Noite de Culto escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Noite de Culto




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Vi as suas sombras à distância, suas silhuetas contra a incandescente luz da fogueira. Seus corpos alinhados num círculo perfeito em redor da gloriosa chama que, para eles, possuía um qualquer significado, uma qualquer metáfora característica da sua gíria religiosa. Encapuzados, era difícil distinguir traços humanos naqueles hirsutos rostos. Pairava sobre eles uma palpável aura de malignidade. Era uma etérea fúria, impossível de caracterizar por termos mortais. Uma raiva superior a todos nós.

Seus cânticos e preces entoadas com paixão, suas vozes ecoando até aos céus da eterna noite. Os astros aparentavam participar no assombroso coro, com línguas de hidrogénio puro esticando e encolhendo sobre o tecido de negro éter a que chamamos vácuo.

O fumo imbuía o firmamento de um forte odor a inação e impotência. Era preciso travar o ritual destes nefastos seres. As mãos unindo-se, realçando todo o potencial místico do círculo de carne. A conexão dos sacrifícios era necessária para permitir a invocação.

Um pobre bebé repousava entorpecido no interior da circular corrente humana. Seria ele a chave de todo o encantamento.

"Devem ser travados a todo o custo" - foi o que pensei. Mas não conseguia agir. O meu corpo encontrava-se domado por toda aquela atmosfera de uma anómala pacificidade. O meu pensamento passou a divagar por recantos inexistentes do globo. Países erigidos sobre rochas magmáticas, os edifícios construídos à base de um plasma fosforescente. Os governantes, no topo dos seus palácios de alabastro, gritavam ordens aos seus desalmados súbditos. Não havia esperanças. Não havia amor.

Pouco demorei a acordar deste terrível sonho que rapidamente percebi tratar-se de uma horrífica visão do meu futuro. Do nosso futuro. O mundo seria assim caso esta loucura não fosse prontamente travada. Seremos escravos, simples escravos daqueles que...

Um forte movimento vibratório fez-se notar no próprio terreno. O solo pareceu reagir às últimas frases do cântico proibido, incólume poesia das divindades mais perversas do cosmo. E o bebé chorou. Seu corpo minúsculo sofrendo química e biologicamente com a necromântica magia dos anciões. A pele tornou-se escama, a unha tornou-se garra, o pelo tornou-se num plasmático cílio. A cara, essa, passou a tornar-se indistinguível do restante corpo. Uivos gorgolejantes conjugaram-se com a natural harmonia da natureza. Era blasfémia. Uma completa heresia ao universo a que estamos habituados.

Levei as mãos aos olhos numa tentativa de os cegar. Tive de resistir ao mórbido instinto de os arranhar até ao sangramento. Não sei de onde proveio esse súbito desejo, talvez dos efeitos sombrios daquela maquiavélica feitiçaria.

Tinha de sair dali. Não fui capaz de me convencer a impedir a invocação, mas pelo menos ainda tinha a oportunidade de salvar a minha vida. Vi-me então assolado pelas mais catárticas dúvidas existenciais. Valeria a pena salvar-me? Valeria a pena viver naquele triste mundo revelado em sonhos, uma realidade sombria de caráter distópico? Valeria a pena existir?

Caí de joelhos perante toda a minha cobardia. Falhara para o mundo e para comigo. Falhara com tudo e com todos. Era um fracasso. Um enorme fracasso.

Suponho que tudo isto fizesse parte do plano deles desde o início. Devem ter descoberto que os estava a espiar. Devem ter previsto a minha inatividade. Precisavam de uma "mãe" para cuidar do pequeno monstro que veneravam como messias. Todos os velhos cultistas haviam desaparecido, seus corpos extinguiram-se como pós esvoaçando ao luar. Mas o círculo mágico permanecera, marcado no chão com sangue fresco dos religiosos sacrificados. A cria diabólica no meio, chorando gritos de uma atroz incompatibilidade com o nosso sistema auditivo.

Aproximei-me dele e peguei-o. Ergui-o no ar como se me importasse. Automaticamente, comecei a sentir uns bizarros enjoos, um sentimento de difícil descrição. A minha camisa começou a tornar-se incomodativa, pois sentia um determinado ardor no peito. Quando a despi, notei as múltiplas glândulas que me haviam crescido ao longo da pele, semelhantes a compridos mamilos. Exalavam um nauseabundo cheiro e um líquido peçonhento.

Os cultistas tornaram-me na figura materna daquele órfão recém-nascido. Mas só aceitei esse abominável facto quando a língua daquela criatura me tocou. Era bifurcada, abraçando-me as glândulas neoformadas com o seu carinho húmido. Alimentava-se de mim. Vivia de mim. Um dia mais tarde, eu certamente viria a morrer de algo como desidratação ou malnutrição. E quando esse dia chegasse, este demónio não seria mais uma criança.


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