Encadeados escrita por Nipuni


Capítulo 7
Meio Incrível


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem, fiz com muito carinho! ♥



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Eu conseguia sentir. A neve derretendo no calor dos meus pés, o sol ermo escorrendo em minha pele, o cheiro forte dos pinhos úmidos. Não dava pra ver, mas eu sabia que tinha uma árvore diferente naquele lugar. Ela era especial, velha e parecia com um grande cogumelo. Extremamente verde.

A pancada na mesa fez com que eu me sentasse automaticamente enquanto o barulho oco ecoava em minha mente. Olhei ao redor desesperada e me encolhi ao perceber – toda a classe estava virada pra mim, e a professora estava puxando sua régua de volta pra perto de si.

— Se você não queria assistir a aula, era só ter ficado em casa. – ela disse, seca, o rosto suspenso em superioridade. A professora caminhou lentamente de volta até a lousa e eu quis desaparecer. A maior parte dos alunos continuava olhando pra mim; outros sussurravam coisas entre si.

 Nunca tinha dormido em uma aula antes. Cocei os olhos com as costas da mão e removi alguns fios de cabelo da testa, tateando a linha do caderno onde eu havia deitado. A marca estava estampada em meu rosto.

Meus pés estavam gelados e eu tinha essa sensação morna nos braços, e então me lembrei do sonho. Não tinha sido nada estranho que merecesse destaque – comparado ao que eu já havia sonhado antes – mas foi tão vívido que até mesmo meu corpo reagiu fisicamente a ele. Puxei meus pés sobre a cadeira e os massageei na tentativa de aquecê-los, me esforçando ao máximo esquecer aquela aula.

Nada de varar a noite estudando. Nova regra.

Quando o relógio indicou meio-dia, a professora liberou a turma e eu fugi pelas portas do fundo. Apertei meus livros contra o corpo enquanto caminhava corredor a baixo, na direção da saída. O dia nublado me cumprimentou como qualquer outro, e eu me senti aliviada ao encontrar Naruto no pátio.

— O que é isso na sua testa? – seu rosto se contraiu numa carranca ao me perguntar.

— Merda, ainda dá pra ver? – esfreguei a testa com as pontas dos dedos como se aquela massagem genérica fosse resolver alguma coisa. – Não foi nada.

Naruto arregalou os olhos.

— Você dormiu na sala! – exclamou tão alto que eu pisei no seu pé. Claro, teria sido bem mais efetivo se eu estivesse usando sapatos fechados e não sandálias de quem não tem tempo pra se arrumar. – Nossa, é a primeira vez. Era aula de quem?

Suspirei sem ânimo quando a cena repassou na minha cabeça.

— Anko.

Outra careta.

— Você é corajosa, Sakura.

— Foi sem querer! Juro, eu tava tão cansada que nem sei que horas eu apaguei. Sei lá, foi automático.

— Hora de parar com os energéticos. – ele deu de ombros. – Você tem plantão hoje?

Chorei por dentro.

— Tenho. – gemi, apertando os cadernos de novo. – Daqui a duas horas. Vem, eu vou no outro lado da rua pegar alguma coisa pra comer antes de ir.

— Desculpa, hoje não dá.

— Porque não?

— Eu só estou esperando meu orientador. Preciso começar minha monografia e esse cara sempre fura. Vou pegar ele na saída e ele vai me ajudar. Não quero saber.

— Você vai mesmo me deixar almoçar sozinha, Naruto? – simulei lágrimas, arrastando a voz pra soar mais manhosa e fofa. Infelizmente, Naruto já me conhecia muito bem pra cair nesse truque.

— Toma vergonha, Sakura, olha sua idade. Nem adianta, essas lágrimas de crocodilo não vão funcionar comigo. Depois me diz como foi seu plantão, tá?

Bufei.

— Tanto faz. Nunca mais me peça nada, tá bom, seu vira casaca? – arrumei a mochila sobre o ombro e Naruto riu. – Se eu for sequestrada, a culpa é sua.

— Bom almoço!

Caminhei para fora do pátio, deixando meu amigo cada vez mais pra trás. Atravessei o grande arco que marcava a entrada da universidade e andei sem pressa até o outro lado da rua. O horário fazia com que a maior parte das pessoas naquele bairro fossem estudantes ou professores – ninguém ia atravessar Tóquio pra almoçar com adolescentes, jovens adultos e velhos enraivecidos de seus alunos.

Num trote meio-gracioso, parei de frente uma vitrine de livros usados. Analisei minha testa bem de perto, procurando a marca do caderno.

— Acho que não tem nenhuma ruga ainda. – ouvi e meu corpo se retesou com o perigo. Deixei o reflexo na vitrine ao me virar.

Sasuke parecia estranhamente engajado naquela manhã. Estava relaxado como sempre, segurava uma sacola de plástico com a mão esquerda e um telefone na direita, mas foi seu rosto que me fez deduzir isso. Estava se divertindo – como se divertia com qualquer coisa que eu fazia –, só que mais agudo, não sei. Mais afiado.

— Eu não estava atrás de rugas. – rebati, cruzando os braços com os cadernos no meio.

Ele guardou o celular no bolso enquanto andava até mim sem hesitação, segurando meu queixo e levantando meu rosto. Rezei muito pra não ficar vermelha.

— Parece que alguém estava dormindo na aula. – concluiu, o sorriso se espalhando como fogo.

Me soltei de sua mão, parecendo ofendida com a sugestão.

— Até parece que eu ia dormir enquanto tenho assunto pra aprender.

— Bem, é isso ou alguém bateu em você com um livro. Qual dos dois?

Pigarreei ao dar um passo pra trás.

— O que você tá fazendo aqui?

Sasuke ergueu a sacola de plástico, os olhos escuros se estreitando.

— Vim buscar o obentô meu e da minha colega de quarto, mas parece que ela teve outro compromisso de última hora. – ele abaixou a sacola e pendeu o rosto para o lado, como se tivesse acabado de perceber a coisa mais óbvia do mundo. – Você quer almoçar?

Minhas sobrancelhas se franziram involuntariamente.

— Sério? Porque essa história toda parece muito suspeita.

— É só se você quiser. Eu não peguei nada extravagante, mas já é alguma coisa.

Ele soou incrivelmente simples. Me vi voltando à outra noite, quando ele disse que faria tacos pra mim. Sem o sarcasmo e a ironia, ou até mesmo a atitude pseudo-superior.

— Porque você fica assim quando fala de comida? – era a única explicação.

— Assim como? – eu conseguia sentir sua vontade de rir crescendo.

— Assim, meio... Manso.

Sasuke pareceu genuinamente surpreso com minha descrição. Isso foi o mais próximo de abalá-lo que eu já consegui.

— Não é porque eu falo de comida. – suspirou, colocando a mão no bolso. – Então, você quer?

Ah, porque não? Seria só um almoço amigável entre dois conhecidos.

— Tudo bem. Vamos sentar ali.

Nos sentamos num banco que ficava entre dois grandes elmos, onde menos pessoas passavam de lá pra cá. Sasuke me entregou meu obentô e um par de hashis. Escorreguei a tampa de madeira para o lado e me vi surpresa ao estudar o que havia dentro.

— Que foi? Não gosta disso? – ele me olhava com o canto de olho, esperando minha resposta.

Balancei a cabeça para os lados.

— Era isso que eu ia pegar pra comer, na verdade. – Exatamente aquilo. – Essa colega de quarto existe mesmo?

Sasuke riu.

— Relaxa, foi só uma coincidência. – e levou seus hashis com arroz até a boca.

— Então nós devemos ser parecidas. – conclui, pegando uma tira de salmão e comendo. – Eu e sua colega.

Ele olhou pra frente como se estivesse considerando.

— Vocês duas terem uma coisa em comum já é muito. Acredite, não são nada parecidas.

— Como você sabe? Oras, Sasuke, nós podemos ser igualzinhas! Quais as chances dela gostar exatamente do que eu sempre peço pra comer? Suspeito demais.— brinquei, levando dramaticamente meu obentô em sua direção. Outra risada.

— Se ela fosse igual a você, eu já teria me apaixonado por ela há muito tempo.

Travei.

— A-ah, olha só, ela pediu cereja no arroz! É talvez a gente nem seja tão parecida assim. – empurrei a bolinha vermelha para fora da comida com os hashis, isolando-a na periferia.

— Você não gosta de cerejas?

Fiz que não.

— É sabor demais pra uma coisa tão pequena. – tentei justificar. – Principalmente as em conserva.

— Disse a amante de azeitonas. – ele se esticou no banco, fechando os olhos. – Uma cerejeira que não gosta de cerejas. Que curioso.

— Você não disse o que veio fazer aqui. Nesse distrito, quero dizer. É bem específico vir buscar o almoço aqui.

— Eu moro por perto. O que me lembra – Sasuke abriu os olhos novamente, se virando pra mim. – eu tenho algo pra te dar.

— O que é?

— Se eu disser estraga a surpresa, esperta. Tenha paciência.

Esperta. Voltou com aquilo de novo.

— Por quanto tempo você vai continuar me chamando assim?

— Te incomoda?

— Incomoda um pouco, sim.

— Então acho que vou continuar te chamando de esperta, esperta.

Que irritante.

— Bem, meu plantão começa daqui a pouco mesmo. Acho que vai ficar pra me entregar sua surpresa na próxima.

— Onde é o hospital?

— É o mesmo que você apareceu semi-morto e saiu de lá andando como se fosse Jesus.

— Ah, aquele hospital. Façamos o seguinte então. – ele levantou o indicador quando terminou de comer, parecendo todo sério. – Você vem comigo até minha casa, eu te entrego a coisa e depois te deixo no hospital pra que você não precise pegar o metrô.

— Não sei se é uma boa ideia. E se você tentar alguma coisa?

Ele riu pra si mesmo.

— Só vou tentar alguma coisa se você me pedir.

Suspirei antes de concordar, virando o rosto pro outro lado. Não ia sorrir na frente dele.

— Tá, mas tem que ser muito rápido. Eu não posso me atrasar duas vezes no mesmo dia.

A resposta foi boa o bastante pra ele. Sasuke levou os dois recipientes do obentô – agora vazios – e os devolveu no mesmo restaurante que os pegou, sinalizando pra que eu o seguisse. Andamos pelos prédios que iam progressivamente diminuindo de tamanho até chegarmos em algo que parecia assombrosamente com um albergue. Tinha só dois andares e cada andar tinha mais de seis quartos, com um estacionamento improvisado dentro do terreno. Avistei o Mustangue preto enquanto subíamos a escada.

Sasuke pegou a chave quando chegamos na porta numerada em 21. Era a última do corredor.

Tiramos os sapatos antes de entrar e eu só consegui ver a bagunça. Não era bagunça do tipo roupa suja espalhada ou louça em todos os lugares, era bagunça de estudos. A mesma bagunça que eu e Temari vivíamos. A mesa da sala estava enterrada em folhas avulsas e apostilas, assim como o sofá e parte do carpete. Tinha duas estantes escoradas contra a parede e as duas estavam lotadas de livros, alguns maiores empilhados ao lado delas. Na outra parede eu avistei uma katana dependurada por fios de náilon, e um violão velho estava escorado contra um criado-mudo, também cheio de livros.

— Você tem tempo de ler isso tudo? – passeei com os dedos na prateleira da estante, vendo títulos em mais de três línguas diferentes.

— Já li a maioria. – Sasuke passou por mim e se sentou no chão em frente a segunda estante, começando a puxar livros e analisá-los pelo título.

— “Como satisfazer uma mulher sem as mãos” – fingi ler em voz alta e ele gargalhou.

— Boa tentativa. Não preciso desse livro.

— Muito engraçado. – caminhei até a mesa, pegando as folhas para ver o que ele estava estudando. Não fazia ideia de que língua era aquela. – Você é tradutor ou algo do tipo?

— Algo do tipo. – ele jogou um livro pro lado quando pegou outro.

Estremeci quando algumas folhas escorregaram do lado oposto da mesa, me fazendo correr até lá pra ver do que se tratava.

— Meu deus, tem um gato aqui!

Sasuke olhou sobre o ombro por dois segundos e então voltou para o que estava fazendo.

— Ah, esse é o Aoda.

Tirei um dos papéis que escondia o gato e me abaixei para olhá-lo. O felino era peludo como um lince e era meio preto meio cinza. Tinha olhos amarelados e um focinho achatado na face. Parecia contente com o lugar que havia escolhido pra dormir.

Pobre Aoda, vivia numa zona. Deslizei minha mão em seu pelo grosso e ele não pareceu se importar.

— Eu te entendo, Aoda. Comigo é o mesmo. – suspirei. Eu estava mesmo falando com um gato emburrado?

Ouvi a chave balançando na fechadura e fiquei propriamente de pé. A porta ficou se debatendo e, depois de trinta segundos de insistência, a campainha tocou. Ouvi alguém bufando do lado de fora.

— Se importa de abrir pra mim? – Sasuke pediu enquanto jogava mais e mais livros pro lado.

Caminhei até a porta e virei a maçaneta. Antes de puxar, notei um símbolo estranho cravado na madeira; parecia um oito. Não, na verdade, eram dois triângulos juntos, unidos pelas pontas. Me perguntei qual seria sua função ali.

— Quantas vezes eu já disse pra tirar a chave da fechadura quando você chega em casa, Sasuke! – uma mulher ruiva quase voou em mim, mas travou ao perceber que não estava atacando quem tinha a irritado. – Você não é o Sasuke.

— Bem observado como sempre, Karin. – ele reclamou de onde estava, os ombros subindo enquanto ele ria da própria piada.

A mulher pareceu esquecer que eu estava ali. Passou por mim como um furacão irado, pisando tão duro que até o Aoda se escondeu debaixo da mesa.

— Qual seu problema em colocar a porcaria da chave no porta-chaves? Você é demente por acaso, Sasuke? Porque eu acho que até o gato já entendeu isso.

Sasuke levantou o olhar, inocente.

— Você não pode mais dizer “demente”, Karin.

Eu quase consegui vê-la jogando uma cadeira nele. Se eu não estivesse lá, ela provavelmente teria jogado. Respirou fundo e se virou pra mim.

— Oi, sou Karin. – ela sorriu, caminhando até mim e fechando a porta. – Você é a nova vizinha, certo? A água quente só funciona até as cinco e meia, mas logo você se acostuma a tomar banho cedo.

— Essa é a Sakura. – Sasuke apresentou antes que eu tivesse a chance.

Vi o momento que ela travou. Ela abriu a boca e a fechou de novo, procurando o que dizer.

— É um prazer. – resolvi me manifestar quando ela continuou parada. Ela olhou pra mim por mais um tempo antes dizer algo.

— Sakura, certo? – ela repetiu, sorrindo. – Se escreve com hiragana ou katakana? Ou kanji?

— Katakana. Meus pais são meio alternativos, mas dá pra escrever com hiragana também.

Ela assentiu, arrumando os óculos sobre o rosto.

— O prazer é todo meu. – e sumiu na curva do corredor. Ouvi uma porta se fechando.

Esperei que Sasuke fosse comentar alguma coisa, mas ele continuou envolvido na sua busca pelo que quer que fosse. Andei como quem não quer nada até a katana, encarando meu reflexo no metal azulado.

— Ela é sua namorada?

— É essa a impressão que você teve? Não, ela não é. – sua voz indicava um sorriso que eu não conseguia ver. Por algum motivo, me senti aliviada.

— Espada legal. – escorri os dedos sobre o aço frio, sentindo como era afiada. – É de verdade?

— Pelo que eu paguei é melhor que seja. – ele levantou do chão, levando um livro até mim. Segurei quando ele me entregou.

De Humani Corporis Fabrica

Andreas Vesalius

1543

— O que é isso? – abri a contracapa do livro procurando por referências de editora mas não havia nada. O livro já começava com uma introdução curta que parecia escrita à mão, e ao virar a página os desenhos começavam. Por várias e várias folhas, incontáveis desenhos da forma e anatomia humana preenchia o papel amarelado e com cheiro de poeira. Acabei gargalhando, como aquilo era possível? – Como conseguiu isso?

Ele deu de ombros.

— Estava junto com minha herança, não sei.

— Sasuke, esse é um dos primeiros livros de Andreas Vesalius! Está escrito em italiano, não tem nem marca de edição. Ele foi um pioneiro da anatomia, como você...

Eu não tinha nem palavras pra continuar.

— É, eu sou meio incrível mesmo.

Levantei o olhar e seu sorriso satisfeito me atingiu como uma batida de carro. Não deu pra segurar, fechei o livro e enlacei seus ombros num abraço completamente instintivo.

Sasuke tinha cheiro de grama cortada e perfume caro. Que mistura mais peculiar.

Soltei seu pescoço quando percebi que o abraço já tinha durado demais. Observei que aquilo havia sido o bastante para acalmar meus ânimos no momento.

— Muito obrigada, isso é... – procurei por qualquer adjetivo que pudesse, mesmo que remotamente, descrever o que eu estava sentindo. – Com certeza meio incrível.


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Notas finais do capítulo

Katakana, Hiragana e Kanji são as três formas de alfabeto usados no Japão. Só pra explicar um pouco. Katakana é usado em palavras que não são originalmente japonesas, hiragana é para palavras japonesas e kanji são símbolos que já representam palavras (e não se dividem em sílabas). O nome dela foi escrito em katakana porque no anime ele é escrito assim (não sei porque, mas todos os personagens também são) e achei legal seguir. (NINGUÉM QUER SABER)
Espero que tenham gostado >.< e me digam o que estão achando! Vou ficar muito feliz nhaw ♥



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