HERMES

Como o deus dos viajantes e dos comerciantes — e toda a sorte de gente que pega a estrada, o que incluí: fugitivos, turistas, ambulantes, trabalhadores, marinheiros, senhores de 60 anos que fazem trilha — eu já ouvi e contei um monte de história. Tenho que dizer que apesar disso, eu guardo essa como a minha favorita.

Não porque eu sou o personagem principal e seduzi uma linda mulher — spoiler! —, mas porque foi de longe a que mais mexeu comigo. Basta eu estar sozinho, basta eu relaxar minha cabeça no travesseiro que eu me pego relembrando tudo que aconteceu.

Acho que uma história assim precisa ser dividida, então vamos lá.

Tenho que contextualizar vocês, crianças do século 21, porque aparentemente vocês não tem uma imaginação tão boa assim. Aqui vai: tudo começou antes do Google ser criado.

Sim, eu sei. Vocês devem estar chocados agora, imaginando que eu estou falando de 1600, quando as pessoas andavam de charrete e jogavam seus dejetos pela janela. Ou talvez da própria Grécia Antiga, que os mortais contavam história desenhando em vasos.

Não. Eu me refiro a 1986.

Doce ano de 86! Pacman tinha sido lançado fazia só 6 anos, e era uma febre. A internet estava começando a ser criada, mas não era nem de perto essa rede tão poderosa que existe hoje.

Nesse ano eu trabalhava muito. Como mensageiro de Zeus, eu era sempre o cara que entregava as coisas, que passava mensagens, que contava as novas fofocas, coisas assim. E meu trabalho era muito cansativo sem o poder da internet, o que fazia com que eu fosse praticamente um escravo do meu pai.

— Diga para Poseidon que se ele fizer mais um tsunami contra o Japão, eu vou atingir aquele surfista que ele tanto ama com um raio. — Ameaçou Zeus. Rabisquei em um bloco de papel.

— Qual deles? — Perguntei.

— Como? — Perguntou Zeus.

— Qual dos surfistas? — Falei e encolhi os ombros — Se você disser o nome do cara, vai soar mais assustador, entende? Poseidon vai perceber que você está falando sério.

— Macaulay, acho que é o nome. — Zeus coçou a barba pensando no assunto, mas logo depois socou o braço de seu trono e olhou para mim irritado — Está dizendo que minha ordem não passa autoridade o suficiente para meu irmão acatar?

Respirei fundo. Era sempre delicado lidar com meu pai, não importava qual era o assunto.

— De forma alguma. Você é o chefe. — Sorri sem mostrar os dentes e ele me dispensou com um aceno de mão.

— Estou farto de falar sobre Poseidon. Vá logo e lide você com isso. — Ordenou.

— Sim. — Assenti e caminhei até a porta. Murmurei tão baixo que somente meus ouvidos puderam escutar — Pai.

Foi só sair da sala principal que comecei a ouvir o sibilado das cobras. Abri a pochete — não pesquise o que era isso, é vergonhoso demais — e tirei a caneta que usava para anotar no bloco. Martha e George, esticaram os rostos para olhar para mim.

— Chefe, você já enviou o pacote de Hefesto? — Perguntou Martha. Antes que eu pudesse responder, George interrompeu.

— E quanto aos livros que Atena pediu que você buscasse na Nova Zelândia? — Perguntou. Novamente não tive tempo de responder.

— Afrodite quer os perfumes franceses dela. Disse que está quase sem nenhuma gota.

Respirei fundo.

— Vou enviar o pacote. Não, não peguei os livros. Não, não peguei perfume nenhum, porque ela não me disse nada sobre isso. — Respondi rápido enquanto descia as escadas para chegar ao meu templo

— Disse sim. — Falaram os dois juntos — Está anotando no bloco, página 32.

— Eu não lembro de…!

— Está debaixo do desenho que o senhor fez da Hera com chifres e um dente podre.

— Ah. — Fiz finalmente lembrando do maldito perfume — Primeiro eu tenho que falar com Poseidon sobre o tsunami no Japão. Um tal de Macaulay vai ser atingido por um raio, porque Zeus está com raiva. — Falei sem dar muita importância.

— Dave Macaulay? — Perguntou uma outra voz. Ergui o rosto e vi que Apolo estava em pé, perto da entrada do meu templo. Apressei o passo até la — Eu gosto dele, ele manda bem nas ondas.

— É? Bem, não se apegue muito. — Falei encolhendo os ombros.

— Tem um minuto? — Perguntou.

— Não. — Disse ainda em pressa — Tenho que falar com Poseidon, depois ir para a Nova Zelândia e depois sabe-se lá onde na França para pegar algum perfume.

— Eu preciso que fale com Hefesto sobre…!

— Ocupado! — Gritei e saí correndo para dentro do meu templo, batendo a porta atrás de mim. Respirei fundo, andando em círculos antes de decidir como falaria com Poseidon. Minha preocupação não era só entregar a mensagem e sim como eu entregaria a mensagem. Um deslize, e poderíamos ter o Japão inteiro apagado ou todos os surfistas mortos por raio.

— O senhor está estressado. — Observou Martha — Não acha melhor parar um pouco para relaxar?

— Eu estou bem. — Disse para ela, embora não acreditasse — Falar com Hefesto. Não posso falar com Hefesto, sem antes entregar o pacote. E não posso entregar o pacote antes de falar com Poseidon, o que me leva ao… — Apontei para uma das muitas portas no corredor — Havaí.

Tirei a pochete e joguei em cima de uma mesa larga de madeira na sala. Martha e George reclamaram da minha falta de delicadeza, mas eu os ignorei. Atravessei o corredor e entrei na penúltima porta a esquerda.

Lá estava eu. Havaí.

Aposto que você gostaria de ter uma porta dessas quando você está atrasado para a escola, não é? É só abrir, e pronto, você está lá. O problema é quando algum semideus despercebido encontra sua porta mágica sem querer e acaba parando no seu quarto no meio da noite. Ou no seu banheiro bem quando você está entrando no banho. Não é nada divertido.

Mas voltando: lá estava eu. Havaí.

Andei pela areia da praia, sentindo meus dedos queimarem por estar de sandálias. O sol queimava em cima de mim, como se Apolo estivesse me castigando por ter me esquivado dele. Fiz aparecer meus óculos escuros e usei-os para conseguir enxergar meu tio.

Sentado em uma cadeira de praia, Poseidon estava bebendo água de coco e sorrindo para duas garotas que passaram de biquíni afundados na bunda. Olhei primeiro para as garotas, com suas peles bronzeadas e molhadas da água do mar. Seus cabelos eram curtos e armados, da forma como era moda na época.

Qual foi a última vez que eu peguei uma dessas?

Elas olharam para mim e deram risinhos. Com olhares maliciosos e travessos, continuaram a caminhar pela beira do mar, afastando-se tanto de mim quanto de Poseidon.

— Você está me atrapalhando. — Disse meu tio, finalmente percebendo minha presença. Em sua camisa florida, bermudas largas e óculos escuros, ele virou-se para me olhar — Está plantado aí que nem um coqueiro. Vai espantar as garotas.

— Eu vou espantar as garotas? — Perguntei e ri — Você aparenta ter idade para ser avô delas.

— Avô não. — Rebateu rabugento — Pai, talvez. Mas quem liga? Elas gostam de homens mais velhos.

Poseidon parecia ter cerca de 40 anos. Um daqueles coroas inteiros, que paqueram garotinhas mais novas para se sentirem no auge da idade. Meu tio, no entanto, gostava de viver essa fase da vida para sempre. Eu nunca o vira com o corpo de um garoto de 20 anos, por exemplo. Era sempre aquele visual de policial do Miami Vice.

— Se você diz. — Encolhei os ombros — Eu tenho notícias de Zeus.

— É claro que tem. — Resmungou tomando mais um gole de água de coco — O que meu irmão quer dessa vez?

— Ele quer que você deixe o Japão em paz. — Falei devagar — Disse que está irritado com o último tsunami e não quer que isso continue.

— Sabe a quem eles agradeceram pela prosperidade da pesca no ano passado? — Perguntou ele olhando para mim — Eu te digo. Ao Sol. O quão idiotas eles são? — Ele abriu os braços em direção ao oceano — Está vendo tudo isso aqui, na nossa frente?

Eu poderia ter feito uma piada com referência do Rei Leão, perguntando “tudo isso em que o sol toca, tio?”, mas infelizmente esse filme não tinha sido lançado na época.

— O mar? — Perguntei, sabendo que ia ouvir o mesmo sermão de sempre.

— É, sobrinho. O mar. — Falou ele, orgulhoso de si mesmo — O mar inteiro, cada gota d’água, cada peixe, cada rocha, tudo. Tudo isso é meu e é incrível. Mas aí esses mortais querem pegar tudo isso e dar crédito para outro deus? Por acaso Apolo teve que lutar seu caminho para fora do estômago de Cronos?

Não, e nem você, pensei. Zeus te tirou de lá.

— Não faz o estilo dele.

— Pois é. — Assentiu Poseidon e ajeitou-se na cadeira, confortável— Eles mereceram, Hermes. Essa gente precisa de limites. Acham que somos só personagens de contos de fadas. Acham que fomos inventados para explicar os fenômenos naturais. Aprenda comigo, não dá para ser muito gentil com os mortais. Eles simplesmente não merecem.

— Não acho que você pense assim de verdade. — Falei e ele olhou para mim nada feliz — Veja por exemplo aquela moça ali. Tenho certeza que você gostaria de ser gentil com ela.

Uma garota jovem passou correndo e abaixou-se para pegar a bola de vólei no chão. Poseidon deixou seus olhos se perderem nas curvas dela e a observou voltar correndo para o grupo com que estava jogando.

— Você me pegou. — Admitiu ele sorrindo torto.

— Zeus falou isso. — Disse e, por fim, acrescentei — E disse que Dave Macaulay vai virar churrasco se tiver mais um tsunami.

Os olhos de Poseidon se arregalaram para mim. Aparentemente, muitos deuses gostavam desse homem.

— Não pode estar falando sério! — Exclamou chocado.

— Eu não brinco em serviço. — Sorri de volta para ele.

— Esse homem vai ganhar o Hang Loose Por Contest, escreva minhas palavras. — Disse e levantou-se deixando o coco na cadeira de praia — Fale para Zeus que vou pensar no assunto. Vou me divertir um pouco.

Antes de ir, no entanto, ele olhou para mim de cima para baixo.

— Talvez você devesse se divertir um pouco também, sobrinho. Você merecia umas férias. — Falou.

— Estou ocupado. — Respondi.

— Você sempre está. — Replicou se afastando de mim e indo mergulhar.