O Pecado de Cyn _ Crônicas do Olho Azul DEGUSTAÇÃO escrita por Félix de Souza


Capítulo 3
2º pecado – Ira


Notas iniciais do capítulo

É melhor eu deixar um pedido de desculpas antecipado: Gente, me desculpem. Era necessário para historia e não, eu não faço disso uma coisa fofa. Com certeza.
Nesse capítulo narro uma cena de estrupo, ele é necessário para o desenvolvimento do personagem de várias formas.
Então, deixo aqui meu alerta e meu pedido de desculpas.
De forma alguma, não tenho a intenção de romantizar a cena e foi algo complicado de escrever, pesquisei e li sobre depoimentos de vítimas.
E mais uma vez Desculpem e obrigado pela atenção.



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O mal

O mal

O mal que os homens fazem!

The Evil That Men Do _ Iron Maiden

 

O inverno está chegando.

E com ele meu suposto aniversário.

Na verdade eu não tenho certeza nem da idade que tenho.

Pelo o que eu sei, tinha quatro anos quando Tom quase me devorou e que nasci no inverno. De lá pra cá venho marcando a passagem do tempo baseado nisso. Todo inicio de inverno eu me declaro um ano mais velho e faltam poucos dias para isso acontecer.

Tanto agora, como na historia que vou narrar a seguir.

Então, voltando no tempo, eu estava prestes há fazer oito anos.

Estávamos nas imediações de Judeca, área de maior concentração de orcs no reino de Sodom, minha terra natal.

Judeca ficava do lado mais distante possível de Dite, capital de Sodom e era o lugar onde se aglomerava os bandoleiros, excluídos da sociedade, doentes, loucos e é claro os temíveis orcs.

Um lugar onde prevalecia a lei do mais forte.

***

Gilles não era forte.

Não pra se impor as tribos orcs que dominavam o local, ainda mais agora que elas se reuniam em torno do seu messias, Ez, o de Pele Negra, o destruidor profetizado. Ez Azel.

No entanto Gilles era apto.

Pagava ao nobre local para estender o circo dentro dos limites do seu domínio e pagava á tribo orc mais forte do ano, para garantir sua paz. O poder entre os orcs oscilava a cada temporada, porém isso estava mudando.

Fazia uma semana que eu evitava Bel.

Eu me sentia traído, bobagem eu sei, ela não me devia fidelidade alguma, mas era assim que eu lidei com tudo naquela idade.

Da maneira mais idiota possível.

Foi ela que veio falar comigo.

— Gostou do que viu Olho Azul? _Indagou Bel, surgindo de repente.

Estava como sempre, limpando as latrinas e comparando comigo mesmo as aparentes semelhanças da merda e minha vida quando ela se aproximou sorrateira e sussurrou no meu ouvido. O arrependimento dela foi imediato, pelo torcer do nariz. Eu por minha vez já estava ficando insensível ao fedor, mas não a voz dela, aquilo me excitou no ato, tentei disfarçar.

— Não sei do que está falando senhorita. _ Porque eu não conseguia a chamar de Belinha como todo mundo? Até Scar fazia isso.

— Ah é? _ Disse fazendo um muxoxo. — Então aquele desempenho todo foi em vão? _ Ela deu o sorriso mais sacana que eu já vi até hoje. — Eu gosto de plateia, sabe?

— Eu passei a mão no rosto exasperado, tentando me controlar e esquecido de que limpava latrinas. Então...

— Eca! Que horror. _ Disse-me e se afastou a passos largos. Fiquei só olhando e foi quando Malacoda e os irmãos infernunitas se aproximaram.

— É, Olho Azul. Você certamente leva jeito com as mulheres. _ Disse Malacoda ao se aproximar.

— Eu não sou pareô pra você, “Duas caudas”. _ Foi oque o ouvi dizer para Bel outro dia. Começava a pegar a malicia do duplo sentido.

Rubicante rugia oque ele tomava por risada e apontava o dedo para o rosto do irmão.

— Agora ele zombou de você, irmão. _ E se voltando pra mim disse. — Ah. Eu daria um jeito de mudar a cor do olho dele pra roxo.

— Falando em cor. _ Rebati olhando Rubicante. — Que tal darmos um passeio em Judeca um dia desses, Rubi? Vai te fazer bem olhar as moçoilas na cidade, você nunca vai com a gente, né?

Rubicante era nosso Engolidor de fogo, seu dom infernunita o deixava imune às chamas e também com uma pele vermelha, coriácea e agora havia uma insinuação de pontas de chifres na fronte. Estava ficando cada vez mais bonito.

Eles se entreolharam e eu apanhei. Simples assim. Não muito para falar a verdade, só dois socos de cada um eu acho.

Deixaram-me escoriado no chão e partiram. Não me espancaram muito porque á noite haveria show e Gilles ficaria furioso se eu não pudesse fazer meu papel e então, haveria retaliação para eles também.

O show não pode parar.

* * *

— Eu lhe disse Olhos Azuis._ Me repreendeu Madame Deshayes. — Faça-se de ignorante. Eles estão começando a temê-lo.

Fui procura-la depois do show da noite, lembrando-me que o prazo estava acabando.

Bel não estava com ela, no entanto era de supor onde estava, com quem e oque estava fazendo.

— Vou tomar a poção. _Disse sem rodeios.

— Bom. Quando?

— No dia do meu aniversário. O primeiro do inverno.

— Mau, em cima da hora. _Disse ela acrescentando algo ao caldeirão. Estava sempre cozinhando algo nos últimos dias.

— Porque não antes? Indagou-me.

— Vai ser meu presente de aniversário. _ Dei de ombros. — Nunca tive um.

— Hihihi._ Riu-se Madame Deshayes. — Devia ter pensado nisso. _ Olhou para mim por sobre o caldeirão. — Mas acho que vou ter alguma coisa para você até lá.

Senti-me enrubescer. Não era minha intenção cobrar presentes.

— Não precisa. _ Retruquei apressadamente.

Depois de uma pausa e de um silêncio desconfortável, ela fitou-me e disse.

— Você vai mudar de ideia.

* * *

— Respeitável publico! _Abria o show do Desidia Circus, Gilles D’Arc mais uma noite.

E era sempre a mesma coisa. A chuva de tomates, cenouras e repolhos que seriam limpos e aproveitados depois pela trupe.

Às vezes dava para fazer uma sopa de legumes. Com sorte, algum ovo aproveitável não se partiria, era raro, mais acontecia se não algum resto de ovos dentro das cascas era acumulado um á um dentro de um balde. Sopa de legumes com ovo guache. Especialidade da casa. 

Restos de pipoca e algodão doce, qualquer coisa carcomida para se juntar a sopa rala de feijão.

Para vender essas coisas, Gilles contratava pessoas nas cidades em que tivessem o show, pessoas quase tão miseráveis quanto nós. Foi assim que Barbariccia foi aliciado para o circo como palhaço.

Onde nos instalávamos os ratos tremiam e os gatos desapareciam, as cidades eram como florestas e nós caçávamos como matreiros.

Algumas carteiras eventualmente desapareciam, havia bebida, nossa e de fora. Gilles nunca se incomodou que trouxessem bebida ao circo, ele até gostava. Bêbados eram alvos mais fáceis.

Por vezes ele ficava só com metade do que arrecadássemos, quando estava generoso. Quem disse que ele não tinha coração?

 E o último show daquela noite se encerrou com uma apresentação da trupe de mãos dada e uma generosa chuva de tomates, repolhos, cenouras, cebolas, ovos e até uma garrafa de uísque de fonte duvidosa que Scar amorteceu nos peitos.

Acho que urinaram dentro, mas quem se importa? Era uísque, você entende?

E sim, eu já bebia, quando podia. Era a maneira mais fácil de encarar a vida.

E então o inverno chegou.

Era o dia de se encerrar os shows, de madame Deshayes partir e de Gilles pagar seu débito, mas como ele não pagava ela permanecia, porém não por muito mais tempo.

Primeiro dia do inverno.

Feliz aniversário, Olho Azul.

À noite, antes de dormir, bebi a poção da revelação, tendo em mente a pergunta para a resposta que buscava.

A coisa mais louca da minha vida até então estava prestes a acontecer.

A hora da verdade.

No inverno ficamos isolados.

Não há para onde fugir. O céu se fecha, o vento gélido sopra, as estradas se trancam e a neve cai.

O clima de Sodom muda de um extremo á outro. Dias de calor escaldante viram lembranças borradas na memória da saudade.

Fui procurar um local isolado para dormir e esse, era o fundo do picadeiro.

Na confiança do seu sucesso, Gilles decidiu desarmar as tentas apenas após a noite em que não houvesse plateia alguma, como essa noite tinha sido um grande sucesso, ele manteve e pretendia manter o picadeiro armado mais alguns dias.

Ia ser o inferno desmontar o picadeiro se caísse neve, mas Gilles pouco se importava. Não era ele mesmo que sofreria.

Sendo assim, o picadeiro me serviu de refugio. Gilles estava agradavelmente ocupado com Bel e confiante que não tínhamos para onde fugir, ele tinha razoáveis motivos para crer nisso.

Tomei a poção. Dormi.

E nos meus sonhos eu não era eu mesmo, a não ser no final.

* * *

Meu nome é Sakhr.

Eu sou um chefe orc da tribo Shekmitas. Nosso símbolo é o crânio de um bode, para lembrar-se de nossa herança infernal.

Esse é o ano da ascensão dos Shekmitas e ele durará para sempre. Logo a débil civilização humana estará embaixo dos meus pés.

Para que os fracos sejam subjulgados e os valentes mortos.

E em breve, eu sentirei uma pequena amostra de satisfação desse poder.

Não sei por que e nem me importo, mas eu me delicio com as frágeis fêmeas humanas. Talvez seja a fragilidade delas que me atraem. Seus gritos de desespero, pedidos patéticos de clemência, coisas que uma orc jamais faria.

Meus lacaios acamparam fora da cidade de Dite, essa que é o covil principal dos humanos, em algum ponto em que a estrada fica próxima dos bosques.

Meu mensageiro humano fez contato com o crápula que vai me ajudar a realizar meu desejo; por uma quantia de prata. Os humanos sempre tem um preço para tudo.

Mesmo que seja para vender as próprias crias.

Eu me visto para guerra. Prendo meus cabelos longos e negros no alto com um rabo de cavalo, ponho meus braceletes, pego minha espada e o escudo. A espada e uma faca serão o suficiente, mas com humanos nunca se sabe. Minha capa é grande o bastante para forrar o chão. Estou ansioso e excitado. Eu quero aquela carne e quero logo.

Finalmente, avisto um humano a cavalo vindo pela estrada, como ele me avista e não faz menção de desviar de caminho, só pode ser ele e se não for, é um tolo morto.

O homem que surge a cavalo é bem vestido para os padrões humanos e seu cavalo negro, assim como suas vestes de mesma cor, estão em bom estado, mas é tudo fachada, eu sei que ele está em dificuldades com dinheiro e precisa da minha prata.

Os humanos são tão patéticos a respeito dos tesouros que acumulam para nós, orcs. Logo atrás vejo a confirmação surgindo na estrada a menos de dez metros de distancia do primeiro cavalo. O mensageiro humano que enviei montado num pangaré malhado veio buscar seu dinheiro.

Dinheiro é tudo para esses vermes, são nojentos.

— Boa noite. _ Saúda o humano. _Uma saudação que nunca entendi bem. Como podem saber se a noite é boa para alguém?

— Eu sou Sakhr, chefe dos Shekmitas, do sangue negro do caprino alado. _ Diz Sakhr. Eu. Ele. De repente ele olha por cima do ombro como se sentisse alguém o olhando de perto.

Eu me volto para encarar o humano.

Ele se volta para encarar o humano.

Eu.

Ele.

Eu sou ele. Nesse momento de alguma forma, eu era Sakhr. Via pelos olhos dele, por uma janela através do tempo.

Á bem da verdade, até hoje nem eu entendo direito. Foi oque Madame Deshayes me disse uma vez quando perguntei a ela.

— Então é você mesmo que vim procurar, grande chefe Sakhr. _ Me reverencia o humano e é bom que mostre respeito.

— Me chamo Belth... Ele tenta dizer, mas o interrompo.

— Não importa quem você é. _ E se voltando para o mensageiro. — Toma tua prata e some. _Jogo uma moeda de prata para o mensageiro que a pega no ar. O mensageiro partiu sem olhar para trás.

A face do humano é uma mascara de impassibilidade. Ele, no entanto hesita por um instante, mas segue em frente com a negociação.

— Muito bem. _Diz com apatia. — Mostre a prata e vamos acabar logo com isso.

Mostro a ele duas sacolas, cada uma do tamanho de um pote de mel, quinze moedas de prata em cada. Trinta dinheiros.

Jogo uma das sacolas aos seus pés, o que o obriga a descer desconfiado do cavalo. Ele tem a audácia de conta-las na minha frente. Como se eu fosse humano para enganar numa barganha.

— Ótimo. _Ele diz. — Dentro de dois dias, ao alvorecer, vou enviar minha filha a Caina, em busca de ervas, especiarias e papel. Ela vai acompanhada de um jovem imberbe e petulante que ousa a cortejar, como escolta. Um insolente abaixo do nosso status e uma serva. _ Diz friamente. — Mate os dois acompanhantes se quiser, mas mande minha filha de volta. _ Lança um olhar cobiçoso para a outra bolsa que está comigo e indaga. — E a outra bolsa?

— Quando sua filha voltar. _ Diz Sakhr impaciente. — Terei um dia, sem guardas, sem incômodos ou ela morre.

— Sim, sim, é claro. _Diz o humano chamado Belth.

— Um humano com ela e uma serva, hein? _ Eu rio, ele ri. — Ele é bom lutador? _ Ansiando por diversão. — E a serva é bonita? 

— Creio que você não vá ter muito trabalho com o garoto, enquanto a serva... _Ele diz com um esgar na boca. — Não é do meu agrado. _ E como se fosse um pensamento tardio. — Talvez seja do seu, considere uma gratificação. _Diz, agora achando alguma coisa divertida.

Ao fitar os olhos de Sakhr, desconfiado da troça, o sorriso do humano se esvai lentamente.

— Um dia. _ Diz Sakhr.

— Como?

— Você disse dois dias e eu a quero na estrada logo. _ Diz Sakhr alisando a bainha da espada de modo casual. — Não posso me demorar, isso, ou devolva o dinheiro e saia com sua vida.

O humano pensou sobre, ou fingiu pensar no assunto.

— Certo, entendo. _ Diz coçando a barba que começava a dar sinais de fios grisalhos. — Me de um dia para preparar tudo. _ E depois como se fosse à coisa mais natural do mundo e com um sorriso afetado nos lábios, estendeu a mão para o orc que a pegou de volta.

— É sempre bom negociar com o senhor, chefe Sakhr. _Eles já se conheciam afinal.

E assim, Belth vendeu sua filha para o chefe orc Sakhr por um dia e uma noite.

* * *

Meu nome é Belth.

E eu serei o homem mais importante de Dite, custe o que custar. Mais importante do que o rei Mammon, se puder.

Milton Mammon III, rei de Sodom.

Mas a verdade é que estou quase falido.

Meu vicio com jogos quase me levou a bancarrota, minhas negociações de armas com os orcs estão sobsuspeita, por incompetência dos meus subordinados quase fui descoberto. Não tenho escolha, vou vender a pureza da minha filha para aquele orc imundo.

Com trinta moedas de prata, reerguerei meus negócios e retomarei minha escalada ao poder antes que meus inimigos notem minha fraqueza e caiam sobre mim como lobos famintos.

Por sorte, um dia viajei á negócios para Caina e levei Mara comigo. Os negócios tinham a ver com armas para os orcs e Sakhr me avistou ao longe com minha filha ao meu lado, antes de despachá-la com sua serva para a hospedaria de costume.

Logo vi que ficou fascinado por ela. Não imaginava naquela época, dois anos atrás, que ia chegar a esse ponto. 

Minha filha, Mara.

Mara era loira, alta, graciosa, uma força da natureza de olhos azuis celeste em plena vida aos 15 anos.

Idade em que uma moça está mais que pronta para casar.

Mara era o nome de minha mãe?

Mara é o nome de minha filha.

Eu.

Ele.

Eu sou ele.

Por um instante, ele olha por cima do ombro como se sentisse estar sendo observado por mim.

Ele mora numa casa maior que a tenda principal do circo. Rico, muito mais do que Gilles já sonhou em ser, ou pelo menos era.

A casa tem o reboco descoberto em algumas partes, é sutil e eu só noto porque o incomoda.

Encontro Mara nos jardins, passeando com sua acompanhante, Leiza.

A grama no jardim está ficando um pouco alta, ervas daninha estão brotando no calçamento e na trilha de paralelepípedos que atravessa o jardim, os arbustos precisam de poda e as flores estão mal tratadas e murchas, de longe tem uma aparência melhor, mas de perto dá par notar a decadência tomando conta do ambiente.

Leiza, a serviçal que acompanhava minha filha/mãe, era um pouco menor que Mara, meia cabeça talvez, de olhos amendoados, seus cabelos eram nuvens negras em cachos, contida em sua postura e de pele da cor de café, um contraste para Mara.

Tão linda quanta Mara.

Nunca chegaria aos pés de Mara.

Minha mente se confunde com a dele e isso me deixa zonzo.

Mara também estava acompanhada daquele jovem petulante, filho de comerciantes locais, Gil.

Gil de que?

Já disse para Mara... Controle-se, Belth. Chegou a hora de se livrar desse incomodo. —Pensou Belth.

— Mara, minha filha. _Diz Belth forçando um sorriso. Sorriso que ela retribuiu. Sorriso que eu conheço tão bem.

— Papai! _Ela corre para seus braços. — Voltou cedo das negociações. _ Ela está preocupada.

— Sim, voltei. _ E depois eu/ele olha para a serva, acompanhante, será que ela é como eu? E depois para o rapaz.

— Gil... _Ele não se dirige à serva. — Aqui de novo.

— Bom dia, senhor Belth.

Detestamos Gil.

Belth o detesta por ousar cortejar sua filha. Eu? Não sei. Porque ele me parece familiar?

— Mara. Preciso que faça uma viagem para mim. _ O infortúnio de não se ter um filho homem adulto. Meu herdeiro só tem cinco anos ainda, mas nesse caso, vem a calhar.

— Sim, papai. _ A tola adora viajar. Desconhece os perigos. —  Devo ir a Caina novamente?

— Certamente que não a mandaria para mais longe que isso.

— As estradas não estão seguras atualmente. _ O intrometido Gil se manifesta. Era esperado. — Se precisar de companhia...

Mara chega a enrubescer. O que se passa por essa cabeça tola? Belth a observa com uma sobrancelha erguida.

— Sabe usar isso que ostentas na cintura meu jovem._ Aponta Belth para uma espada fina que ele chama de florete.

— Com certeza senhor Belth. _ Diz o jovem petulante com um sorriso largo. Os olhos riem também. Quem é?

— Tudo bem, mas tenho condições. _ Todos prendem a respiração.

— Leve Leiza com vocês e jovenzinha, é para me contar tudo que acontecer depois. _ Diz se dirigindo a serva com seriedade.

— Sim, senhor Belth. _ Diz Leiza com uma mesura.

— Muito bem. _Prossegue Belth. – E vocês devem voltar até o crepúsculo. Caina não é muito distante daqui.

Estava tudo pronto, a armadilha estava lançada, sua parte no acordo quase encerrada.

Beijou sua filha na face.

* * *

Meu nome é Mara.

E estou no inferno.

O cavalo surgiu subitamente, vindo da mata a beira da estrada. Em cima do cavalo havia um único orc, alto e musculoso, ameaçando-a com uma espada na mão e um escudo no braço esquerdo.

Gil nem sequer resistiu, não sacou a espada, acovardou-se e jogou a bainha ao chão. O orc riu-se de puro desdém, sua presa de javali amarelada úmida de saliva.  Decepção e perplexidade me invadem, como se fossem minhas, mas eu sei, são lembranças de Mara. Toda aquela historia de se tornar cavalheiro um dia, tudo mentira. Gil é um covarde.

Gil foi imobilizado e amordaçado, com ele preso foi tudo muito rápido.

Leiza tentou fugir, mas como recompensa recebeu um disparo de flecha acima do joelho, foi capturada, também amarrada e isso me desmotivou a tentar uma fuga. Desmotivou-a.

Logo em seguida amarrou a mim e a Leiza, juntas e em seguida transpassou Gil com seu próprio florete. Disse que ele não era digno de ser morto por sua espada e o terror teve inicio.

Seguiu conosco para uma mata afastada da cidade e ali nos violentou.

Ele violentou Leiza na frente de Mara primeiramente, que se resignava ao ato e Mara não entendia como ela aguentava tudo calada.

 A cena só aumentou a sua própria agonia perante a possibilidade dela ser a próxima. Secretamente e de olhos fechados, Mara reza para que Leiza esgote o monstro. Suas preces não são atendidas e o apetite do monstro parece voraz.

Chega à vez de Mara, e lhe parece que ela é violentada com força redobrada.

Calada, ela pensava em sua mãe e chorava. Sua mãe que morrera há um ano antes, nunca deve ter passado por tal situação.

Mara é estuprada num matagal próximo a arvore onde fora amarrada. Agora com Leiza como testemunha, embora Leiza sequer pareça estar ciente dos fatos, seus olhos focam o vazio.

 Durante o ato, o orc faz comentários sobre si mesmo. Revela que saiu de Judeca recentemente, onde estava após ter assassinado o responsável pela morte de seu irmão e assumido o poder na tribo dos Shekmitas.

Fez elogios e comentários agressivos sobre ela/eu.

— Você é uma humana muito ignorante, mas é bonita._ Eu sinto sua agonia, a agonia de Mara é minha, o nojo, a repulsa, a dor.

Ela chora e clama pela misericórdia dos deuses, para que ele pare de lhe tocar.

Ele irrita-se, diz não aguentar mais ouvir o nome dos deuses, puxa-lhe pelos cabelos, lhe dá murros, bate com o cabo da espada na boca dela partindo um dente.

— Pare com esse choro! Isso é tudo que mais se ouve de humanos._ E seguido de um rugido animalesco disse.

— Hoje eu sou seu deus! _ Berra Sakhr.

O seu pretendente estava á poucos metros, sofrendo seus estertores de morte onde foi imobilizado e sua serva, amiga, não parecia reagir a nada, como se não estivesse ali.

Em meio a todas essas agressões ele a empurrou para se apoiar de pé em uma rocha que havia por perto, um local mais escuro, e a estuprou e ao violentá-la pela segunda vez lhe mordeu os seios.

Dizia não saber por que estava fazendo aquilo com ela, só sabia que não ia parar por que... Porque estava bom.

E assim revezou entre ela e Leiza o dia todo.

Ao entardecer, levou seu dinheiro.

Cortou-lhe uma mecha de cabelo dourado de lembrança.

E então, tudo acabou.

Ele saca a espada mais uma vez em direção a Leiza e confunde a insensibilidade dela com bom comportamento e decide que ela merece viver. Vira a mesma espada para Mara que se debateu o tempo todo. Não tem explicação para deixa-la ir, mas deixa.

Gil á essa hora já parecia estar morto.

O orc monstruoso que as violentou, praticamente o dia todo, só parando para beber e se alimentar, partiu em seu cavalo á toda velocidade.

Elas levaram um tempo á mais para se recuperar, se reerguer e encontrar a estrada já com a noite bem avançada. Morrendo de medo, esperou o dia amanhecer para seguir em frente.

Teve medo também de chegar a casa naquelas condições e ser responsabilizada pelo pai, do que ocorrera.

E foi assim que eu fui gerado, soube na hora.

E algo mais, só que eu não havia percebido naquele momento.

* * *

O tempo todo em que a poção fez efeito, eu era essas pessoas, e suas lembranças agora são minhas. O que sentiram, ouviram e pensaram. Como se fossem minhas. Então me perdoem se parecer confuso, pois é para mim também.

***

— Senhor Belth?

Aquilo foi um escândalo.

Todos na cidade ficaram sabendo que a filha de Belth, minha filha, não era mais pura e pior, tinha sido violada por um imundo orc.

— Belth!

Belth bem que fez de tudo para evitar o escândalo, mas não havia previsto que a filha ficaria tão abalada, que não conseguiria andar pela estrada até ver o sol nascer de novo.

Quando foi que eu me tornei Belth?

Num lapso de pensamento? Num piscar de olhos.

Foi natural ou provocado por mim? Pela poção? A poção sabia ou me dava poder de saber quando alguém estava vulnerável?

— Belth, está me ouvindo?

Aquilo foi real?

A poção de Revelação de Madame Deshayes, até hoje eu não sei direito como aquilo funcionava.

O fato é que voltei à mente de Belth. Eu era ele, era eu mesmo, mas ele era só... Belth. E ele era meu avô.

E tudo com o que ele se importava na verdade, era com ele mesmo.

— Pare de gritar nos meus ouvidos, Salomon._ disse frustrado. — Como anda a situação?

A situação, segundo Salomon, Administrador da casa Zabel, de Belth Zabel, era crítica.

Leiza que servia na casa Zabel estava em estado letárgico, não cumpria mais com seus deveres e por vezes se recusava até a comer.

— É isso que eu mereço por estender a mão para essa ralé. — Mande á embora. _ Disse com frieza. — Não há lugar para uma boca inútil nessa casa.

— Mas senhor, eu temo que sua filha tenha apreço pela companhia da...

— De minha filha cuido eu, Salomon. _ No seu tom de voz uma nota de irritação autoritária.

— Sim, senhor._ Curvou-se o senescal da casa Zabel.

— E o corpo do rapazola? _ Ele se referia a Gil.

— Ainda não foi encontrado, senhor. _ Disse Salomon com pesar. — Provavelmente foi arrastado e devorado por lobos.

Belth considerava por a culpa da defloração de sua filha, no rapaz que ele tomava como morto. Uma historia envolvendo sentimentos confusos em que sua filha tivesse inventado o orc e o rapaz fugido. Poderia não resolver, mas ia confundir os tolos e amenizar os fatos, sem contar que já havia quem desconfiasse do envolvimento dele com orcs.

Mas ninguém tomaria a filha dele como esposa, violada e ainda por cima, por um orc. Maldito orc.

Porque deixou a serva viver?

Porque não guiou minha filha até a estrada e a soltou?

Será que sumiu com o corpo do garoto? Por quê?

— E minha filha? _Indagou ao seu mordomo-mor, enquanto alisava mechas de seu cabelo grisalho.

— Toma banhos constantes, chora e regorjeia tudo que come._ Disse com tristeza o velho mordomo, seus modos instintivamente imitando o do patrão. Só que já não há tantos cabelos para passar entre seus dedos como á dez anos atrás. — Nesse exato momento ela está no seu quarto, chorando enquanto dorme.

Três meses se passaram e a gravidez era cada vez mais fragrante.

A história do orc prevalece sobre a do jovem impulsivo e fugitivo.

O tempo de tomar remédios que causem aborto seguro passa e o feto sobrevive às três tentativas de Mara de se livrar daquela coisa.

Eu. Minha mãe tentou me matar três vezes no ventre.

Sabia que nunca seria despojada, nunca mais veria seu amado Gil, sua serva tinha o paradeiro desaparecido e assim que eu nascesse, teria que me encarar todos os dias.

Aos oito meses de gravidez, desistiu.

De se livrar de mim, de sonhar com o amor, das cobranças do pai que no final pôs a culpa nela pelo acontecido, da vida.

E um dia, ficou sozinha na casa, no quarto, o pai viajara para salvar os negócios da família, o irmão agora com seis anos dormia e a ama seca tirava a cesta da tarde. Tirou uma corda debaixo da cama que nos últimos dias olhava com frequência. Tinha conseguido nos estábulos da família, uma corda que era usada para prender cavalos na hora dos adestramentos.

E foi assim.

O meu nascimento se deu na morte.

Nasci de um parto espontâneo, do corpo enforcado de minha mãe. Ela se foi e tentou levar consigo a aberração que gerava no ventre.

Eu já nasci lutando pela vida e tenho as cicatrizes até hoje.

* * *

Eu vislumbro meu próprio nascimento.

É uma coisa muito estranha, ainda mais, pelas circunstâncias.

O momento que eu nasço é o mesmo que Mara morre tentando me levar consigo.

Ela prende a corda no alto de uma trave do teto, faz um nó em forquilha que vem ensaiando há meses, sobe em uma cadeira e depois em dois caixotes que deixou empilhado próximo, coloca a corda em volta do pescoço e salta para os braços da morte.

Sem remorso, sem dúvida, sem medo.

A morte é misericordiosa. Eu ouço o estalo do pescoço se partindo, imagino se é a ultima coisa que ela ouviu também.

Já vi pessoas morrerem enforcadas em praça publica que não tiveram a mesma sorte, e se debateram, urinaram e só depois de muito sofrimento, morreram.

Mas o solavanco do corpo dela sob a corda foi talvez, umas das coisas que me ajudaram a sair, me empurrando para baixo.

Eu me vi saindo abruptamente, batendo de costas na cadeira que por sorte ou muito azar, amorteceu minha queda e depois rolando para o chão frio e caindo de boca. Cheguei ao mundo beijando esse solo vil.

É por isso que eu tenho uma cicatriz do lado direito da boca desde sempre.

Por instinto me virei e a pancada também me fez expelir algo que estava no meu peito.

Ao mesmo tempo, estava ali contemplando tudo isso, já não ligado a mente alguma, só observando.

Era terrível e fascinante ao mesmo tempo. Era loucura e estase, finalmente tinha minha resposta. Chorei.

Por tudo, pela situação, pelos acontecimentos que levaram a isso e por saber definitivamente a mais terrível verdade.

Eu nunca fui amado por ninguém.

Aproximei-me do corpo dela, interagindo no sonho pela primeira vez e toquei nos seus pés. Fitei aqueles olhos azuis tão idênticos aos meus. Foi quando ela estremeceu.

O susto me fez cair para trás, sentado, ainda com lagrimas nos olhos e agora com pavor. Ela balbuciava algo que eu não ouvi á principio, mas o tom de voz não demorou a se elevar e se tornar urgente. Então eu pude ouvir.

— Eles estão chegando, Olho Azul.

— O... O quê?

— Eles estão chegando!

— Não entendo.

— Acorde!

* * *

Dor.

Uma tapa em cheio na minha cabeça sonolenta, ainda entorpecida pelo sonho ou pela poção alquímica.

Confusão.

Estive em três mentes, no passado antes de eu nascer, pelo menos uma daquelas pessoas estava morta.

Ou isso, ou a poção era destinada a me impor uma alucinação ricamente elaborada.

— Mova-se!

Uma voz rompe o véu da escuridão que turva minha visão, logo em seguida, um rosto.

— Eles estão chegando.

Ainda sonhava ou sai de um pesadelo para outro? Porque lutar para viver, quando ninguém lhe ama?

— Deixe que venham. _ Sussurrei.

Então, o rosto que falava comigo rompeu a neblina que encobria minha mente atordoada ao aproximar seu rosto do meu.

Era Bel, em toda sua gloria, seus olhos verdes esmeraldas me fitavam e não sei por que, imaginei florestas densas e profundas naqueles olhos.

— Se você não se mover agora, você morre. _ Pensei que era mais uma ameaça entre mil, então ela suspirou e continuou. — Eu morro e Madame Deshayes também. _Ela me segurou pelos ombros. — Me ajude.

Porque lutar para viver, quando ninguém lhe ama?

Para que alguém lhe ame. Um dia.

É a única resposta e morto, não adiantaria muita coisa ser amado, imagino. Ela, Bel, precisava de mim.

— O que está acontecendo?_Indaguei entorpecido.

— Mova-se, agora, vamos. _ Disse ela, olhando para entrada do picadeiro. Lá fora já se ouvia vozes entrecortadas pelo vento e risos.

Levantei-me meio trôpego e a segui para trás das sombras de uma arquibancada.

— Droga, demoramos muito para se mover. _Ela lançou-me um olhar reprovador e em seguida me estendeu a mão. Estava eu tão aturdido que confundiu aquilo com um gesto para que eu segurasse sua mão, mas quando a toquei, senti o frio do cilindro de vidro que estava me entregando, era outra poção, essa era negra, ao menos era oque parecia naquela penumbra.

— O que é?_ Sussurrei por puro instinto. Ninguém ainda entrara na tenda.

— Umbrosia. _ Disse-me Bel. –Madame Deshayes mandou lhe entregar em caso de emergência e acho que é dentro de dois minutos.

— O que está acontecendo. _Disse agora desperto.

Então ela me contou.

Gilles D’Arc foi até a tenda de Madame Deshayes ainda naquela noite, espancou e capturou a senhora, e depois de dominada ele a amordaçou e amarrou os pulsos nas costas. Tudo isso com a ajuda de Draghignazzo.

Tentou capturar Bel, porém, essa ouvindo os gritos que vinham da tenda de Madame, partiu antes que Gilles voltasse.

 Já estava em estado de alerta desde manhã, quando Madame Deshayes lhe entregara a Umbrosia, recomendando da-la a mim em caso de emergência.

Resolveu ficar nos arredores, se aproveitando das sombras das tendas para se esconder, quando ouviu que Gilles também queria capturar-me e uma dica de onde eu estava.

Não entendi porque Gilles precisava me capturar se era só me chamar e era isso que eles viriam fazer certamente, ela me disse.

— Vão chama-lo, é claro, como se estivesse tudo bem. _ Disse me segurando firme pelos ombros. — Mas o que Gilles quer com você hoje, passa de uma mera surra.

— Mas o que eu fiz? _Disse assombrado.

— Não importa, agora._Disse-me com urgência na voz. Ele quer acabar com você.

 Disse também que um dos membros da trupe me vigiava o tempo todo.

— Farfarello. _Resmunguei com rancor.

— Não. _Ela disse olhando nos meus olhos. —  Scarmiglione.

— Olho Azul!_ Nesse momento o próprio Scar entrava na tenda como que se invocado. Atrás dele vinham quase todos os membros da trupe. Os irmãos infernunitas, os palhaços e Scar. Sete deles.

Estavam ausentes, Calcabrina que estaria enjaulado nessa hora, Draghignazzo, os loucos, Libicocco e o próprio Gilles.

— Olho Azul, onde está? _Perguntou, olhando ao redor e parecia ansioso.

— Beba. _Instigou Bel.

— O que está acontecendo? _Indaguei. Nada fazia sentido.

— Ainda não sei, mas Madame está em perigo e conta com você, isso eu sei. _ Disse com mais urgência. — Beba.

— O que isso faz? _ Já tirava a rolha da boca da poção. Beber ou jogar fora e aparecer. — O que isso faz?

— Poe um deus, dentro de você!

Sussurrou mais uma vez, agora se aproximando bem do meu rosto, dava pra sentir o seu halito de erva cidreira e menta.

— Não vou dar conta deles sozinha, nem com você, precisamos de reforço. _Apontou para jaula no centro do picadeiro. — Depois que eles passarem pela jaula, apareça e mantenha-os distraído. _Então me deu um sorriso mordaz. — Vou soltar Nevasca.

Referia-se ao Lince Albino que fora adquirido por Gilles, ao qual tanto se afeiçoou e aparentemente era recíproco.

O animal só obedecia ao seu comando. Dito isso, se afastou sorrateiramente, fazendo uso das sombras das arquibancadas para rodear a trupe que adentrava no picadeiro. Uma coisa que notei e aquilo realmente me deixou em estado de alerta, é que eles pareciam se mover com cautela. Como se esperassem ser atacados. Aquele tipo de atitude não era normal.

Era atormentado pela dúvida. O que fiz? O que estava acontecendo?

Porque Scar me vigiava? Logo Scar? Não Farfarello?

— Olho Azul, Gilles o chama! _Exclamava Scar. — Venha!

Pela fresta da tenda que se insinuou quando o último deles, que era Alichino entrou, lá fora ainda era madrugada.

Que noite infernal, tomei a poção, Umbrosia era o nome, não sabia que poções tinham nome, mas essa tinha. Não se esqueça dela.

Como descrever a sensação?

A melhor explicação era a de Bel. Tinha um deus na garrafa.

Diferente da poção que aumentou meus reflexos da última vez, que me fez parecer mais leve e mais rápido, essa fazia isso e muito mais. Era como se eu andasse dormindo o tempo todo e finalmente houvesse acordado. Sentia-me mais rápido, primeiro sintoma que notei porque já o havia sentido antes, e também me sentia totalmente disposto, mais forte e mais alerta. Como se minha mente tacanha de meio orc tivesse se expandido.

Dei a volta na arquibancada e apareci diante deles, deduzi tudo e encarei meus algozes.

— Era Gilles. _Disse lentamente quando surgi.

— Olho Azul? _ Disse Scar quando me viu um sorriso torto nos lábios. — O que? Sim, Gilles quer vê-lo.

— Gilles era Gil. _Declarei para mim mesmo.

Essa declaração deixou a maioria deles confusos, mas pôs uma expressão de alerta no rosto de Farfarello.

— Ele voltou, não sei como, soube de mim e me comprou do meu avô. _ Disse divagando. — Por isso o rosto me parecia familiar. E ele me odeia, porque eu sou o filho que desgraçou a vida da mulher que ele amava, e me criou só para poder me punir. _Então encarei Farfarello. —E hoje ele resolveu por um fim nisso.

— Do que você está falando Olho Azul. _ Comentou Alichino. — Tá bêbado, é?

— E você estava me vigiando, para Farfarello, porque sabia que algo ia acontecer e queria cair nas graças de Gilles. _Essas palavras foram dirigidas a Scar. — Pensei que era meu amigo. _Disse com tristeza. — Meu único amigo e me vigiou para eles e agora vem aqui para me encurralar com os outros.

Farfarello recuava discretamente para a entrada da tenda.

O sorriso de Scar se desfazia numa expressão sombria.

O dos irmãos infernunitas crescia, juntamente com o olhar malicioso dos palhaços, Barbariccia e Cagnazzo. Cagnazzo inclusive deu sua risada característica de hiena.

Bel havia alcançado a jaula com sucesso aparente, até então.

— Porque Scar? _Instiguei-o

Ele baixou a cabeça, pensei que era remorso ou arrependimento, por que seu cabelo longo e desgrenhado escondia parcialmente seu rosto marcado de verrugas e cicatrizes das muitas apresentações juntos.

— Para ficar do lado do mais forte, é claro. _Disse ele com uma risada. Hihihihiahahahahaha. — Aaaah Olho Azul._Disse com um aparente suspiro de alivio. — Como é bom não fingir mais que sou seu amigo.

A raiva começou a se insinuar no meu coração como uma brasa.

— Como eu poderia ser seu amigo? _Disse com escárnio na voz. — Você é tão estúpido mesmo para acreditar que ser espetado quase toda noite por você me faria seu amigo?

A raiva era uma chama.

— Você é tão estúpido que eu estou admirado de que tu conseguiste deduzir alguma coisa por conta própria. Não entendi tudo que você disse e não vou fingir isso._ Olhou de mim para a trupe atrás dele. — Mas está certo. _Voltou a olhar para mim. — Gilles decretou que seu sofrimento termina hoje e me liberou para por você na roda de arremesso.

A roda de arremesso que ele se referia, era o apetrecho em que ele ficava preso girando enquanto eu arremessava facas nele na apresentação do nosso número.

— E não diga que Gilles não tem senso de humor. _Disse afinal.

 A Ira.

A Ira me dominava.

Anos de humilhação e mau tratos explodiram dentro de mim. O conhecimento de que nem minha própria mãe me desejava, de que era tudo culpa de meu avô, de que meu pai era um violador imundo, de que meu único amigo me usava para cair nas graças daquele que também era seu algoz. 

A ira é uma desgraça.

Gritei para extravasar a ira que ardia em meu peito e como que em respostas ao meu grito, houve um rugido vindo da jaula de trás da trupe surpreendida. Bel havia soltado Nevasca.

Todos se voltaram para jaula e eu soltei sobre Scar que era o mais próximo de mim, com uma força que com certeza o surpreendeu, pelo seu olhar. Surpreendeu a mim mesmo.

Bel estava em cima da jaula, Farfarello já havia se retirado antes de tudo isso, os outros me ignoraram, mantendo a jaula entre eles e Nevasca, procurando sair da tenda. Na correria, as asas de Alichino esbarraram em uma das muitas lamparinas que faziam a iluminação no interior da tenda, dando inicio a um pequeno incêndio, que só aumentaria.

Nevasca se colocou a perseguir a trupe que fugia, e Bel seguiu atrás a fim de controlar a situação e não perder o Lince no processo.

Só restava a mim e Scar dentro do picadeiro.

Eu segurava Scar que não era rápido o bastante para se desvencilhar de mim e o derrubei, batendo ele com toda força no chão.

E o espanquei, bati com toda força despertada pela Umbrosia que corria nas minhas veias e isso era bom.

Eu sentia a força da poção agindo no meu corpo, e me concedendo um poder ao qual nunca tinha experimentado antes.

E continuei a bater até a exaustão.

E ele simplesmente ria.

Ahahahahaha! _Grasnou Scar. — Bata, isso mesmo seu porco imundo! _Ao mesmo tempo em que batia, percebia que suas feridas se fechavam. — Bata até a sua força acabar, até seus dedos sangrarem_ E era oque estava começando acontecer. — Se suas facas não me mataram até hoje_ Dizia sendo espancado_ oque você acha que pode fazer com os punhos nus. _E gargalhou mais uma vez.

Eu já estava, mesmo sob o efeito da Umbrosia, chagando ao limite de minha exaustão.

— E quando você não tiver forças nem para correr mais _Disse-me Scar sorrindo_ eu vou devora-lo.

O incêndio. Eu estava batendo nele há minutos e o incêndio já havia se espalhado. Eu não havia notado até que uma brasa bateu em meu ombro sem causar danos. Havia caído das traves de madeira que sustentavam o teto do picadeiro. A brasa resvalou em mim e foi bater no ombro de Scar, que parou de rir naquele mínimo instante para dar um grito de assombro. A brasa não me feriu, mas onde ela bateu nele, o queimou.

E ali, o ferimento não cicatrizou.

Parei um instante para respirar, foi tolice, o ar se enchia de fumaça.

— Agora corra Olho Azul._Disse-me Scar sorrindo, os dentes tortos manchados de sangue, ainda deitado. — Quando eu me erguer, estarei recuperado e vou matar você.

Ignorando a fumaça, respirei fundo mais uma vez, segurei Scar pelas pernas e braços e com a força sobrenatural advinda da Umbrosia o ergui acima da cabeça e me dirigi em direção à lona da tenda onde o fogo de alastrava.

Ao ver isso Scar se debateu e encontrou forças para lutar, tentou se livrar de mim ao perceber o que eu pretendia fazer.

Tarde demais.

— O quê? _Dizia com um tom de incredulidade. –O que vai fazer?

— A brasa, você não se curou dela.

— Não, Olhazul, somos amigos... Não faça isso. Não!

O Arremessei contra a lona. Era como se ele fosse feito de palha. Incendiou-se e em desespero tentava se desvencilhar da lona mais apenas se enroscou mais nela. Anos depois confirmei minha suspeitas daquele dia. Trolls são vulneráveis ao fogo e é praticamente o único meio garantido de destruí-los. Scar tinha a mesma fraqueza.

As chamas da tenta borrifaram em mim quando o arremessei, sem causar grandes danos, na verdade, nada mais que um desconforto.

Sai da tenta.

A trupe havia se dispersado, o fogo do picadeiro ameaçava tomar as outras tendas.

Vi a tempo que Bel usava um arco para alvejar Gilles, enquanto Draghignazzo o cobria com um escudo, de alguma forma Madame Deshayes havia se libertado de suas mãos e corria em direção a Bel, enquanto Gilles se dirigia a um cavalo. Calcabrina fora solto e encarava Nevasca. Eu não conseguiria passar por Calcabrina sem abatê-lo. Vi umas pedras ao redor que usei como arremesso para distraí-lo, enquanto Nevasca abria sua barriga com um golpe poderoso de sua garra. Pobre Calcabrina.

Foi meu o golpe de misericórdia. Peguei uma pequena rocha solta nos arredores, devia ter uns cinquenta quilos. Eu mesmo me admirei com a força que tinha naquele momento. Com ele prostrado ao chão, usei-a para esmagar sua cabeça com um golpe só e mais uma vez me espantei com minha força.

Vendo isso, Gilles e Draghignazzo não tiveram dúvida quanto a melhor atitude a ser tomada. Fugiram.

Neste momento, eu, Bel e Nevasca nos voltamos para eles, Madame Deshayes parecia ferida e abatida, não iria se envolver.

Gilles galopou noite adentro, seguido de seu fiel guarda costas, mas não antes de me lançar um olhar que jurava vingança.

E assim, meus dias no Desidia Circus acabaram. De repente eu era livre e havia matado pela primeira vez.

Havia matado meu melhor amigo.

* * *

O inverno chegou. 

E um vento frio e forte veio com ele e espalhou pela madrugada adentro o fogo pelo assentamento. O Desidia Circus estava destruído, a trupe dispersada e se tivessem o mínimo de juízo, fugiriam de Gilles e também estariam livres. O que era bem provável, já que Gilles não voltara pela manhã.

Perderá seus escravos e todo seu dinheiro.

Porque seu dinheiro era nosso e na pressa de fugir de mim e de Nevasca ele deixou tudo para trás. Um meio baú de Prata, comida, roupas, preciosas folhas de papel e tinta.

Colocamos tudo na carroça de Madame Deshayes.

Calcabrina estava morto e meu velho amigo Scar, reduzido às cinzas. Foi tudo que encontrei onde havia lhe deixado. 

Tomamos um café da manhã farto, quando uma tira de luz prateada se insinuou no horizonte, subimos na carroça em silêncio e partimos. Era hora de algumas explicações. 

—Afinal, alguém quer me dizer o que aconteceu? _Indaguei para ninguém em particular. Estava na traseira da carroça, observando a fumaça subir do assentamento.

Logo chegaria a Guarda da cidade e estaríamos encrencados. Era o que eu achava.

Houve um silêncio desconfortável, foi Madame Deshayes que se manifestou. 

— Gilles queria nos matar a todos, mas eu sabia disso antes de ele fazer e isso facilitou as coisas._Declarou Deshayes.

Olhei para ela e pude notar hematomas no canto esquerdo da boca. Parecia-me que facilitar não era o mesmo que resolver,
mas não disse nada a deixei falar.

Madame Deshayes não era só alquimista, também era vidente.

— Gilles queria fazer isso, porque eu disse que precisava levar você comigo. _prosseguiu ela. —Em troca perdoaria a dívida dele e ainda daria metade do que havia arrecadado.

—Quanto?_ Perguntei sobre o dinheiro. 

— Mais que suficiente. _ Respondeu dando de ombros. — Ainda assim ele não quis e chegou até mesmo a se exaltar. 

— Não parece típico dele._Duvidei. 

Madame disse com alguma irritação em seguida.

— E você pode dizer que conhece Gilles agora?_Fiquei em silêncio, me lembrei do sonho.

— Tem razão. Ele não me deixaria partir, porque pensava que se vingava de mim. _Senti que ela me olhou de cima embaixo.

— O sonho? _Ela perguntou e apenas acenei positivamente. — Conte-me. _ Contei tudo, ressaltando a parte que deduzi que Gil e Gilles eram as mesmas pessoas. 

— Ele sabia de nossas conversas. _Disse-me. — Com riqueza de detalhes, sabia inclusive sobre a poção que eu lhe dei._Deshayes me contou.

— Isso é culpa minha._Suspirei triste. — Eu contei pra Scar, falava algumas coisas de nossas conversas, por que..._Minha voz esmoreceu até o silêncio. 

— Porque confiava nele? _Essa pergunta foi feita por Bel, que estava na outra ponta da carroça, acariciando o Nevasca.

Apenas afirmei de novo.

— Ele contava tudo para Farfarello, que repassava para Gilles. _ Repassei mentalmente aqueles dias. — É provável que ele tenha se aproximado de nós sem levantar alarde. Farfarello sabia que se ele mesmo fizesse isso, eu ficaria alerta, mas com Scar por perto? _Abanei a cabeça. — Eu não ficaria preocupado.

E assim nós concluímos o que acontecerá nos últimos dias e em especial naquela noite.

Não fui contrariado, logo tomei minha dedução como verdade, só restava mais uma questão.

— Porque a senhora precisa tanto de mim ao ponto de correr esses riscos?_Indaguei.

Houve mais um minuto de silêncio constrangedor, Madame Deshayes procurava as palavras que moldariam meus próximos passos.

— Porque você tem um destino a cumprir, eu sei disso e mais. _Disse-me Deshayes.

— Porque a senhora é alquimista e vidente? _Ri-me. Ainda era meio cético a parte da “vidente”. A alquimia estava comprovada.

— Eu espero por você há muitos anos, Olhos Azuis. _Disse ela saindo da frente da carroça e rodeando ela em minha direção ao fundo.

— Eu espero alguém como você á muitos anos, Heosphoros.

Heosphoros? _Estava confuso novamente, pra variar.

— É o que você é. _Disse agora de frente para mim. — Um Heosphoros; um portador da luz. Estrela da manhã.

— Não entendo. _Respondi debilmente.

— Mas vai entender, e por hora, saiba que você tem o destino ao seu favor e que coisas grandes o aguardam, para moldar a vida de muitos. _ Disse ela com grande seriedade.  — E o destino de muitos se dobrarão ao seu e o que você escolher. _Me estendeu a mão.

— Eu serei sua guia nessa jornada até o seu fim.

 E na sua mão havia um medalhão.

— Toma, mais um presente. _ Pude ouvir o suspiro profundo de Bel, no fundo da carroça.

— Um medalhão? _ Disse o segurando.

— Ele ira lhe proteger, até o fim da sua jornada e conclusão do seu destino.

É um medalhão que tenho até hoje. Sua armação na borda lembra uma serpente tentando engolir o próprio rabo, existe um arabesco que não sei se tem sentido, mas existia claramente algo que identifiquei como uma palavra por escrito, embora não soubesse ler na época. Com o tempo aprenderia com madame Deshayes.

— Esta vendo isso? _Ela apontou para o centro do medalhão. — É uma palavra numa linguagem antiga e á partir de hoje será seu nome. _Disse com um meio sorriso. — Será por ele que você será conhecido e lembre-se Olhos Azuis, nomes tem sentido e poder.

Isso me arremeteu a outro pensamento na mesma hora.

— Seu nome não é Bel. _ Disse me voltando para ela. — Se vou andar com vocês e ter um nome, quero saber o de vocês.

Isso fez Bel respirar fundo.

—Belphegoar. _ Disse com desanimo evidente. — Nem precisa dizer, eu sei, parece masculino.

Reprime um risinho, sem sucesso, ela percebeu e uma maçã voou direto para minha cabeça.

— E o que está escrito aqui, Madame? _Olhei para ela, seus olhos estranhos brilhavam atrás da máscara de sombras que seu capuz sempre projetava, enquanto colocava o medalhão em volta do pescoço.

— Está escrito “Cyn”, Olho Azul, e não se escreve como a afirmação positiva, só soa como. _E voltando para frente da carroça disse-nos. — Agora vamos embora, antes que a guarda da cidade chegue. — Tenho um abrigo para irmos.

Então foi assim que eu recebi meu nome. Cyn dos Olhos Azuis.

— Huuum... Disse pensativo. — O que quer dizer “Belphegoar”?

— Senhora do fogo. _Respondeu-me Bel.

E depois de uns instantes de silêncio.— E o que quer dizer “Cyn”?

E a carroça se pôs a se mover, para onde o destino me aguardava.

 


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Notas finais do capítulo

A parte do sonho de revelação criado pela poção, pode ter ficado confuso, mas eu tentei descreve-lo pelo ponto de vista do personagem, Cyn.
Conto com a opinião e vocês para continuar melhorando.
Então, se você leu até aqui.
Até a próxima.
As desventuras de Cyn, continuam.