissional.

Ela suspirou, parecendo relaxar agora que a responsabilidade sobre abordar ou não aquela questão havia sido retirada dela.

— Credence está bem, se recuperando. Eu e Queenie temos cuidado dele. Credence sabe que, bem, não era você o tempo todo olhando por ele... Ele compreende, Sr. Graves.

Percival sentiu seu coração se comprimir até o tamanho de uma ameixa, mas supunha que aquilo era o melhor que ele poderia esperar.

— Preciso conversar com ele.

— Sim — Tina assentiu. — E, Sr. Graves... — ela acrescentou com cuidado —, como eu disse, queria esperar o senhor estar melhor acomodado para falar sobre isso, mas, talvez, o senhor pudesse considerar cuidar do menino...

Graves piscou duas vezes, e, diante da ausência de uma negativa imediata, Tina continuou.

— Temos dado um jeito, porém o prédio onde moramos não aceita rapazes. Newt se ofereceu para ser o guardião do garoto, mas eu também não sei se uma mudança de continente é o melhor para ele agora. Além disso, Credence sente a sua falta.

Por um instante Graves quis dizer que ele provavelmente faria tão mal ao menino quanto Grindelwald, mas ainda havia veritaserum demais em suas veias para que as palavras aflorassem. Antes que desse conta de si mesmo, viu-se acenando em concordância.

— Só preciso me restabelecer e conversar com ele primeiro, Tina.

A bruxa permitiu-se um sorriso. Era óbvio que aquela conversa transcorrera de acordo com os seus planos, e que ela tinha a absoluta confiança de estar oferecendo a ele uma esperança, e não um problema.

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Demorou quase três semanas até que Percival reunisse coragem suficiente para chamar Tina e pedir que ela trouxesse o garoto. Precisava recolher os pedaços da sua vida antes de falar com Credence, tentar saber até onde Grindelwald tinha ido e que estragos fizera, mas, também, seu estômago se revirava de angustia cada vez que pensava em encarar o menino e ver medo e desgosto refletidos em seu olhar.

Por isso, na altura em que ouviu o barulho suave da aparatação do lado de fora da porta, seguido da campanhia tocando, Percival já fumara dois maços de cigarro, apesar de não ser mais do que dez horas da manhã. Ele acenou com a varinha, executando um feitiço rápido para se livrar do cheiro de fumaça, antes de atender à porta.

Todos os seus receios sobre o que iria encontrar no olhar de Credente foram infundados, porque o garoto simplesmente não o mirou. Em vez disso, ele permaneceu na soleira, os dentes trincados e os olhos presos ao sapato, tão rígido quanto costumava ficar ao lado de Ma. Tina, por sua vez, sorriu com complacência.

Antes que Percival pudesse convidá-los a entrar, ela se adiantou. Aparentemente a conversa do “você tem certeza” já fora executada entre a bruxa e Credence, porque ela apertou os ombros do garoto, incentivando-o a seguir em frente.

— Estou atrasada para o trabalho, Sr. Graves. O senhor sabe onde me encontrar, qualquer coisa — ela falou, para então dar um passo atrás; cuidadosamente, como se estivesse testando para ver se Credence continuaria de pé sem o seu apoio. Quando o menino não recuou, o sorriso de Tina se alargou. — Vejo você no almoço, Credence — a bruxa acrescentou, dando uma piscadela que Credence certamente não viu, afastando-se em seguida. Graves ouviu o barulho característico que indicava a aparatação logo que ela virou o corredor.

— Você quer entrar, Credence? Eu tenho chá. — Percival trocou o peso do corpo de um pé para o outro e sentiu suas mãos suadas. — Ou podemos ir para outro lugar, qualquer lugar que você quiser.

Ainda com os olhos no chão, Credence negou.

— Seu apartamento está bom.

Diante disso, Percival deu espaço para que ele entrasse. O menino seguiu direto até o sofá e não esperou nenhum convite para sentar-se. Graves se acomodou ao lado dele, o mais próximo que se permitiu. Ambos permaneceram em um silêncio desconfortável por longos minutos. Foi Credence o primeiro a falar:

— Eu sei que não era você o tempo inteiro. Tina me contou o que aconteceu, e eu pensei muito sobre isso. Eu acho agora sei quando era você e quando não era, mas no começo não tenho certeza... Os chocolates?

— Fui eu, Credence. — Bombons de chocolate, recheados com canela e mel. Um pouco do recheio tinha escorrido pelos lábios do menino, e Percival tinha limpado a doçura com a ponta dos dedos. Credence sorrira com aquilo.

— A pomada para os machucados?

— Também eu.

— O vinho?

Graves apertou as mãos em punho, cravando as unhas na carne.

— Não, Credence, sinto muito.

O menino assentiu, como se já esperasse por aquela resposta. Pela primeira vez, ele levantou os olhos para o bruxo.

— Tudo bem, Sr. Graves.

O cabelo dele estava um pouco mais longo, mas ainda não tinha perdido inteiramente aquele corte terrível. Percival sentiu vontade de estender a mão e tocar os fios mais curtos. Antes ele teria liberdade para fazer aquilo, mas naquele instante não se atreveu.

— Credence — disse com cuidado, temendo pelo menino, mas também por si mesmo —, Grindelwald... Eu machuquei você? Houve alguma coisa inapropriada?

Graves sentiu uma onda de agonia subir por sua espinha quando Credence voltou a desviar a mirada.

— Eu deveria ter sabido que não era o senhor, Sr. Graves.

— O que isso quer dizer? — demandou, as sobrancelhas franzidas.

— Alguém como o senhor não olharia para mim daquela forma, não gostaria de mim daquele jeito.

— Ohh, Credence — Percival murmurou, porque gostava do menino exatamente da forma como Credence estava insinuando, e não sabia o que isso fazia dele.

E, então, as mãos de Credence estavam sobre as suas, o toque tão gentil quanto da primeira vez que haviam se encontrado, quando as palmas do rapaz estavam terrivelmente machucadas.

 Aquilo era perigoso. Percival sentiu a perna de Credence pressionada à sua quando o menino se aproximou. Ao encará-lo pôde ver a sombra de seus cílios. Tantos e tantos anos afundado em trabalho para cair por um menino quase da metade da sua idade.  

O bruxo abraçou Credence, e o menino deixou-se afundar na curva de seu pescoço, inspirando seu cheiro de colônia de barbear e tabaco.

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Mesmo os seus relacionamentos mais duradouros não tinham envolvido compartilhar uma casa. Quando Tina perguntara a Credence o que ele desejava fazer, oferecendo a chance de ele viajar com Newt, estabelecer-se com Percival, ou mesmo continuar morando com ela e com Queenie em outro apartamento onde ele pudesse ter mais liberdade, o menino estendera as mãos para o casaco de Graves, fechando os dedos em sua manga, e perguntara se ele podia mesmo ficar.

Assim, Percival viu-se mudando seus pertences de lugar e transformando seu escritório em um quarto extra. A escrivaninha foi transfigurada numa cama, ele comprou um armário e roupas de cama novas. Quennie deu um abajur para colocarem em cima do criado-mudo. 

A despeito do que esperava, o garoto tinha se ajustado ao ambiente de forma natural. Todos aqueles anos sob a rigidez de Mary Lou o tornaram terrivelmente organizado e silencioso, e teria sido fácil para Percival esquecer que os dois estavam dividindo o mesmo ambiente se o mero pensamento acerca de Credence não arrepiasse sua pele.

Não fazia mais do que dois meses desde que Credence havia se mudado, e menos ainda desde que Graves reassumira todas as suas responsabilidades no MACUSA, quando o bruxo chegou do trabalho e encontrou o garoto dormindo no sofá com um livro repousando em suas coxas e outros três espalhados ao seu redor.

Percival reconheceu o “Feitiços, 1º Grau”, que, pelos corações desenhados na capa, tinha pertencido a Queenie, “Os Contos de Beedle, o Bardo”, além de algo que provavelmente era literatura trouxa.

A visão o fez sorrir, e ele tentou chegar até a cozinha o mais silenciosamente possível, mas não teve sucesso. Ou talvez Credence apenas estivesse acostumado demais a manter-se alerta. Graves tinha dado três passos quando o menino despertou sobressaltado. Ele o encarou, então correu os olhos pelos livros jogados, percebendo que estivera dormindo no sofá. No segundo seguinte Credence estava de pé, lívido, recolhendo os livros com urgência.

— Eu sinto muito, Sr. Graves! Eu sei que não devia ter dormido aqui, nem deixado as coisas desorganizadas, não vai acontecer de novo, eu prometo... — disse, mas torrente de desculpas foi interrompida quando ele deixou um dos livros cair e gemeu, suas bochechas indo do branco puro para o vermelho. Ele estava respirando muito rápido, à beira de um ataque de pânico.

De repente, Percival se deu conta de que maioria dos ferimentos que ele costumava curar clandestinamente em becos escuros havia sido infligida por coisas menores do que essa.

— Credence, respire — Graves falou, firme, mas gentil o suficiente para que aquilo não soasse como uma ordem. Credence tomou um bocado de ar. Lentamente, Graves se aproximou. O menino o observou como um animal acuado quando Percival retirou os livros de seus braços, jogando-os novamente sobre o sofá.  — Você pode dormir no sofá, você pode deixar suas coisas espalhadas pelos móveis, eu não me importo com o que quer que você ache que é bagunça. Essa é sua casa também. Sou eu, Credence, não Mary Lou.

A coisa mais pessoal que Credence possuía era uma latinha que, pelo vislumbre que Percival pudera captar enquanto transferiam as coisas do menino da casa de Tina até ali, guardava papéis de bala, um soldadinho de chumbo quebrado e não mais de dez dólares em moedas. Segundo Tina lhe contara em segredo, ela acompanhara Credence até um beco, ao lado da Igreja que o menino costumava frequentar, para que ele pudesse recuperar aquilo. Nenhum lar que Credence tivera até então proporcionara segurança para que ele pudesse guardar coisas pelas quais tivesse apreço.

Mary Lou certamente usara a falta de privacidade como castigo com tanta frequência quanto se valia de abusos físicos.

— Eu sentia tanto medo dela, Sr. Graves, e tanta raiva depois! Eu queria poder esquecer que ela existiu, mas agora... Eu a matei, Sr. Graves, e eu não tenho o direito de esquecer isso.

O rosto do menino estava vincado, cada músculo do seu corpo contraído, as bordas negras do que restava do Obscurial tornando-se evidentes. Graves sentiu uma onda de raiva impotente subir por sua garganta.

— Não foi sua culpa, Credence. Você fez o melhor que pôde lidando com tudo o que estava acontecendo com você. Eu não teria aguentado por tanto tempo, não teria sido tão forte — Percival ofereceu, pousando uma mão sobre o ombro do menino, muito de leve.

Credence levantou os olhos para o bruxo, desconfiado, como se procurasse mentira ou zombaria em sua expressão.Graves sustentou seu olhar, e ele finalmente relaxou, a magia que borbulhava dentro dele se acalmando.  

— Uma parte do Obscurial queimou depois do que aconteceu no metrô. Newt acha que eu gastei muita raiva ao explodir contra Mary Lou e Grindelwald, e então muita energia para me reestabelecer... Mas o que resta dele é mais fácil de controlar quando eu estou com o senhor.

Percival reconheceu naquilo uma espécie de pedido de desculpas, uma justificativa para ele estar ali, ocupando seu apartamento, quando alternativas lhe tinham sido oferecidas.

— Eu estou feliz que você esteja aqui, Credence — falou, sinceridade escorrendo através da sua voz.

Credence devia ter percebido que ele dissera a verdade: quando Percival saiu para trabalhar no dia seguinte, notou que “Beedle, o Bardo” continuava despojadamente jogado sobre o sofá.

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Percival ergueu o rosto enquanto a lâmina de barbear deslizava por seu queixo, flutuando no ar sem nenhum apoio, previamente encantada para fazer uma barba rente. Mesmo assim a coisa exigia alguma concentração, e ele demorou um tempo para perceber que Credence estava recostado na porta do banheiro com a boca levemente aberta e um vermelho delicado cobrindo sua face.

O menino completara vinte e um anos há poucos meses e ainda não possuía uma real necessidade de se barbear, então Percival não tinha certeza se ele admirava a lâmina ou a demonstração de magia.

— Você quer usar o banheiro? — Graves perguntou, pousando a lâmina na pia.

Credence sacudiu a cabeça como se estivesse tentando se livrar de algum encantamento, o rubor em suas bochechas ficando ainda mais intenso ao ser pego observando.

— Não, desculpe! — ele disse, a voz esganiçada, apenas um tom acima de um sussurro. O garoto já estava se retirando quando Graves o chamou de volta.

— Credence. Você quer tentar se barbear? Eu posso ensinar. Talvez ainda não com um encantamento — não parecia uma boa ideia deixar uma lâmina e um feitiço nas mãos e alguém inexperiente —, mas do jeito normal...

Antes que pudesse terminar, porém, Credence estava negando.

— Eu ainda não preciso, Sr. Graves. Não de verdade. — Os dedos do garoto deslizaram por seu rosto liso, para, então, vagarem até sua têmpora, onde o cabelo ainda era curto. — Um corte de cabelo diferente seria bom, mas demora tanto para crescer...!

Graves sorriu de canto, ao mesmo tempo em que se sentiu tolo. Devia ter percebido que aquilo era algo que incomodava o menino.

— Você gostaria do cabelo mais longo?

Credence também sorriu, uma ponta de esperança transparecendo em seu gesto.

— Eu vi uns garotos com o cabelo um pouco mais comprido. Parecia bom. Algo diferente seria bom.

— Existem poções que ajudam com isso. Vou comprar alguma, em alguns dias seu cabelo deve ter crescido, e então você pode escolher o corte que achar melhor.

Dessa vez o sorriso do menino foi amplo, abrangendo seu rosto por completo e aquecendo seus olhos. Aquilo desarmou todos os seus anos de treinamento. Percival sentiu-se absolutamente incapaz de qualquer reação quando Credence deu dois passos para dentro do banheiro e o abraçou. Cada canto de sua pele ardeu e suas costelas transbordaram com quentura.

— Obrigada, Sr. Graves. — O agradecimento soou contra seu pescoço, mas antes que o bruxo pudesse dizer qualquer coisa o menino tinha se afastado e deixado o banheiro.

Só então Percival se deu conta de que devia parecer bastante ridículo, apenas metade da barba feita e espuma ainda em seu rosto.

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Eram mais de duas da manhã e Graves contemplava a pequena porção de céu visível da sua varanda. Se fosse um dia de tempo bom, ele poderia ver vênus daquele ângulo, mas fazia séculos que não tinham um dia de tempo bom. Em vez disso, ele estava envolto em um feitiço de aquecimento e fumaça de cigarro: Percival tinha deixado de fumar dentro de casa desde que Credence passara a dividir o apartamento com ele.

Ouviu passos dentro da sala, e, então, a porta que dava para a varanda se abriu. Credence usava uma cobinação desaparelhada de peças de dormir, feita de uma camisa grande demais — que, Percival desconfiava com ciúmes, Tina havia pescado dentre as peças de Newt para dar ao garoto — e um short que sequer lhe cobria os joelhos, completamente insuficiente para o clima. Ele mal tinha fechado a porta atrás de si e estava tremendo.

— Tive um pesadelo — o garoto falou. Diante disso, Percival deu espaço para que ele sentasse ao seu lado, compartilhando o encantamento que providenciava ar quente ao seu redor.

A varanda era pequena demais até para que ele esticasse as pernas, mas Credence não pareceu se importar com a proximidade. Percival deu um último trago e, com um suspiro resignado, apagou o cigarro ainda pela metade no parapeito.

— Você não precisa apagar o cigarro, eu não me importo — Credence disse, mas Percival não prestou atenção. Já era ruim suficiente imaginar Grindelwald oferecendo vinho ao menino enquanto se passava por ele.

O cabelo de Credence tinha crescido com o auxílio da poção, as pontas dobrando-se em cachos. Graves tinha perguntado sobre um corte duas vezes, mas o garoto sempre desconversava, então ele deixara o assunto passar. Imaginava que Credence estava desfrutando da liberdade e da rebeldia de ter os fios mais longos. De fato, ali, no escuro, ele parecia um pouco selvagem.

Percival deixou os dedos escorregarem para um cacho, colocando-o atrás da orelha do menino. Credence se inclinou para o toque

— Você quer falar sobre o pesadelo?

Credence encolheu os ombros.

— Foi só mais do mesmo. — Graves achou que ele não diria mais nada, mas, então, o garoto respirou fundo. — A pior parte de tudo o que Grindelwald fez foi me deixar acreditar que o senhor gostava de mim.

Os olhos de Percival se arregalaram e seu estômago pareceu inundado de uísque de fogo. Perante o seu silêncio, Credence encolheu-se, apoiando a bochecha em seu ombro, provavelmente para não ter que encará-lo.

— Desculpe por fazer você se sentir desconfortável.

Havia uma centena de motivos que faziam aquilo ser errado: eram dois homens, Credence tinha quase metade da sua idade, nenhum dos seus relacionamentos anteriores tinha durado mais do que meses, seu trabalho demandava demais e era muito perigoso... Graves passou o braço pelas costas do rapaz, aconchegando-o. Afeição e medo derramaram-se por suas veias: segurar Credence era como segurar seu próprio coração, exposto e vulnerável. Uma vasta gama de sentimentos que ele ignorara durante toda a vida de repente estava ali, materializada como uma fraqueza e como algo terrivelmente bonito.

Era assustador. Mas parecia crueldade ignorar Credence, e o menino já conhecera crueldade suficiente para toda uma vida.  

— Oh, Credence... Eu gosto de você. Muito mais do que deveria. Foi por isso que Grindelwald se aproximou de você com o meu corpo. — Era a primeira vez que ele se permitia dizer isso em voz alta, e a confissão amargou em sua garganta. — Eu sinto muito, de verdade, se eu não tivesse esses sentimentos, as coisas não teriam sido tão ruins para você.

— Você gosta? — Credence se afastou para encará-lo, os olhos abertos e brilhantes como os de um gato assustado. Percival assentiu. — Eu quis dizer como um adulto, Sr. Graves. Não só como alguém para ajudar, não só amizade... Mais do que isso.

Graves quase sorriu por ser Credence a esclarecer aquele ponto. Considerando os anos que ele passara com Mary Lou ensinando que esse tipo de desejo era um pecado terrível, só podia imaginar quanta coragem as palavras tinham exigido dele. Não era justo que Percival oferecesse menos.

Inclinou-se, tomando a face do garoto nas mãos com gentileza, e então o beijou nos lábios.  

Por um instante temeu que o gesto assustasse Credence, porém, ao se separarem, o rapaz sorriu como se aquilo fosse a coisa mais mágica que já houvesse acontecido com ele — não ser curado por meio de encantos, não ter poder suficiente para destruir Nova York, não estar aprendendo seus primeiros feitiços de levitação, mas estar ali, naquela varanda, com Percival.

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— Mary Lou nunca gostou de música — Credence falou, encarapitado no braço do sofá. — Mas às vezes eu ficava distribuindo folhetos em frente às lojas que tinham rádio para ouvir as canções.

No canto da sala, Percival remontava uma vitrola que comprara de Queenie, e que presumivelmente tinha sido de Jacob, pois não possuía nenhum traço mágico em sua composição, um problema que ele estava resolvendo. As mangas da sua camisa estavam dobradas até os cotovelos. Credence tinha acarinhado os pelos do seu braço no processo de ajudá-lo a enrolar o tecido.

— Eu gosto. Minha mãe me fez estudar piano quando eu era criança, embora eu não tenha certeza se ainda me lembro de alguma coisa. E eu costumava acompanhar minhas irmãs nos bailes quando elas eram mais novas, eu também gostava de dançar.

Credence enrolou os dedos dos pés, joelhos abraçados contra o peito.

— Eu vi seus movimentos no clube de duelos. Você deve ser bom dançando.

O comentário fez Percival sorrir. Havia levado Credence nas suas últimas três reuniões do clube de duelos, em parte porque ele precisava ser introduzido ao mundo da magia, e o clube sempre proporcionava demonstrações mágicas bastante interessantes, em parte porque Graves sabia que era muito bom naquilo. Era agradável ver o olhar de apreciação no rosto do rapaz.

Com um último aceno da sua varinha, a vitrola se remontou e começou a produzir uma melodia animada. Percival se levantou, sacudindo a poeira das vestes, e estendeu a mão para Credence.

— Dança comigo?

O garoto o fitou com desespero.

— Não, não, Percival! Eu nunca conseguiria fazer isso!

— Vamos, Credence! Não vai ser nada pior do que a explosão de quando você tentou adoçar o café com magia.

Talvez fosse o seu argumento, talvez fosse a música enchendo a sala, mas Credence pegou sua mão, apesar das sobrancelhas franzidas em uma expressão irritada.

— Não me culpe se eu fizer tudo errado.

— Eu guio você, tudo bem.

Sua mão envolveu a cintura de Credence enquanto os braços dele passaram por seus ombros. Percival deixou seus lábios resvalarem pela bochecha do garoto antes de balançar para um lado e para o outro. Em seguida ele tentou dar alguns passos.

Credence o acompanhou. Rodopiaram em um ritmo que era muito lento para a canção, mas que parecia bom mesmo assim; seus corpos tão perto quanto podiam, a respiração de ambos se confundindo. O baixo ventre de Credence estava junto ao seu, e Percival sentia-se quente.

Um passo para esquerda, dois para a direita, uma volta. De algum modo sua perna encaixou-se entre as do garoto, e ele suspirou.

— Ma também dizia que a dança era algo indecente. Dessa vez, acho que ela tinha razão... — Credence falou com uma risada, o rosto corado e uma ponta de provocação se destacando em sua voz. Que ele pudesse rir de algo que Mary Lou tivesse tido parecia melhor do que tudo que Graves já esperara. — Eu posso, Percival?

— Você não precisa pedir.

Credence grunhiu em concordância, embora fosse óbvio que ele ainda tinha dificuldade em acreditar naquilo. Percival fechou os olhos quando o rapaz o beijou, misturando avidez e delicadeza.

O feitiço que lançara sobre a vitrola funcionara com primor. Quando Graves acordou horas mais tarde, com Credence enrolado nos lençóis ao seu lado, uma canção suave continuava tocando.


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Notas finais do capítulo



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