Retorne Ao Remetente escrita por Mandy-Jam


Capítulo 11
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Notas iniciais do capítulo

Boa leitura, seus lindos!



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HERMES

 

Jenny se aproximou ao me ver em pé perto da entrada do museu com uma garrafa de vinho debaixo do braço. A mortal sorriu para mim de forma simpática, mas minha expressão não estava a das melhores. Confusa, ela buscou a hora no relógio de pulso, puxando a manga do casaco para cima. Olhou de volta para mim sem entender.

— O que foi? Eu não me atrasei.

— Gremlin? — Disse com a memória fresca na mente. Passara o começo da noite vendo o filme que Jenny comentara no dia anterior, julgando que o personagem principal fosse um grande galã. Cometi o erro de falar a Apolo que eu fora comparado a um Gremlin, e tão cedo a criatura apareceu, as risadas irromperam da boca de meu irmão — Mesmo?

Jenny prendeu o riso ao entender o que acontecera.

— Então você viu o filme. — Concluiu.

— É, eu vi com o meu irmão. — Assenti com a cabeça, amargo. Quase desistira do nosso encontro, mas mudara de ideia de última hora levando comigo uma das safras favoritas de Dionísio. Agora ajeitava-a debaixo do braço, cobrindo-a com o meu casaco de frio — Tem alguma coisa para dizer em sua defesa?

— Você é o Gremlin bonito. — Explicou ainda rindo.

— Não tinha nenhum Gremlin bonito no filme! — Reclamei, irritado.

— O Gizmo! O Gremlin fofinho! — Insistiu. Sem temer a expressão descontente no meu rosto, ela se aproximou e apertou minhas bochechas. Aquele ato tão infantil me atingiu inesperadamente, desarmando minha raiva — Não fica chateado, eu estava só brincando.

Jenny esticou-se mais para frente, fungando meu pescoço. Prendi o riso, com a leve sensação de cócegas que esse ato me proporcionou. A mortal chegou para trás ainda sorrindo para mim:

— Talvez você não seja um Gremlin, você tomou banho e tudo. — Elogiou com um tom de brincadeira. Revirei os olhos, desistindo de odiá-la — Ou talvez eu deva me preocupar. Você sabe o que acontece quando Gizmo se molha.

— Vamos ver no que isso dá. — Murmurei mais para mim mesmo do que para ela. Quando senti suas mãos tocarem a garrafa que eu segurava, puxei-a novamente para mim, evitando que ela a pegasse — Ah, não! Só se você se comportar.

— Se eu me comportar? — Repetiu surpresa. Jenny riu afundando as mãos no bolso do casaco. A mortal olhou para o museu no esperando atrás de mim e suspirou pesadamente — Eu juro solenemente não tocar nas estátuas nuas.

— Na minha você pode tocar. — Respondi e dei uma piscadinha de olho.

Segui com ela museu adentro e reparei a arquitetura. Não era o melhor para explicar os detalhes dessa parte — isso era trabalho de Atena —, mas como mensageiro dos deuses e deus dos viajantes eu sabia bastante sobre os detalhes da era de ouro da Grécia Antiga.

Jenny andava um pouco mais atrás de mim, e senti-me como se estivesse arrastando um cachorro para dar banho. A resistência dela só me motivou ainda mais a abrir a seus olhos a magnitude de nossa história.

— Ok, vamos começar aqui. — Parei na frente do salão da Grécia Antiga, e sorri para ela.

— Tem certeza que não quer ver os mamutes? — Perguntou apontando com o dedão.

— Tem um motivo para os mamutes estarem extintos, Jenny. Deixe eles assim. — Respondeu desdenhando. Ela riu, mas aguardou para que eu começasse — A primeira coisa que você tem que saber é que a maior parte dos mitos antigos foram passados oralmente, e aí que está a mágica. Todas as histórias que você vai ver entrando por essas portas foram contadas de pessoa para pessoa, mantendo vivos os personagens, os heróis, os monstros e, é claro, os deuses.

— Parece telefone-sem-fio.

— Parece o quê? — Perguntei.

— Aquela brincadeira. Telefone-sem-fio. — Repetiu como se eu fosse entender — Meu deus, você vive em uma caverna, garoto da internet? Todo mundo já brincou disso. Você conta uma frase no ouvido de uma pessoa, e essa pessoa tem que repetir, e depois a outra, até chegar no ouvido da última. Aí a última fala a frase em voz alta, e sempre é diferente da frase inicial porque alguém conta errado pelo caminho.

— Bem, os mitos têm várias versões e é basicamente por causa disso mesmo. — Franzi o cenho vendo sentido no que ela falou — As pessoas aumentam um ponto, fofocam sobre alguém, cortam fora algumas partes, e deu no que temos hoje. Venha.

Jenny me seguiu. Para minha tristeza, as coisas não estavam organizadas em ordem cronológica, e sim em um amontoado de estátuas e figuras que davam trechos de referências as histórias antigas. Aproximei-me de uma estátua conhecida e puxei Jenny pelo braço.

— Vamos começar aqui. Conhece esse homem? — Perguntei apontando para a estátua. Jenny olhou-o sem muito interesse, e balançou a cabeça em negação — Esse é Zeus, deus dos deuses.

— Ah, claro. O famoso. — Assentiu com a cabeça.

— Zeus era filho de Cronos, o titã do tempo. Antes, era Cronos que tomava conta do mundo, e ele fazia um trabalho péssimo. Também era um pai horrível. — Contei olhando para a barba de pedra de Zeus — Não que Zeus seja muito melhor, mas Cronos comeu seus próprios filhos com medo de que eles o superassem e tomassem conta do mundo. Zeus então abriu a barriga de Cronos e tirou os irmãos de lá.

— Vivos?

— É.

— Que nojo.

— Eu sei. — Franzi o nariz também, compartilhando o desgosto de Jenny — Mas tudo deu certo no final, Cronos foi destruído, e Zeus dividiu o mundo com seus três irmãos homens.

Jenny riu em deboche.

— Foi aí que nasceu o patriarcado? — Pensei no assunto.

— Ahm, na verdade, Cronos já reinava com poder total, enquanto a sua esposa não ti-

— Ótima história. Próxima. — Falou dando as costas para a estátua. Respirei fundo olhando para meu próprio pai em pedra, desejando que ele pudesse ter um background mais interessante para entreter aquela mulher mortal.

— Tem razão, Zeus é superestimado. E essa história já está bem batida. — Falei seguindo-a pelo salão — Vamos falar dos filhos dele, os mais importantes é claro. Esse aqui não. Esse é o idiota do Ares.

— Ares? — Repetiu Jenny encarando o busto do deus, em seu elmo.

— É o deus da guerra. O único filho de Zeus com a sua esposa de verdade, e deu nisso. — Falei gesticulando com pesar para o rosto de Ares — Ele é o esquentadinho da família.

— Ele parece bonito. — Comentou olhando de perto — Mas sendo sincera, achei que fosse uma mulher.

Prendi o riso enquanto a acompanhava pelo resto da sala.

— Apolo, deus do sol. — Apontei para meu irmão sem muito ânimo — Apolo guia a sua carruagem de leste a oeste todo dia, trazendo a luz para o mundo dos mortais.

— Por que ele tem um laço na cabeça? — Perguntou ela, franzindo o cenho para a estátua.

— Ele achava que ia lançar moda, mas só ficou ridículo mesmo. — Ri de seu cabelo amarrado no topo da cabeça como se fosse um laço. Andei mais um pouco e vi um painel inteiro com o desenho de muros altos e um cavalo ao fundo. Jenny parou na frente, mas não deixei que ela falasse nada — Tróia. Longa história, nós não falamos sobre isso. Em frente.

Puxei-a para o outro canto.

— Falta muito para irmos? — Perguntou com um suspiro.

— O quê? Nós nem vimos a parte mais importante! — Exclamei chocado.

— Qual?

— Esse cara. — Coloquei-a de frente a minha própria estátua. Lá estava eu, em todo meu esplendor, segurando um saco de moeda, apoiado na parede com minhas sandálias aladas, meu capacete e meu caduceu. Sorri de orgulho da representação tão perfeita da minha imagem, mas Jenny não pareceu impressionada.

— Ares de novo? — Perguntou.

— Sou eu! — Respondi horrorizado — Não tem nada a ver com o Ares.

— O rosto é igual. — Falou olhando melhor para a estátua — O mesmo cabelo cacheado, as mesmas bochechas de mulher.

— Nós somos irmãos. — Reclamei — Mas não temos rosto de mulher. Olhe melhor.

— Você realmente leva isso a sério. — Disse prendendo o riso — Acha mesmo que é você? O deus grego?

— Eu disse para você que eu sou um deus grego, querida. Talvez um dia você descubra. — Ronronei para ela, orgulhoso de mim mesmo. Jenny cruzou os braços com um sorriso travesso no rosto, e eu prossegui — Hermes é o filho favorito de Zeus. Ele é o mensageiro dos deuses, e o deus dos viajantes. Também de uma longa lista de coisas maravilhosas, mas não vou continuar me gabando. A não ser que você queira ouvir, é claro.

Jenny olhou para mim e depois para a estátua. Aproximou-se o máximo que era permitido e analisou os detalhes da arte. É claro que aquela era uma réplica, mas ainda assim uma muito boa.

— Então deixe-me ver se entendi. — Disse voltando o rosto para mim — Esse é você?

Confirmei com a cabeça.

—Cada detalhe?

— Cada detalhe. — Concordei, e ela me deu um sorriso malicioso e zombateiro. Seus olhos desceram do abdome de pedra até o minúsculo pênis da estátua, e depois olhou para mim com as sobrancelhas levantadas.

— Acho que vamos precisa mesmo desse vinho. — Brincou rindo. Minhas bochechas arderam involuntariamente, e eu balancei a cabeça.

— Isso não é literal. — Expliquei, um tanto nervoso — Todas as estátuas masculinas têm membros pequenos. Era um traço da época.

— Porque todos os gregos eram mau dotados? — Rebateu, mordendo o lábio para não rir.

— Não. — Respondi irritado e constrangido — Porque os gregos valorizavam mais a arte e a beleza do corpo, do que a erotização. O foco aqui não é o sexo.

— Obviamente não. — Concordou com a cabeça.

— Saiba você que Hermes possuía um epiteto que o destacava como “Fálico”. — Gabei-me, mas Jenny riu pelo nariz — Caso você não saiba, isso quer dizer que ele tinha sim um pênis grande.

— Bom, vamos pensar aqui um pouco. — Falou tentando parecer séria — Os gregos estavam acostumados com representações de deuses e homens com pênis pequenos, certo? Você concorda, ótimo. Então também deve concordar que, se por algum acaso fizessem uma estátua com um pênis de tamanho ligeiramente maior, mas ainda assim pequeno, não acha que eles iriam idolatrá-lo como fálico? Mesmo que seu membro não fosse lá grande coisa?

— Não foi assim que aconteceu. — Insisti incomodado.

Eu tenho um motivo para ter esse epiteto, pensei com irritação. Como você ousa?

— Nunca saberemos. — Deu de ombros, e depois riu ao ver-me desviar o rosto para a estátua na minha frente. Jenny aproximou-se de mim e beijou minha bochecha — Não tem porque ficar ofendido, não é você. É só o seu xará.

— Hermes é um deus rico, e muito poderoso, saiba você. — Adverti, sentindo meu ego ferido. Jenny assentiu com a cabeça.

— Talvez ele tivesse que compensar outras coisas. — Implicou. Estava pronto para reclamar, pois era exatamente aquilo que Apolo falava para mim quando tínhamos uma discussão sobre quem era mais poderoso que quem. No entanto, Jenny tocou minha virilha por cima da calça, discretamente, e meu corpo se arrepiou de desejo. Olhei para ela com interesse, e ela sussurrou em meu ouvido — Acho que entendo agora a parte do fálico.

Senti a mão dela me afagar novamente, roubando de mim um sorriso torto. Olhei em volta para me certificar que ninguém estava vendo e depois virei o rosto para Jenny.

— Estamos em um lugar público. — Falei me divertindo.

— Estamos na área grega. — Respondeu como se isso explicasse tudo — Gregos faziam loucuras, todo mundo sabe.

— Eles ainda fazem. — Retribuí e ele sorriu torto.

— Já acabou a aula de história? — Perguntou tirando a mão de mim e fingindo que nada acontecera — Porque esse vinho parece muito atraente.

Olhei uma última vez para a estátua e pensei no assunto.

— Acho que por hoje foi o suficiente.

 

 

— Você devia trabalhar naquele museu. Eu nunca vi alguém falar com tanta empolgação sobre um assunto tão entediante. — Comentou Jenny, andando ao meu lado na calçada. Já estava escuro do lado de fora, e o tempo ficava cada vez mais frio.

— Se eu tivesse sido seu professor, você não teria dormido nas aulas. — Falei para ela, e a mortal riu de volta para mim.

— Você teria um trabalho e tanto para fazer com que uma turma de adolescentes não fizesse piadas com pênis. — Comentou. Balancei a cabeça, incrédulo.

— Já foi difícil o suficiente com você. Mas quer saber, esse não é o ponto principal! — Falei e Jenny gargalhou de minha indignação — Sabe quantas histórias você perdeu hoje? Eu poderia ter falado sobre Perseu, o grande herói grego, ou sobre como Ulisses lutou para voltar para casa, mas não. Tudo o que você fez foi rir da falta de erotização.

— Ah, sim, falta de erotização me incomoda profundamente. — Concordou com a cabeça em puro sarcasmo. Depois, no entanto, ficou um pouco mais séria — Você não falou de nenhuma deusa.

— Quem se importa com elas? — Dei de ombros.

— Machista. — Ofereceu-me uma careta.

— Machista? — Repeti e ri para ela — Sobre qual delas você gostaria de ouvir?

— Eu não sei. Afrodite, talvez?

— Afrodite é que nem Zeus. Todo mundo fala sobre, mas na verdade não é tão interessante. — Desdenhei lembrando de como fora ridicularizado pela deusa do amor. Jenny não pareceu convencida, porém não questionou.

— Eu só acho entediante esse monte de histórias narradas por homens, sobre homens, lutando contra homens, em um mundo de homens. — Falou pensando alto sobre o assunto. Olhei para ela, esperando que prosseguisse — Até os nomes deles são parecidos.

— Existiam mulheres importantes nos mitos. — Falei e ela me lançou um olhar descrente — Ok, vamos concordar que não é lá muito proporcional. Mas o que esperar? Era uma época pouco gentil com as mulheres. Mesmo assim, os gregos tiveram Atalanta. E Penelope. E também tiveram mulheres como Atena e Ártemis. Se tivesse falado isso para mim, eu poderia ter mudado um pouco o roteiro.

— Não, eu gostei de fazer piada sobre a masculinidade alheia. — Sorriu para mim, e eu sorri de volta em sarcasmo.

— É claro que gostou.

Jenny abriu a porta, mas antes de deixar-me passar para subir as escadas, bloqueou a passagem com o braço.

— Esse prédio é de uma senhora. Ela é dona de todos os apartamentos e só aluga eles para mulheres. — Disse em um tom de voz baixo — Por isso, a sua missão é chegar até a minha porta sem que ela escute você e dê um sermão sobre castidade e pudor, ok?

— Desafio aceito. — Ri para ela.

Subimos as escadas com cuidado para que a madeira não rangesse. Os lances eram intermináveis, mas eu tinha fôlego o suficiente para não cansar. Jenny parava de vez em quando, mas depois voltava a subir atrás de mim.

Quando completamos 9 lances, Jenny suspirou pesadamente tocando em uma porta de madeira pintada de preto — a única do andar. Abriu-a e tateou o interruptor na parede, iluminando o ambiente para que eu pudesse entrar também.

— Não repare.

Ela deveria ter sido mais específica. Não sabia se eu não devia reparar na pequena bagunça que estava o apartamento, ou se não devia reparar no tamanho dele. Eu não era gordo, mas era alto o suficiente para que minha cabeça ficasse bem próxima do teto baixo. Jenny puxou uma mesa compacta, abrindo-a e tomando o espaço da sala quase inteira.

No fundo do cômodo, tinha uma janela com grades pretas. No canto tinha uma porta que provavelmente dava no banheiro, e uma última no final de um estreito corredor que dava para o quarto de Jenny.

— Quer abrir o vinho? — Perguntou já pegando as taças. Abri a garrafa com facilidade e servi para ela e para mim. O aroma da uva tomou conta do lugar, provocando um sorriso em Jenny — Uau. Esse parece ser bom. Qual o nome?

— É caseiro. — Falei dando poucos detalhes e brindando com ela. Tomamos um gole juntos — Então você mora aqui? Não é um pouco apertado?

— Todos os apartamentos daqui são apertados. São mais baratos também, o que é muito em conta. — Respondeu. Estava me questionando como alguém podia viver em um ambiente tão compacto, quando Jenny matou o resto do vinho bem rápido. A mortal se aproximou de mim, abaixou a taça que eu segurava colocando-a na mesa, e roubou um beijo dos meus lábios — Mas você ainda não viu tudo. Quer ver o resto dele?

— Seja minha guia. — Respondi, enquanto ela enlaçava os dedos nos meus e me guiava para a porta no final do corredor.

 

 

 


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