Retorne Ao Remetente escrita por Mandy-Jam


Capítulo 4
Don't Stop Believing


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo para vocês.
Boa leitura!



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HERMES

 

— Anote isso, garoto. – Disse Zeus com sua voz grave.

Sem a mínima vontade, peguei preguiçosamente o bloco no meu bolso. Apertei a caneta e George e Martha sibilaram para mim. Ergui meus olhos para Zeus, mas meu pai não me olhava. Em pé perto de seu trono, ele coçava a barba e olhava para o horizonte com os olhos cinzas tempestuosos.

— Escreva. – Decidiu-se apontando para mim – Seu olhos são como o mais doce mel.

Franzi o cenho, enquanto anotava aquilo no papel.

— Seu sorriso é… — Ele parou para pensar — É tão doce quanto a melhor das frutas.

Escrevi metade da frase, mas me detive de continuar. Crianças, caso vocês queiram ser mensageiras quando crescerem, espero que sigam a regra mais importante: sigilo. É importante lembrar que as mensagens escritas ou ditas não são suas, e sim de outra pessoa. Não é nada pessoal, é só trabalho.

No entanto, naquele instante, eu não pude evitar de me sentir estúpido escrevendo aquelas besteiras no papel.

— Seu corpo é delicioso como…

— Por favor, chega de comida. Eu estou diabético com isso tudo. — Falei me recusando a continuar. Os olhos cinzentos logo se voltaram contra mim, muito mais duros do que minutos atrás.

— Você vai anotar o que eu quiser que anote, e sem nenhum questionamento. — Ordenou. Eu gemi em desgosto.

— Pai, o que Hades você está fazendo? — Perguntei.

— O que parece que eu estou fazendo? — Rebateu impaciente — Escrevendo uma carta de amor! Mulheres adoram cartas de amor.

— Você não vai conseguir nada com isso. — Disse apontando para a carta.

— E o que você entende de cartas de amor? — Retrucou.

— Eu já entreguei muitas. — Respondi, mesmo sabendo que aquilo não contava muito como experiência. No final do dia, todas pareciam a mesma coisa para mim. Rosas são vermelhas, violetas são azuis, e por aí vai.

— Preciso de ajuda de verdade com isso. — Perguntou desdenhando-me com a mão — Onde está Afrodite?

— Transando com o seu filho. — Respondi em um resmungo de repulsa. Zeus nem se deu o trabalho de erguer as sobrancelhas em surpresa. Só soltou um suspiro pesado e deixou-se sentar em seu trono como um saco de batatas se deixa tombar no chão.

— Ótimo. — Resmungou pressionando o ponto entre os olhos.

— O amor não precisa de explicação, ele precisa ser vivido. — Disse eu mesmo em voz alta e escrevi no papel, rabiscando as frases de cima. Zeus virou o rosto para mim, curioso — Te amo amanhã, ontem e sempre.

Zeus bateu palmas devagar, levemente impressionado.

— De onde você tirou isso? — Perguntou Zeus.

Eu nunca ia admitir que foi de um dos milhares de cartões que Afrodite recebera no dia dos namorados, então resolvi sorrir para meu pai e mentir:

— Eu inventei. De nada.

Arranquei a folha de papel e ela se transformou em um cartão decorado e elegante sobre meus dedos. Ergui-o para Zeus.

— Certo. Devo colocá-lo junto com algumas flores? — Perguntei e ele assentiu.

— Sim. Margaridas. São as favoritas dela. — Disse concordando com a cabeça.

— Hera não gosta de rosas? — Perguntei distraído, mas então percebi o que estava acontecendo. O rosto de Zeus ficou tenso ao ouvir o nome de sua esposa ser pronunciado em pleno salão grande.

— Hermes. — Disse com cuidado, como se uma palavra errada pudesse fazer o lugar inteiro ser explodido — Vá para o endereço que eu vou te indicar, deixe isso e vá embora. É tudo o que eu peço de você.

Ele se inclinou um pouco para frente e falou em um tom mais baixo.

— Fale para ela que nós nos veremos na noite de sábado, no mesmo lugar, na mesma hora. — Completou.

— Você tem uma reunião com seus irmãos na noite de… — Não, não tinha. Senti-me extremamente burro por ter demorado tanto a me tocar, mesmo depois de tantos anos vendo a mesma história se repetir.

Zeus inventava um compromisso e sumia. Hera acreditava – na medida do possível. Ele se encontrava com uma mortal e esperava que eu segurasse as pontas até ele volta. Novamente, ele queria que eu desse cobertura e fosse cúmplice de mais uma de suas traições.

Assenti com a cabeça e ele deu o endereço em uma folha de papel. Não me dirigiu mais nenhuma palavra.

 

***

 

Vamos falar um pouco sobre os meus negócios.

Em 1986, Hermes Express já era uma rede consideravelmente grande de entregas. Nós enviávamos para qualquer lugar do mundo o que você quisesse, batendo o tempo da concorrência — chupa, Fedex. O trabalho era feito por ninfas, sátiros e alguns deuses menores. Eles recebiam as encomendas, e as despachavam para que fossem entregues nos devidos destinatários.

— Não está aqui, senhor. — Disse uma ninfa, tremendo atrás do balcão. Apolo socou o balcão com uma força que fez todos em volta se jogarem no chão de medo.

— Eu estou perdendo a paciência com vocês! — Declarou, furioso.

— Ei, ei. Fica calmo. — Disse entrando no salão principal da minha empresa de entregas. Apolo virou-se e olhou para mim com os olhos faiscando de raiva. Hesitei em me aproximar. A última vez que tinha recebido um olhar daqueles fora quando eu tinha roubado o seu rebanho inteiro, e quase acabei sendo jogado no Tártaro — Qual é o problema?

— Você quer que eu diga qual é o problema? — Sua voz transmitia raiva — Seus funcionários são incompetentes, seu sistema não funciona e eu estou cansado de ser ignorado por você!

— Meu sistema funciona muito bem, e meus funcionários fizeram um curso de treinamento antes de começarem a me servir. — Disse passando para o outro lado do balcão. A ninfa, encolhida no chão, saiu engatinhando para longe de mim. Apoiei meus cotovelos no balcão e olhei para Apolo — Fala para o que aconteceu?

— Hefesto disse que terminou de fazer minhas flechas de ouro grego faz três dias. Ele disse que mandou-as pelo seu correio, mas até agora não chegaram. — Explicou rangendo os dentes — Explique-se.

Olhei para a tela do computador na minha frente.

Não, crianças, não é o mesmo computador que vocês têm hoje, como já deviam esperar. Os computadores daquela época eram caixas gigantes e feias, que não tinham muitos recursos — não dava para jogar The Sims, por exemplo, muito menos League of Legends.

— Número do protocolo. — Falei.

— Você só pode estar de sacanagem. — Rebateu ele. Sorri para meu irmão.

— Estou. — Respondi e digitei uma série de números no teclado. Apertei enter e li a mensagem na tela — Diz aqui que sua encomenda foi entregue ontem.

— Impossível! — Reclamou.

— Uhm… — Li o resto e ergui meus olhos para Apolo, agora um pouco inseguro — No Alasca.

Apolo respirou fundo, bem devagar. Fechou seus olhos e cerrou o punho, levando-o para a boca. Seus dentes brancos perfeitos morderam os nós das mãos, com parte da vontade que teriam em morder o meu pescoço.

— Sabe, você já fez muita coisa vergonhosa durante esses milênios. Mas essa coisa de internet é, de longe, a mais vergonhosa de todas. — Disse negando com a cabeça. Senti meu sangue ferver. Eu odiava quando criticavam a internet. Abri a boca, mas ele ergueu a mão me detendo — Não. Não tenta vir com “mas ela ainda está se desenvolvendo” ou “mas isso é o futuro”, porque sinceramente, não cola!

— Isso é o futuro! — Protestei — Você não está vendo?! Eu consigo rastrear uma informação por meio de uma máquina! Imagina quanto tempo eu levaria se tivesse que averiguar caso por caso pessoalmente! Você lembra quanto tempo eu levava para resolver essas coisas na Grécia Antiga?!

— Você era mais competente naquela época!

— Eu sou competente agora também!

— As minhas flechas doradas que estão na porra do Alasca dizem o contrário! — Exclamou de volta a tocou o dedo indicador na tela de vidro — A-las-ca! Você pode me explicar como isso aconteceu?!

— Eu não sei! — Respondi.

— Ah, a sua preciosa internet não te diz isso, é?! — Riu com maldade e raiva — Poxa vida, quem diria!

— A internet vai funcionar, tá bom?! Têm pessoas trabalhando nisso enquanto nós conversamos, nesse exato instante! Um dia você vai conseguir achar respostas para qualquer coisa, só usando a internet! — Defendi. Ele riu novamente.

— Meu oráculo ganha da sua internet a qualquer hora, a qualquer momento! — Estalou os dedos na minha frente.

— Então por que não vai perguntar para o seu oráculo sobre a porcaria das suas flechas?! — Rebati irritado e fiz uma imitação que Apolo detestava — Ao norte suas flechas encontrará, seus filhos vão tentar te matar, e com sua mãe por acidente você se casará!

— Você quer que eu fale da sua mãe?! — Rosnou para mim com raiva — E minhas flechas são responsabilidades suas, não do oráculo! Eu preciso delas para ontem!

— Eu podia fazer uma lista das coisas que você precisa. — Rebati. Ele riu de mim novamente.

— Ah, é? Me manda por e-mail. — Disse e riu da própria piada. Trinquei os dentes e fuzilei-o com o olhar.

— Apoloéumidiota@hotmail.com? — Falei.

— Quando você vai crescer? — Perguntou olhando-me com reprovação e deboche. Sem falar mais nada foi embora.

 

***

 

Quase não dormi.

Passei a noite inteira me virando na cama, tentando cair no sono, mas foi inútil. Lá pelas duas da manhã, decidi que não ia adiantar ficar parado. Passei a noite inteira rabiscando ideias do que fazer para melhorar a internet, o que fazer para agilizar as entregas.

Talvez vocês entendam como é ter a sua família inteira contra você. Talvez saibam o quanto é frustrante ter tudo o que você acredita desmerecido por quem mais devia te apoiar.

— Ingratos. — Murmurei ainda sentindo a raiva fresca em meu sangue divino. A risada de deboche de Apolo ecoava pelos meus ouvidos a cada instante em que eu parava de escrever.

Só parei de planejar soluções quando vi a claridade entrar pelas janelas do meu templo. Passei as mãos pelos meus cabelos castanhos despenteados e cocei os olhos. Senti como se aquele templo tivesse diminuído de tamanho, embora fosse grande como um estádio de futebol. Eu precisava sair dali para pensar, para me afastar de tudo aquilo que estava me consumindo.

Troquei de roupa pela primeira vez em dias. Coloquei uma calça jeans, camisa branca e uma jaqueta mais rápido do que qualquer um conseguiria. Meus pés me levaram pelo corredor de portas, prontas para me levarem a qualquer lugar do mundo.

Para onde eu poderia ir? Para os Estados Unidos, ver a estátua da liberdade? Talvez viajar pela China e admirar a paisagem em cima da Grande Muralha? Passear pelo calçadão de Copacabana, no Brasil?

Foi nesse instante em que Jenny voltou a minha cabeça. Aquela mortal, que em poucos minutos, fez com que minha cabeça se distraísse. Era daquilo que eu precisava.

Atravessei a porta, parando no mesmo lugar onde eu a tinha encontrado no dia anterior.

Coloquei as mãos nos bolsos da jaqueta, e caminhei pela calçada procurando o café chamado Antoniette. Devo admitir que demorou: eu andei por longos minutos até descobrir que o café ficava em um beco pequeno e estreito.

Abri a porta e senti o calor do ambiente bater contra o meu rosto.

Eu sei o que vocês provavelmente estão esperando o mesmo que eu estava. Que Jennifer Barsotti Kelly estivesse lá dentro.

Pois é, ele não estava. Olhei para a meia dúzia de mortais, ocupando cada uma das mesas, exceto a do fim. Eles olharam para mim ao verem que eu estava em pé parado por tempo demais.

O que eu faço?, pensei. Vou embora? Isso não seria esquisito?

Fingindo descontração, caminhei até a mesa do fundo e sentei-me. O cardápio estava em cima da mesa, ilustrado com fotos de todos os tipos de bebidas à base de cafeína. Abri-o olhando sem interesse para as letras.

O que estou fazendo aqui?, pensei novamente. Eu devia ter ido para Copacabana. Está na cara não tem nada aqui para mim.

E foi aí, e só aí, que ela entrou.

A porta se abriu, e eu ergui os olhos, atraído pelo novo movimento. Jenny, usando um suéter que parecia estar engolindo-a, abraçou-se recuperando-se do frio lá de fora. Seus olhos azuis percorreram mesa por mesa, até chegarem a minha: a última.

Eu tinha abaixado os olhos antes de ela me encontrar, com o intuito de fingir que eu não a tinha visto. Mantive-me extremamente concentrado lendo sobre as composições do capuccino de baunilha com avelã, enquanto ouvia os passos se aproximando da mesa.

Jenny parou do lado da mesa e esperou que eu levantasse o rosto. Fiz a minha melhor expressão de desentendimento, como alguém naturalmente faria se um estranho a estivesse observando. Ela já estava com um sorriso no rosto.

— Hermes. — Disse como se a mera pronúncia do meu nome a desse alegria.

— Jenny. — Apontei para ela, fingindo surpresa.

— Eu posso sentar com você? — Perguntou.

— Não. — Respondi, e por um segundo ela acreditou. Eu ri e ela me acompanhou — Pode. Mas eu vou querer uma foto sua.

Jenny já tinha se sentado quando eu terminei essa frase. Ela prendeu o riso, mas também franziu o cenho, mostrando estranhamento.

— Isso soou um tanto pervertido, não é? — Perguntei e ela confirmou minhas suspeitas. Neguei com a cabeça — Claro. Um homem estranho pedindo uma foto sua. Eu não tinha pensado desse jeito, eu juro.

— Tudo bem. — Disse e inclinou-se um pouco para frente, lendo o cardápio também. Ajeitei-o na mesa para que ela lesse melhor. Seus olhos se ergueram para mim — Está um dia atrasado, você sabe?

— Perdão, você tinha me convidado para tomar café com você ontem? — Rebati fingindo-me de desentendido e ela corou. Jenny voltou a olhar para o cardápio e mordeu o lábio.

— Não. — Respondeu e eu reprimi minha vontade de rir — Eu quis dizer que você está um dia atrasado para beber o capuccino de baunilha e avelã. Eles só servem as quintas.

— Ah, não diga isso.

— Digo. Você devia ter vindo ontem. — Falou olhando para mim novamente — Mas você estava ocupado com…

— Trabalho. — Respondi para ela. Jenny assentiu, fingindo muita seriedade.

— Trabalho. — Repetiu. Jenny levantou a mão para que o garçom viesse a mesa — E o que você faz mesmo? Você parece ser o tipo de cara que tem uma banda de garagem.

Eu gargalhei um pouco alto demais, e as pessoas olharam. Coloquei a mão na lateral do rosto, como se estivesse fazendo uma divisória entre mim e os demais mortais.

— O meu irmão devia ouvir isso. — Falei lembrando como Apolo dizia que eu não tinha ritmo nenhum para ser músico. Eu tentei tocar de tudo, mas aos padrões dele, eu era um caso perdido. Tentei de pandeiro até clarinete, nada agradou o deus da música o suficiente para me deixar participar dos seus ensaios com as musas. Não foi por falta de esforço, porque para ter uma chance de ficar rodeado por aquelas nove belas mulheres de pernas longas e seios fartos, eu faria qualquer coisa.

— Você tem irmãos? — Perguntou ela. Revirei os olhos.

— Infelizmente.

— Quantos? — Quis saber. Encolhi os ombros, sem ter certeza do número, mas ciente de que não poderia dar essa resposta para ela.

— Mais do que eu gostaria de ter. Bem mais.

 


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Notas finais do capítulo

Espero pelo reviews de vocês!
Até o próximo capítulo.



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