Retorne Ao Remetente escrita por Mandy-Jam


Capítulo 6
Dancing Queen




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HERMES

 

— Para que você quer tanto aprender a dançar? — Questionou Apolo.

Deixei meu corpo jogar-se sobre o sofá da sala e respirei fundo. Minhas pernas estavam latejando de tanto tentar imitar os movimentos do meu irmão.

— Curiosidade. — Respondi, quase que em um assovio. Apolo andou até mim e seu rosto entrou no meu campo de visão. Estava em pé do lado do sofá, seus braços cruzados e sua expressão de descrença.

— Curiosidade? — Repetiu erguendo uma sobrancelha.

— Para que você quer tantos essas flechas? — Retribuí a pergunta.

— Eu te fiz uma pergunta primeiro, garoto. — Respondeu.

— Não me chame de garoto. — Reclamei levantando-me em um pulo. Andei pelo espaço de nossa pista de dança improvisada, sentindo meus músculos gritarem comigo. Percebi que ele se mantinha em silêncio e continuaria assim até que eu falasse — Preciso relaxar.

A surpresa em seu rosto chegou a ser cômica. O deus do Sol avaliou a frase novamente na cabeça e acabou assentindo com concordância.

— É, acho que você precisa. — Às vezes, crianças, meu irmão não era um completo babaca. Olhando para o rosto dele vi compreensão: Apolo sabia que eu tinha um dos trabalhos mais exigentes entre os deuses. Eu não parava nunca. Achei que ele cultivaria aquele momento de amizade e companheirismo, mas me enganei — E você quer relaxar passando vergonha? Porque seus passos são descoordenados como os de um chimpanzé.

Dei um riso forçado para ele.

— Para um homem que dança usando calça quadriculada e camisa com gola em V, a sua autoestima é louvável. — Retribuí.

— Ah, o que foi? Você está frustrado por ficar na minha sombra? — Replicou — A culpa não é minha se eu sou maravilhoso e o filho favorito de Zeus.

Sempre aquele maldito assunto. Sempre.

Para aqueles de vocês que são filhos únicos, primeiramente: eu invejo vocês. Segundo, tenho que explicar que não há nada pior do que ter que brigar com seus irmãos para descobrir quem é o filho preferido do seu pai. Apolo insistia que era ele, porque, por que não seria? Ele era alto e belo, tinha os cabelos dourados que Zeus teve na juventude, era habilidoso com o arco e flechas e conseguia compôr o melhor poema de dia dos pais.

No entanto, eu me recusava a ficar para trás. Eu tinha muitos argumentos para defender o título de filho favorito de Zeus. O fato de eu ter roubado Apolo quando ainda era um bebê com menos de um dia de vida e humilhado-o na frente do nosso pai — e saído ileso no final da história, claro — era um forte indicativo de quem estava por cima de quem. Além disso, eu era o único filho de Zeus que não era odiado por Hera. Eu era também o seu mensageiro, e o seu braço direito, cuidando de tudo que ele queria, quando ele queria.

— Filho favorito de Zeus. — Repeti e ri em deboche — Que gracinha.

— Eu sou. — Concordou sorrindo — Mas para quem nasceu de um caso de uma noite só no chão de uma caverna suja, você até que é okay.

— Eu sou bem mais do que okay. — Disse fazendo uma careta — E ao menos a minha mãe não teve que fugir de uma cobra assassina enquanto suportava a dor da sua cabeça gigante tentando forçar caminho para o lado de fora.

— Não ouse falar da minha mãe. — Rosnou ele ficando com raiva. Eu estava pronto para continuar a discussão. Todos os argumentos estavam na ponta da língua, mas algo dentro de mim disse que não valeria a pena.

— Eu quero relaxar e não perder o meu tempo discutindo com você. — Respondi fazendo um gesto de desdém com a mão.

— O que vai fazer agora? Sair dançando thriller pelo Olimpo? — Questionou.

— Não, eu vou a uma boate, idiota. — O silêncio que veio depois dessa frase me surpreendeu. Olhei para Apolo os olhos azuis dele brilhando. Um sorriso largo mostrava todos os seus dentes, como uma criança que acabou de entrar em uma loja de doces — Deuses, que cara é essa?

— Você vai a uma boate. De verdade? — Perguntou e eu confirmei — Eu vou também. Eu tenho que ir.

— Não, você não tem não! — Exclamei nervoso.

Pode imaginar o quanto é constrangedora essa situação? Imagine que você quer sair com seus amigos, e a sua mãe obriga você a levar o seu irmão. E o miserável fica o tempo inteiro fazendo chacota de você ou te envergonhando na frente da galera.

Em resumo, isso era o que sempre acontecia quando eu e Apolo saíamos juntos.

Tudo bem, para ser um pouco mais justo, talvez, talvez eu o envergonhasse mais vezes do que ele me envergonhava. Como quando naquela vez que ele foi ensaiar uma música com os Beatles e eu fui junto, e na hora no chá derramei a bebida propositalmente nas calças dele — e depois casualmente falei que parecia que ele tinha urinado no sofá. O Paul riu bastante, foi divertido, mas nunca mais convidaram Apolo para um ensaio.

Ou quando nós dois fomos encontrar a Marylin Monroe, e ele foi todo arrumado e sedutor, e eu contei que ele era tão fã que mais de uma vez escutei-o gemer no banho o nome dela. O rosto dele acendeu como um farol de trânsito mandando os carros pararem, e eu a atriz gargalhamos bastante. Ele não conseguiu um encontro, obviamente.

Mas aquela situação era bem diferente. Como ele ousava tentar me envergonhar?

— Parece até que você não quer que eu vá. — Disse fingindo estranhamento — Eu achei que irmãos deviam passar um tempo juntos.

— Acabamos de passar um tempo juntos, e tudo o que você fez foi reclamar comigo e me comparar a primatas. — Rebati — E também, eu não quero ver nenhum olimpiano. Quero ir para um lugar onde só tenha mortais e-

— Ah, então você quer ver mortais? — Disse sorrindo largo novamente.

— Qual o problema com isso?

— Tem alguém em especial? — Perguntou cruzando os braços e fitando-me com um sorriso de maldade e diversão. Neguei com a cabeça.

— Eu não queria ter que contar isso tão cedo, mas é a sua mãe. Ela disse que gostou muito do lance da internet. — Respondi, mas ele não se deixou abalar.

— Tem alguém em especial ou não? — Perguntou novamente — E não vem com sarcasmo para mim, porque vai ser mais doloroso mais tarde.

— Não tem ninguém especial, tá bom? — Menti forçando irritação. Apolo avaliou meu rosto por alguns instantes e concordou com a cabeça.

— Ótimo. E para onde vamos?

Nós não vamos a lugar ne-

— Eu vou te seguir, Hermes. Não adianta. — Sorriu.

— França. — Gemi como se alguém tivesse me dado um chute.

Ulalá.

 

***

 

Minha memória é muito boa, principalmente para endereços. Isso fez com que eu conseguisse fingir casualidade e despreocupação quando Jenny me passou o endereço da boate. Ao invés de anotar apressadamente o nome da rua no papel, eu guardei na cabeça e respondi a ela com um dar de ombros.

Lá estava eu, em pé em uma boate, rodeado por mortais suados dançando músicas que eu nunca tinha ouvido antes. Xinguei meu irmão mentalmente por se estender tanto na discografia de Michael Jackson e não mencionar nada sobre ABBA.

Dancing Queen era um hit imortalizado. Não interessava se fora lançado na década de 70, em 1986 ainda tocava em todas as festas, incentivando um bando de garotas histéricas e desafinadas a cantar gritando as letras, enquanto pulavam “tendo o tempo de suas vidas”.

— Não vai dançar? — Perguntou Apolo, ansioso.

— Não. — Respondi bebendo um gole de um drinque verde — Você não me ensinou essa música.

— Eu não te ensinei um monte de coisa, mas você não depende de mim para dançar. — Respondeu encolhendo os ombros. Olhei para o meu irmão, que estava miseravelmente lindo e senti vontade de socá-lo. Talvez amassando aquela cara de galã eu conseguiria chamar um pouco mais de atenção.

— Por que você está tão ansioso para que eu vá dançar? — Perguntei, suspeitando.

— Porque foi para isso que eu vim. — Respondeu feliz.

— Para me ver passar vergonha. — Adivinhei.

— Exato. — Duas garotas passaram olhando para Apolo com desejo escancarado. Se seus olhos tivessem mãos, já teriam aberto o resto da sua camisa de botão, e puxado o zíper de sua calça jeans para baixo. Não me dei ao trabalho de sorrir para elas ou tentar algum galanteio, porque sabia que não teria chance — Eu não poderia perder a chance de te ver dançar publicamente.

Revirei os olhos. Será que se eu fingisse que ele não estava ali, ele desapareceria? Desejei que Ártemis o chamasse, ou Leto, ou Zeus, ou qualquer um que tivesse um pingo de influência sobre as atitudes de Apolo. Que tirassem ele de lá, puxando-o pela orelha tal qual se faz com um fedelho irritante.

Ele xingou em grego antigo. Virei meu rosto, assustado com a possibilidade dele conseguir ler meu pensamento, mas meu irmão não olhava para mim. Seus olhos estavam fixos na multidão na pista de dança.

— Aquilo. — Disse apontando — É aquilo que eu chamo de dança.

Segui seu dedo indicador até encontrar Jenny.

Meu coração parou. Eu nunca vi alguém dançar daquela forma. As mãos, as pernas, a cintura, o corpo inteiro de Jenny movia-se em sincronismo com a batida. De forma sensual, mas feliz, ela dançava como se ninguém estivesse olhando. Ok, eu tenho que dizer que detesto a expressão como se ninguém estivesse olhando, pois eu sei bem que as pessoas não fazem coisas realmente bonitas e graciosas quando os outros não estão olhando.

Então vou me corrigir: Jenny dançava como se a música fosse para ela. Como se estivesse no seu próprio mundo, incapaz de ser atingida por críticas.

Ela ergueu os olhos azuis e sorriu.

Meu coração mais uma vez, agora tomado pelo medo. A medida em que Jenny se aproximava, eu vagava meu olhar dela até Apolo. Meu irmão sorria com a satisfação de um homem que sabe que vai conseguir o que quer.

Não, pensei em desespero. Eu não acredito que ele vai…!

— Oi! — Gritou ela por cima da música, mas não para Apolo. Para mim. Sorri de volta para ela, extremamente animado.

— Oi! — Respondi — Tenho que admitir, você dança muito bem.

Ela segurou as pontas da saia e ergue-as, fazendo uma reverência de brincadeira.

— Acho que o que ele quer dizer é que você dança como uma deusa. — Corrigiu Apolo, com sua voz aveludada. Jenny ergueu os olhos para ele impressionada, e pude ver o efeito de seus galanteios no corpo dela. Mesmo com a iluminação fraca, deu para ver as bochechas dela corando. Seus olhos correram rapidamente pelo corpo dele, entendendo que aquele homem era de fato lindo. Apolo pegou a mão dela e beijou-a, mantendo contato visual — Enchanté.

Jenny sorriu boba para ele, e assentiu com a cabeça. Eu estava perdido.

Mon Dieu. — Disse ela, erguendo as sobrancelhas. Apolo riu com prazer, satisfeito com o objetivo concluído.

— Qual o seu nome, gata? — Perguntou ele. Jenny, dessa vez, olhou para mim e riu. Aproveitei a oportunidade para roubar a cena.

— Você tem cara de Jenny. — Disse apontando para ela. Ela estreitou os olhos para mim, entrando na brincadeira.

— Você… Você tem cara de Hermes. — Retribuiu.

Os olhos de Apolo piscaram para mim, levemente surpresos. Eu sabia, no entanto, que a surpresa era somente devido ao fato de eu atrapalhar o flerte dele, e não por eu conhecer Jenny. Ele provavelmente já suspeitava que eu tinha um motivo para querer aprender a dançar aquelas músicas e ir àquele determinado lugar.

— Desculpa a cafonice do meu irmão, ele acha que está na Renascença. — Disse apontando para ele e rindo — Eu poderia até dizer o nome dele, mas não é importante.

— Apolo. — Contou ele, um tanto irritado comigo, mas tentando seguir com suas intenções. Acho que Jenny não escutou muito bem, em meio a tanto barulho, por isso só sorriu e mexeu a cabeça.

— Ele me falou de você. — Contou ela, simpática.

— Jura? Ele me descreveu como imbecil ou idiota? — Perguntou sorrindo para mim.

— Na verdade, a palavra foi babaca. — Gargalhei alto por Jenny ter realmente contado isso, e ela me acompanhou timidamente. Apolo riu também, fingindo levar na esportiva.

— Essa também é clássica. — Falou para ela — Agora, me diga, Jenny. O que uma garota tão bonita como você está fazendo em uma boate dessas?

Argh.

Se tiver alguma garota lendo essa história, por favor, não caiam nessa. É a coisa mais clichê que um homem pode fazer, e meu irmão gostava muito desse recurso. Jenny, ainda bem, não se deixou afetar por essa pergunta.

— Dançando. — Respondeu casualmente. Ela começou a mexer na bolsa, enquanto meu irmão tentava novamente.

— Isso nós percebemos. Não dá para tirar os olhos de você. — Falou apoiando o queixo na mão, mantendo uma pose elegante — Mas o importante é: você está procurando algo especial hoje, Jenny?

— Sim. — Respondeu e eu quis quebrar os dentes de Apolo. Vocês entendem porque não dá para sair com seus irmãos? Os bastardos estragam tudo.

Conhecendo-o bem, ele já estava despindo-a mentalmente. Nem percebia mais a minha presença ao seu lado, era como se eu não existisse. Eu estava, de fato, em sua sombra.

Porém Jenny — minha doce Jenny — tirou-o do meu caminho sem nem mesmo perceber.

— Estou procurando fogo. — Apolo sorriu, malicioso, mas logo entendeu o que ela quis dizer. Jenny ergueu um cigarro entre os dedos da mão direita, com a elegância da Bonequinha de Luxo. O sorriso de Apolo desapareceu, e seu nariz se enrugou.

— Você fuma. — Declarou com pesar. Eu quis rir e agradecer as Parcas por terem me dado esse presente. Se tinha uma coisa que Apolo detestava era mortais fumando perto dele. Não que a fumaça do cigarro fosse agradável para mim, é claro. Essa porcaria fede demais. Mas Apolo levava aquilo a um nível de ódio.

— Todo mundo fuma. — Jenny respondeu encolhendo os ombros — Estamos na França.

— Então nesse país a nicotina não gruda na roupa e deixa você fedendo por dias? — Rebateu do modo mais grosseiro que pôde. Isso faria qualquer outra mortal ir chorar em um canto, com vergonha de existir. Ela, no entanto, só sorriu para ele.

— Não sei se você sabe, mas esse problema se resolve se você tomar banho. — Eu ri novamente e tive o prazer de ver a expressão amarga no rosto dele.

— Viu? Eu disse que ele era um babaca. — Falei e ela riu comigo.

— Ao menos não sou eu que vou ter câncer. — Resmungou.

— Não seja careta. É uma festa. — Dei uma cotovelada nele. Se tinha um assunto que nós evitávamos de falar com os mortais era sobre morte. A não ser que nós quiséssemos ameaçá-los, mas esse não era o caso.

— Por falar nisso — Jennny guardou o cigarro apagado dentro da bolsa, e sorriu para mim — Acho que está na hora de você mostrar o que sabe fazer.

— Oh, sim! — Apolo quase teve um orgasmo. Abriu um sorriso largo para mim — Vamos lá! Vá dançar com ela.

— Eu… — Ele me interrompeu.

— Ele passou o dia inteiro treinando os passos para impressionar você. — Contou. Eu bebi o resto do drinque em um gole só, desejando que fosse o sangue imortal dele.

— Eu treino todo dia para manter a forma, mas você não entenderia. — Resmunguei. Jenny segurou meu braço e ia dizer algo, quando uma nova música começou a tocar. O queixo dela caiu e seus pés começaram a dar pulinhos sincronizados.

— Essa música é ótima! Vamos! — Gritou e me arrastou para longe do meu irmão, rumo a pista de dança lotada.

 


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