Família De Marttino Sacrifício de amor(Degustação) escrita por moni


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Bem-vindas a mais uma aventura original.
Dessa vez italianos. Espero muito que gostem. Amo escrever e mais ainda quando vocês acompanham.
aguardo a opinião de vocês.



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    Pov – Enzo

   Os olhos da minha avó têm uma tristeza visível. Pietra de Martino não costuma ser triste ou amarga, mesmo com toda a dor que a vida já lhe proporcionou ela sempre foi capaz de sorrir, mas agora, quando me encara preocupada eu vejo a dor estampar o semblante elegante da senhora de quase setenta anos.

   ―Kiara não aparecer no funeral da sua mãe foi de partir o coração. – Ela diz com um toque leve em minha mão. Desvio meus olhos. Ainda não processei a dor por completo.

   ―Vittorio também não veio vó. Por que para ele é aceitável e para Kiara que é ainda uma menina não?

   ―Seu irmão tem seus motivos, viveu afastado dela tantos anos. Já kiara... seu irmão Giovanne também não veio.

   ―É uma criança ainda vovó. Até eu achei que seria demais para ele.

   Ela suspira, solta minha mão e toma um gole do café fumegante, afasta um biscoito de modo distraído, depois ergue os olhos para me encarar preocupada.

   ―Vem comigo Enzo, volte a viver na vila, sua mãe se foi, nada mais o mantém naquela casa. Enrico nunca foi nem perto de um pai para você. Sabemos disso, nem mesmo Giovanne que é filho dele foi tratado com amor. A vila é sua casa.

   ―A vila de Martino é a casa do Vittorio vovó, não a minha. Mamãe nos levou de lá quando eu tinha quatro anos. Fiquei anos sem voltar, sem te ver ou ver Vittorio. Além disso tem a universidade. Estudo a dez minutos de casa. Como posso largar tudo para viver em uma vila afastada e cercada de vinhedos? Não é meu mundo, sabe disso.

   ―O vinho De Martino é sua herança tanto quanto dos seus irmãos. Kiara e Vittorio.

   ―Meu irmão deve achar que é só dele. – Meu tom irritadiço a magoa, eu sei, mas não consigo evitar. O tempo nos separou de todos os modos.

   ―Quando seu pai morreu o Vittorio não teve escolha se não assumir todos os negócios da família Enzo, ele tinha sonhos também, mas abriu mão deles e tomou a frente de tudo. O trabalho se tornou seu refúgio.

   ―Vai para a vila agora? – Mudo de assunto, não quero falar dele. Não quero falar de nada importante. Tenho dezoito anos e perdi minha mãe. Antes, apenas dois anos antes, perdi meu pai. Não éramos muito próximos desde que minha mãe e ele se divorciaram quando completei quatro anos, mesmo assim, era meu pai e foi difícil. Agora ela. Antonella sempre foi uma mãe carinhosa e presente. Morrer tão jovem não é algo que possa aceitar.

   ―Quero passar a noite em casa. Parto assim que terminarmos essa conversa.

   ―Vovó. A Kiara nunca vai estar disposta a viver na vila. Sabe como ela anda difícil. Eu não posso deixa-la, mesmo que ela estivesse disposta ainda teria que deixar o Giovanne, o lugar dele é com o pai, Vittorio nem mesmo o receberia, você sabe.

   ―Então aceite um apartamento perto da universidade. Pode viver lá com seus irmãos. Eu ajudo, coloco alguém para cuidar da casa e de vocês. Não estamos falando de bebês. Kiara tem quinze anos e o Giovanne treze. Eles podem se cuidar.

   ―Acredite, não podem. Eu amaria que a Kiara aceitasse viver com você vovó. Não me sinto pronto para cuidar deles. O Enrico... você sabe o que penso dele. Pensa o mesmo.

   ―Aproveitador e sem caráter. – Ela completa sem se preocupar com o peso de suas palavras. - Prometa me procurar se precisar de qualquer coisa Enzo. Não quero que fique me poupando de tudo.

   ―Preciso ir vovó. Seu motorista pode me dar uma carona antes de partirem para a Vila?

   ―Claro menino. – Ela se estica para acariciar meu rosto. Beijo sua mão.

   ―Obrigado por vir. Você não precisava. – Ela dá um sorriso triste.

   ―Vim por você e sua irmã, mas também por Antonella. Podia ter sido tudo diferente.

   Podia. Nós podíamos ter sido uma família feliz, mas minha mãe se divorciou quando eu tinha quatro anos, partiu da vila deixando meu pai e Vittorio que tinha apenas sete anos. Nunca entendi por que. Kiara era apenas um bebê. Seis meses. Ela conheceu Enrico, ele parecia ser tudo aquilo que meu pai não foi e ela se rendeu, casou com ele, nos afastou da família. Teve Giovanne e logo Enrico colocou as garras para fora.

   Não sei se minha mãe foi feliz em algum momento da vida. Minha avó garante que sim. Que meus pais se amavam e viveram um casamento feliz por alguns anos. Até meu pai ir se enfiando no trabalho e a deixando de lado. Até ele não nos notar mais e então ela partiu.

   Fiquei quatro anos sem ver minha avó e meu pai. Foi por dinheiro que Enrico permitiu nossa reaproximação, me lembro de como reencontra-los foi estranho, não tinha muitas lembranças, com vovó foi fácil, logo seu jeito amoroso nos uniu, mas papai e Vittorio... com eles nada foi muito adiante.

   O garçom traz a conta, ela paga enquanto eu encaro a paisagem de Florença no fim da tarde de verão. Dia quentes e claros, nem acredito que mais cedo eu estava de mãos dadas com minha avó dando o último adeus a minha mãe em seu sepultamento.

   ―Vamos? – Ela me desperta e me ponho de pé. Ajudo minha avó a chegar no carro preto e clássico que nos aguarda com um motorista uniformizado. Essa classe toda ainda me é estranho. Vivo numa casa comum num bairro residencial perto da faculdade. San Marco é tranquilo, gosto do lugar, A casa tem três quartos e a vida nunca foi muito difícil ou fácil, foi só uma vida. Quando estava na vila, correndo entre os vinhedos, brincando com os filhos dos trabalhadores, dormindo no meu elegante quarto na mansão De Martino eu me sentia fora do lugar. Com saudade da minha mãe e ao mesmo tempo, ainda que Vittorio e meu pai fossem distantes era bom não ouvir gritos e brigas, era bom não ser acusado de nada. Foi uma infância e adolescência dividida entre dois mundos.

   Me despeço de minha avó com um abraço e uma promessa de vê-la assim que possível. Assisto o carro se afastar com minha avó me acenando até me perder de vista.

   Enrico saiu do funeral e desapareceu sem se despedir. Não parece estar aqui. O carro não está na porta e a sala onde ele passa seu tempo livre está vazia. Subo as escadas em direção ao meu quarto. Giovanne e Kiara deviam estar em casa.

   Um par de gargalhadas vindas do quarto dela me chama atenção. Acabamos de perder nossa mãe. Eles não podem estar rindo. Entro sem bater. A cena é deprimente. Giovanne e Kiara estão sentados no chão. Se contorcendo em riso. Duas garrafas vazias rolando em torno deles. O cheiro de cigarro impregnando o ambiente.

   ―Estão bêbados? – Fico chocado. Os dois prendem o riso. É tarefa difícil ser o irmão mais velho. – Bêbados? Responde Kiara! – Grito e seu sorriso desaparece, o olhar ganha certa magoa. – Onde conseguiram isso?

   ―No armário da cozinha! – Kiara responde.

   ―Enrico vai ficar furioso com vocês e com toda razão. – Olho para eles, sinto pena, são dois garotos perdidos e com medo, mas também sinto raiva. Enrico tinha que estar aqui para cuidar deles. Kiara não é sua, mas o chama de pai. Giovanne é seu filho e ele simplesmente não se importa com nada. Pego as garrafas vazias. – Chuveiro os dois. Vou fazer um café. Não acredito no que fizeram. Eu só...

   ―Devia cuidar da sua vida Enzo. Apenas isso. Nós vamos dar uma volta. – Kiara se põe de pé. Tropeça e Giovanne tem outro ataque de riso. Eu o ergo pela camisa. Seus olhos assustados não me intimidam.

   ―Adoraria cuidar da droga da minha vida. Não sabe o quanto. – Digo o arrastando pelo corredor.

   ―Me solta. Corre lá para sua avó rica. Me deixa.

   ―Cala a boca. – Ele se debate, mas não ligo a mínima. Kiara grita em torno de mim. Eu apenas a ignoro. – Água fria para os dois.

   Ligo o chuveiro e enfio meu irmão caçula. Kiara se encosta na parede rindo e aquilo me tira do sério. Eu a empurro para a água junto com ele. Os dois perdem o ar algumas vezes, se empurram tentando sair da água gelada.

   Estão tão fracos pela bebida que não conseguem se livrar de mim. Logo o riso e a moleza vão embora e eu me afasto.

   ―Limpem a maldita sujeira que deixaram. Tomem banho e durmam. Enterrei nossa mãe hoje. Não vocês. Entendam que a vida continua.

   Me tranco em meu quarto. Me atiro na cama e tento, só por hoje não pensar mais neles, em Enrico, no futuro. Só fecho os olhos e procuro pensar no sorriso dela. Minha mãe era linda. Kiara é o que dizem, é sua cópia. Talvez isso machuque tanto Vittorio. Não somos amigos, mas ele e Kiara são quase inimigos.

   O silencio vai me dominando. A dor vai ganhando espaço, penso na voz dela, no sorriso, no jeito como prendia os cabelos num coque nos dias de faxina, na mão gesticulando, a elegância que ela mantinha mesmo sem o luxo que se acostumara quando casada com Lorenzo De Martino.

   Ela sempre me dava um abraço carinhoso na volta do colégio, me pedia desculpas por ter ouvido a briga da noite anterior e prometia que seria diferente. Os olhos marejavam e eu me apertava a ela acreditando.

   “Você é o mais velho” ela dizia e eu sempre pensava em Vittorio, ela nunca disse por que ele ficou para trás, eu não sabia se ela ainda amava meu irmão, eu não sabia de coisa alguma.

   Pensar nela me machuca, sinto medo de esquecer sua voz, a cor dos seus olhos, o jeito como seu sorriso fazia uma covinha só do lado direito.

   Chorar deve ser um jeito de aliviar, mas as lagrimas não vem, não grossas e constantes, é mais um lamento e isso fica prendendo meu peito numa angustia que vai me dominando por inteiro.

   Acho que nesse segundo o futuro me afeta muito mais do que a dor. Eu tenho medo, tenho medo do que vai acontecer agora. Enrico não liga a mínima. Giovanne não é fácil. Tem qualquer coisa nele, uma revolta, sempre teve, desde muito pequeno.

   Kiara tem seu lado doce, mas é tão ligada a ele que parece se contaminar com sua rebeldia e eu não sou capaz de conte-los. Não sei se alguém realmente é.

   O resto do dia vai embora, a noite chega e meu quarto escurece. Não tenho vontade de me mover. Escuto o barulho da porta da frente bater no meio da madrugada, deve ser Enrico, quem se importa? Eu não. Ele vai direto para cama, não vai se preocupar com ninguém além de si mesmo.

   Tudo que interessa a ele é quando nossa pensão cai na conta. Tem seis meses que recebo o dinheiro numa conta particular, não mais na conta da minha mãe como antes.

   Tem seis meses que ele me exige parte do dinheiro para as despesas da casa. Minha avó nem sonha com isso. Ela ficaria furiosa. A parte de Kiara ainda cai na conta da minha mãe, ou caia. Agora não sei como vai ser e tenho certeza que ele vai exigir receber o dinheiro dela.

   Foi assim desde sempre. Somos sua mina de ouro. Foi a única razão para ele se casar com minha mãe. Enrico sempre foi um oportunista e jamais entendi por que ela não o deixou como fez com meu pai.

   Adormeço quando a luz do dia começa a invadir as frestas da janela e quando acordo passa do meio dia. Me arrasto para longe da cama. Amanhã tenho que voltar para a faculdade. Me decido encarando o espelho do banheiro.

   Depois de um banho eu deixo o andar superior. A casa está silenciosa. Encontro Enrico sentado na sala, ele olha para o nada pensativo e me pergunto o que devo dizer. Em dúvida eu apenas sigo para cozinha.

   Está tudo bagunçado. A geladeira vazia. Uma panela com o resto de massa com molho vermelho que minha mãe preparou me corta o coração.

   Nunca mais seu tempero acentuado. Nunca mais minha mãe pela cozinha em torno de suas panelas.

   ―O que a velha falou sobre o dinheiro da sua irmã? – Enrico surge me interpelando. Prefiro ignorar, continuo a remexer a geladeira. Tem ovos, posso fazer qualquer coisa, Kiara e Giovanne vão acordar com dor de cabeça e fome. – Enzo! – Seu tom fica mais firme e suspiro, me volto para olhar para ele. – O que a velha falou?

   ―Pietra. Esse é o nome dela. Quando disser eu respondo.

   ―O que Pietra falou sobre o dinheiro mensal da sua irmã? Ela não espera que agora que sua mãe morreu a menina fique sem ajuda.

   ―Ela não disse nada. Ao contrário de você, nesse momento de dor, minha avó estava mais preocupada com nossos sentimentos.

   ―Antonella era minha esposa. Claro que estou sofrendo.

   ―Que bom que finge bem. Por que não parece. Só quer saber do dinheiro.

   ―Sou um homem prático, sabe disso.

   ―Sei. – Me sento com um copo de leite em mãos. Odeio leite. Tenho que fazer compras, organizar as coisas, tanta coisa para ser resolvida. Até uns dias atrás eu só precisava estudar, agora é uma família toda sobre meus ombros. Dois irmãos rebeldes, um padrasto aproveitador. – Eu vou manter as despesas da casa e cuidar de tudo, sobre o dinheiro da minha irmã. Não é da minha conta. Mande ela procurar a minha avó.

   ―Quero que me dê o dinheiro, eu resolvo como vou pagar as contas.

   ―Nem pensar. Eu vou fazer isso pessoalmente. Use seu dinheiro para fazer o que quiser, trabalha afinal, mas não espere ver a cor do dinheiro do meu pai.

   ―Não finja que sente orgulho dele, sabemos que nunca se entenderam.

   ―Kiara e Giovanne beberam ontem. Um porre dos diabos. Acho que nesse momento é com isso que deve se preocupar.

   Desisto de cozinhar. Posso comprar qualquer coisa para meus irmãos. Deixo a cozinha e saio para uma volta. Me sento na praça, as pessoas andam de um lado para outro, distraídas e envolvidas em suas vidas, nada preocupadas com um garoto perdido sentado numa praça sem saber que rumo tomar.

   Quando volto para casa meus irmãos estão em frente a televisão, os dois em silencio.

   ―Trouxe comida. – Giovanne sorri, ele tem sempre fome, muita fome. Já Kiara faz cara de nojo, está de ressaca e queria muito que servisse de lição, mas sei que não vai acontecer.

   Comemos os três calados, Enrico sumiu mais uma vez, ele passa muito tempo fora agora. Passava antes do acidente. Ninguém sonhava que algo assim aconteceria. Ela tinha ido ao banco, nada demais. Atravessou a rua apressada, o carro a atirou longe e levou três dias no hospital.

   Tivemos todo tipo de sentimentos. Primeiro esperança, depois medo e por fim, apenas pressa. Não tinha solução e ela estava agonizando. Quando acabou apenas eu estava lá. Olhando pelo vidro, assistindo a tentativa dos médicos e depois a desistência. Balanço a cabeça, vou ter que me lembrar disso para sempre.

   Passava o dia com ela, a noite íamos todos para casa. Três noites com medo do telefone tocar com a notícia, doeu quando aconteceu, eu descobri que ainda estava com esperanças de que ela saísse do coma.

   Vittorio não foi vê-la. Essa ideia é talvez a coisa que mais me machuca. Ele podia ter ido, devia ter ido, é o que se espera de um filho, não foi.

   Voltar para as aulas parece um bom jeito de vencer esse momento, lá eu me distraio. Encontrar amigos, mergulhar nos livros vai me fazer bem.

   Kiara e Giovanne tem que aprender a se virar. Não vou poder ficar de babá deles o tempo todo. Com isso em mente eu volto as aulas dois dias depois. Deixo meus irmãos em casa, Enrico ainda não chegou e os faço jurar que vão ficar em casa. Nenhum dos dois quer voltar a escolha antes da próxima semana e não posso obriga-los, então pego minha mochila e quando Filippo buzina eu sinto alivio.

   Somos amigos desde os seis anos. Entramos juntos no colégio, depois na universidade, mesmo curso, mesma sala. Temos planos de abrir juntos uma agencia de publicidade assim que formados. Filippo é como um irmão.

   Paola sua namorada há dois anos conhecemos numa festa, ela é uma garota bonita, chama atenção por onde passa, adora moda, está sempre parecendo alguém que saltou da capa de uma revista de moda feminina e me pergunto quanto tempo ela gasta para se arrumar, mas Filippo é louco por ela e eu aceito isso.

   Ele é um cara engraçado, seu humor sempre me salva, a vida para Filippo é diversão, criativo, engraçado e maluco, esse é meu melhor amigo.

   Quando me sento ao seu lado ele leva um minuto me analisando em silencio.

   ―Vamos logo, eu estou bem, deixa de graça.

   ―Também te amo. – Ele diz dando partida. – Tenho que pegar a Paola ainda, deixar ela no shopping antes de irmos.

   ―Ela vai no shopping todo dia?

   ―Não. Domingo ela está de folga.  – Filippo ri troca a marcha e acelera. Ele ainda tem pouca prática em dirigir, e o carro dá pequenos trancos que nos agitam dentro do carro.

   ―Quer que eu...

   ―Não. Sou um piloto e tanto, já me vejo na formula 1.

   ―Também consigo visualizar. O retardatário, é claro, perdendo peças no caminho e envergonhando o povo italiano.

   ―Quer ir a pé? – Ele resmunga me fazendo sorrir. É bom, tem dias que não faço isso. – Minha mãe mandou você ir jantar lá em casa hoje. Disse que não tem escolha, ela vai fazer algo leve e saboroso. – Trocamos um sorriso de deboche, a mãe de Filippo deve ser a vergonha da Itália, a pior cozinheira que existe, acaba com as tradições.

   ―Juro que ela disse isso mesmo. Traga o Enzo coitadinho, vou cozinhar algo leve e saboroso para ele. – Filippo faz uma voz esganiçada e depois gargalha. – Papai falou que vai jantar no escritório.

   ―Sua mãe tenta. Eu vou é claro. Sou um bom amigo.

   ―É isso, amigos dividem até a comida da minha mãe.

   Paola está na porta do edifício andando de um lado para outro com os longos cabelos dourados escorrendo pelas costas, é alta e podia trabalhar com moda. Os pais não gostam da ideia. Empresários do ramo da metalúrgica são contra uma filha modelo.

   Depois de beijar seu rosto eu salto para o banco de trás e ela se senta ao lado de Filippo, me distraio com a paisagem enquanto os dois conversam qualquer coisa sobre ela amanhecer no shopping.

   Paola é mesmo bizarra nesse sentido. Não escuto sua explicação. Fico pensando que seria bom ter alguém como Filippo tem, principalmente num momento como esse.

   Quando finalmente entramos no prédio estamos atrasados, quando Filippo não está atrasado? Eu é que já devia ter aprendido.

   Me distraio com as aulas como pensei que seria. Me distraio com ela nos dias que se seguem e um mês depois a morte da minha mãe já não dói tanto.

   A vida não fica mais fácil por isso, pelo contrário. Sinto Kiara e Giovanne cada dia mais distantes de mim, Giovanne é suspenso três vezes nesse período, Kiara tem o pior desempenho na escola e eu fico tentando resolver as coisas.

   ―Kiara! – Ela sempre faz questão de me irritar. – Kiara! O motorista chegou. Anda logo!

   Kiara desce as escadas e só consigo suspirar de desgosto. Os cabelos estão soltos e despenteados, ela usa óculos escuros e veste um mini vestido que não esconde absolutamente nada. As botas até os joelhos são um exagero para a estação, isso é apenas para afrontar Vittorio. Vovó não vai dar a mínima, mas ele vai olhar para ela cheio de raiva e os dois vão se desentender.

   Podia ser só um dia agradável na Vila De Martino, mas vai ser um inferno. Ela passa por mim e sorri, não preciso ver seus olhos para imaginar o deboche.

   Decido engolir a revolta e apenas segui-la em direção ao carro. Tem dois anos que minha mãe morreu. Nesses dois anos nossa família se deteriorou quase que completamente.

   Giovanne perdeu o controle. Se tornou um rapazinho encrenqueiro, envolvido com os piores elementos. Kiara só pensa em rapazes e bebida. Enrico não move um dedo por nenhum dos dois e minha avó não consegue fazer muito.

   As vezes penso que devia ter aceito sua oferta e apenas dado as costas a tudo isso, não pude e ainda não posso, amo meus irmãos. Kiara e Giovanne só estão perdidos. Falta um ano para terminar a faculdade, quem sabe depois disso, com mais autonomia eu consiga ajuda-los.

   O motorista abre a porta do carro e Kiara entra desengonçada. Ele não faz qualquer movimento que demonstro alguma reação a sua aparência ou comportamento.

   Me sento a seu lado. Ela se recosta no banco e fecha os olhos. Em dois anos é a terceira vez que consigo convence-la a ir comigo a vila. Só aceitou por que garanti que ela ficaria sem a mesada caso não fosse ver a avó.

   ―Passei no seu quarto as três da manhã e ainda não estava. – Ela suspira, faz careta. – Estava na casa do Filippo, terminamos um trabalho, ele e a Paola decidiram tomar um vinho e eu fiquei, quando cheguei fui procurar você...

   ―E eu não estava. Já entendi essa parte.

   ―Enrico te deixou sair?

   ―O papai precisa por grades na janela se quiser mesmo me obrigar a ficar em casa num sábado a noite.

   ―Me pergunto onde vai se tem apenas dezessete anos.

   Seu riso a faço levar a mão a cabeça. Enxaqueca. Ela respira e volta a se encostar no banco do carro.

   ―Filippo e Paola... ainda namoram?

   ―Sim. Claro, sabe que ele é perdidamente apaixonado por ela.

   ―Não quero detalhes. – Ela diz e se não quer saber por que diabos foi perguntar? – Vamos partir logo depois do almoço. Não vou passar o dia todo lá. Já estou te avisando.

   ―Pensei da gente fazer qualquer coisa juntos. O que acha? Quem sabe um cinema? – Ela sorri de lado. Se esforça para parecer brava ainda. – Pipoca e refrigerante, um filme de terror, você gritando de medo e derrubando refrigerante em mim. Aceita? Tarde de irmãos.

   ―Se é tão importante para você. Pode ser, mas saímos assim que o almoço acabar.

   ―Trato feito.

   ―Agora me deixa dormir. Me tirou da cama as sete da manhã. Por que essa droga de vila tinha que ser tão longe?

   ―Que horas chegou? Ainda vai cair da janela e rolar pelo telhado.

   ―Chega Enzo. Cuida da sua vidinha perfeita. – Me calo. Com ela é sempre pisar em ovos. Ficamos em silencio por mais de uma hora. – Giovanne não vem para casa há dois dias.

   ―Eu sei. Andei por aí, não encontrei ele.

   ―O papai não sabe. Se ele não volta hoje...

   ―Ele volta. É sempre isso. – Ela afirma. Cruza as pernas e uma mancha roxa na perna me chama atenção. – Que mancha é essa?

   ―Bati a perna. Que droga. O que tem com isso? – Ela reclama.

   ―Nada. Só... se não queria que visse podia ter colocado mais roupa.

   ―Machista.

   ―Aí cala a boca. – Ela ri. – O que?

   ―Odeio brigar com você. Enzo, precisa aprender a brigar. É chato demais você não ser capaz de argumentar e terminar sempre com esse, aí cala a boca. Parece um garotinho.

   ―Então vamos terminar a viagem em silencio? E quando chegar...

   ―Ele que começa. Vittorio se acha o rei da vila. Aquele tom autoritário dele me irrita. Ele me irrita. A existência dele...

   ―Já entendi. – Corto o assunto. É querer demais que os dois se entendam. Acho que é impossível que consigam ao menos a civilidade com que eu convivo com ele.

   A paisagem vai se transformando aos poucos. Ganhando um tom de verde forte e vivo que vai cobrindo a planície. Quanto mais perto da Vila de Martino mais verde.

   Quando os vinhedos começam a dominar o ambiente eu perco um pouco o ar. Gosto de ver as videiras enfileiradas de modo simétrico ao longo de todo percurso. O perfume das uvas dominando o ambiente e então surge a mansão com seu ar imponente em pedra e cascalho.

   O motorista estaciona em frente a casa. Abro a porta e salto antes que ele se dê ao trabalho de vir abrir como seu eu tivesse perdido as mãos. Kiara salta logo depois de mim e o motorista desaparece com o carro.

   Kiara segue para a fonte de água límpida que fica no centro do pátio principal. A agua corre de uma escultura de anjos brincando. Em torno grama verde e flores coloridas. Minha irmã não as leva muito em conta quando pisa na grama para molhar o rosto na água da fonte.

   Uma vez meu pai gritou comigo por que fiz o mesmo, me entortei todo para me molhar na fonte e quando ele gritou eu quase me quebro todo. Ainda tenho uma pequena marca na perna.

   ―Vem Kiara. Que coisa chata.

   Ela salta as plantas e corre para meu lado. Chega a tempo de assistir a porta abrir e Ana nos receber com aquele ar austero de sempre. Ela é governanta há pelo menos vinte anos, ajuda minha avó e não é muito de conversa. Ninguém além da minha avó é. Não nessa casa.

  ―Bom dia. Dona Pietra os aguarda. Sejam bem-vindos. – Sim, ela me viu nascer, viu Kiara nascer e ainda nos trata com referência e distanciamento. Trata todos assim.

   ―Bom dia Ana. – Cutuco Kiara, ela se desequilibra nas botas de salto alto e cambaleia para o lado, quase rasga minha camisa se segurando em mim.

   ―Idiota! Oi. – Ela diz a Ana. Ela passa na frente. – Quase me derruba para eu dar um oi. Que cara chato.

   Minha avó está de pé no meio da sala, elegante como sempre. Impecável no modo de vestir, maquiagem leve e cabelos arrumados num penteado discreto. Não sei se algum dia eu a vi desarrumada.

   ―Bom dia meninos. – Ela sorri. A expressão tem uma quase imperceptível transformação ao olhar para Kiara. Nada que minha irmã distraída possa perceber.

   Eu a abraço e beijo seu rosto de modo espontâneo. Ela tem um abraço protetor que da a dimensão do seu amor. Kiara é preciso ser enlaçada por ela e se afasta assim que possível.

   Passamos o resto da manhã na sala íntima que ela costuma ficar. Aquele é seu espaço preferido, perto do jardim, com seus livros e bordados.

   Vittorio não aparece até a hora do almoço e me sinto relaxar quando deixamos sua salinha para a mesa de jantar onde o almoço vai ser servido.

   A tranquilidade se vai quando escuto a porta principal abrir e depois fecar de modo brusco. Vittorio surge uns minutos depois. Usa terno, tem um ar fechado e não dispensa mais que um rápido olhar e um aceno em nossa direção.

   Ele tem vinte e quatro anos. Fará vinte cinco em poucas semanas, não precisava ser assim. Fechado, sisudo e prepotente.

   ―Junte-se a nós Vittório. Vamos almoçar em família.

   ―Sinto muito vovó. Não posso ficar. Tenho uma reunião importante.

   Ele deixa a sala depois de beijar a testa dela. Kiara deixa a mesa depois de uns minutos. Ela decide caminhar pela casa enquanto como lentamente apenas para passar mais tempo já que prometi partir assim que terminasse o almoço.

   ―Vá você para o inferno Vittorio! – O grito de Kiara nos chama atenção. Deixo a mesa apressado. Encontro os dois se encarando. De pé no meio da sala principal. – Como me visto, se estudo ou não. Nada disso é da merda da sua conta. A vida é minha.

   ―Aquele maldito que chama de pai tinha que ter pulso firme com você. Se pensa que vai continuar recebendo dinheiro para bancar essa vida estúpida que leva está enganada.

   ―Não me faz favor nenhum. O dinheiro é meu! Tenho direito seu egoísta, mesquinho. Acha que é o único herdeiro do nosso pai e dessa droga de plantação, não é.

   ―Kiara. Chega, vamos para casa.

   ―Eu nem queria vir. – Ela grita comigo enquanto eu a puxo para longe de Vittorio. Ele nos dá as costas e segue para o escritório. Vovó nos olha chocada. – Culpa sua me fazer passar por isso. – Ela diz a minha avó quando passa por ela deixando a casa. – Te espero lá fora.

   ―Vovó...

   ―Eu sei. Vá. É melhor, telefono amanhã depois das suas aulas. – Eu a beijo antes de sair correndo atrás da minha irmã teimosa e sempre irritada.

   O motorista já nos aguarda. Os funcionários da Vila De Martino parecem sempre adivinhar. Ele parte assim que nos acomodamos. Um silencio perturbador se instala por quase todo percurso.

   ―Cinema? – Decido confirmar.

   ―Sim. Estou com pena de você. Só por isso estou aceitando. – Ela sorri. – Eu sou bem legal com você.

   ―Já está pensando na faculdade?

   ―Sério? Esse papo de novo? Não vou me enfiar em mais salas de aula. Me deixa. Quero férias.

   ―Ok. Ainda vamos falar disso. Tem metade do ano para pensar.

   ―E você? Acaba o ano que vem. O que vai fazer?

   ―O que planejei desde o primeiro dia de aula. Abrir uma agencia com o Filippo de sócio. Sempre foi nosso plano.

   ―Namorar alguém?

   ―Finge que é maluca, mas é bem romântica. – Ela faz uma cara engraçada. Finge ânsia e rimos. – Nunca encontrei alguém especial, mas sim, eu quero alguém. Quero gostar de alguém como o Filippo gosta da Paola. Amar. Quando encontrar essa garota eu vou grudar nela e nada nos separa.

   ―Boa sorte com isso então. Que ela não seja chata como a namoradinha do seu melhor amigo.

   ―Ela vai ser incrível.

                                         


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Notas finais do capítulo

Me contem!!!!!
Curiosaaaaaaa
Beijosss