Hastryn: Despertar escrita por Dreamy Boy


Capítulo 8
Dupla Face


Notas iniciais do capítulo

"O passado nos assombra para sempre."
— Katherine Wildshade



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Katherine

Responsável pela organização e administração de um reino inteiro, Katherine Wildshade também era mãe. Dividia-se entre as tarefas, de modo que quase não sobrava tempo para si mesma, mas acreditava que era melhor e mais favorável dessa forma, pois não pensaria muito a respeito dos momentos tristes que já tinha vivenciado.

No interior do aposento de Daevon, auxiliava o pequeno príncipe a se vestir, pois estavam prestes a se atrasar para o compromisso do dia. Era uma criança extremamente desajeitada e o modo como suas roupas ficavam desorganizadas a incomodava. O conjunto utilizado por ele consistia em: uma bota preta, que era acompanhada de uma calça da mesma coloração e uma camisa marrom abotoada presa com seu cinto de couro na cintura. As mangas eram largas, indo até um pouco abaixo dos cotovelos, o que fazia com que fosse deixado um espaço livre no antebraço.

O vestido escolhido por Katherine era verde com detalhes em uma tonalidade branca quase transparente. Detalhes estes que formavam as apertadas mangas e a curta capa. O cinto que amarrava a vestimenta possuía uma um tom mais claro do verde destacado. A saia descia até abaixo dos joelhos, chegando a beirar o chão. Era possível de se observar o salto negro que estava utilizando por baixo desta.

— Agora, estamos prontos! — exclamou, empurrando o filho com cuidado para o lado de fora do aposento. — Precisamos nos apressar se quisermos chegar a tempo.

— Calma, mamãe... Vai dar certo!

— Assim espero. Cedric ficará decepcionado conosco se não aparecermos.

Desceram as escadarias do palácio e caminharam até uma sala de treinamento, na qual o gêmeo mais velho faria uma pequena apresentação, mostrando os seus aprendizados e práticas até o momento, em um duelo com um colega de sua mesma faixa etária. Procuraram um espaço livre no banco de assentos e ali se acomodaram, aliviados por terem chegado antes de a atividade ter se iniciado.

— Ele parece bem preparado, não é mesmo? — Kath perguntou ao filho.

— Sim! Espero que vença!

Apesar das desavenças comuns entre irmãos com ideias e desejos diferentes, Daevon amava Cedric acima de tudo. A ligação entre ambos era especial e forte, por mais que Daevon demonstrasse isso com mais facilidade do que o mais velho. A natureza de Cedric era mais fria, e isso foi se tornando ainda mais intenso com o tempo, devido ao isolamento propiciado pelo ambiente mórbido do período pós-guerra.  

Os dois foram para direções opostas e se encararam. Ambos seguravam espadas e escudos de madeira em miniatura, proporcionais ao tamanho de seus braços e mãos. O outro menino era de uma família pertencente à corte, de modo que tivesse acesso às mesmas aulas que o filho da rainha. A oportunidade de vencerem a disputa era quase que a mesma, se não fosse pelos treinamentos exclusivos possibilitados pelo privilégio de ser príncipe.

— Vai, irmãozinho! — gritou Daevon, tornando-se, por alguns segundos, o centro dos olhares. Cedric revirou os olhos, sem perder o foco e a concentração que aprendera a manter em um duelo.

Quando o sinal foi dado, o embate começou. Cedric e o garotinho correram com as espadas erguidas, havendo um choque inicial entre elas. Esquivando-se com rapidez, escaparam de ser acertados um pelo outro. Cedric saltou com uma altura surpreendente para alguém de sua idade, desconcentrando o adversário. Contudo, o curto tempo de distração não foi o bastante para que o desarmasse ou obtivesse algum tipo de vantagem. Girou-se e impediu que a espada do menino o acertasse. Utilizou o escudo para empurrá-lo para frente, conseguindo desequilibrá-lo.

Respirou fundo.

Montou em cima do garoto, que ergueu o seu e o repeliu para trás, recuperando a posição e voltando a ficar de pé. Aqueles seriam hábeis guerreiros quando se tornassem mais velhos. Katherine não tinha dúvidas disso. Acreditava que a Arroway do futuro poderia sentir orgulho de tamanha força e habilidade.

 Distraindo-se com um inseto que posou sobre seu rosto, Cedric baixou a retaguarda e, por acidente, permitiu-se estar sob uma situação frágil na qual era menos difícil de ser atacado. O adversário, aproveitando a oportunidade única, lançou o escudo do príncipe para longe, de modo que restasse somente a espada para atacar e se defender.

Os espectadores gritaram, empolgados com o jogo. A cada vez que a situação se revertia, eram novos berros e aplausos, mostrando-se uma plateia animada e divertida. Longos minutos se passaram desde então, mostrando o quão acirrada estava a disputa.

— Não perca, Cedric! — Daevon insistia, mostrando torcer pelo parente até o fim. Estava determinado em vê-lo vencer. Katherine sorriu, feliz por ter um filho tão amável e disposto a contribuir para a felicidade e as conquistas daqueles com que se importava. — Você vai conseguir!

Cedric, aflito, segurou com uma mão a espada do colega, enquanto mantinha a outra na restante. Fez uso da mão com a espada para tentar afastar a dele de sua posse, mas teve dificuldades, pois ela era segurada com firmeza. Derrubou-o com uma rasteira e, sem perder mais tempo, lançou a espada do menino para longe. Montou sobre o mesmo, posicionando a arma sobre o seu pescoço, declarando a luta encerrada.

Katherine e Daevon se ergueram, aplaudindo a vitória do príncipe. Em seguida, caminharam até ele e o parabenizaram pessoalmente, apertando a sua mão e o abraçando com carinho. Os gêmeos eram quase que fisicamente idênticos, com exceção do penteado e da cor dos olhos. Os de Daevon eram castanhos como os do pai. Os de Cedric, verdes como os da mãe. O gêmeo mais velho tinha os fios rebeldes e despenteados, enquanto o caçula os mantinha organizados e penteados.

Após vencer a competição, o garoto parecia verdadeiramente feliz e realizado.

...

Mais tarde, os três se separaram, designados a suas respectivas áreas. Cedric se ocupava com os colegas de treinamento, passeando com os mesmos nos momentos em que não estava praticando. Daevon se envolvia com as aulas teóricas e os estudos de mitologia pelos quais era apaixonado. Por mais que fossem muito pequenos, os professores ofereciam aulas de acordo com a faixa etária a que pertenciam, evoluindo conforme as mentes se acostumavam com o conteúdo lecionado. Daevon também participava de alguns treinamentos, mas não com a mesma frequência dos demais garotos.

Após uma reunião para resolver assuntos pendentes, Katherine Wildshade se encontrava sozinha em um largo escritório, refletindo sobre o governo. A porta foi batida com força.

— Entre!

Um guarda adentrou o recinto, acompanhado de Daevon.

— Seu filho deseja falar com a senhora, Majestade. Acreditei que seria importante interrompê-la, pois foi o que nos foi ordenado caso algum deles aparecesse diante de nós.

— Fez o correto. Obrigada pela obediência, nobre soldado.

Quando o homem se retirou, Daevon se sentou ao lado da mãe, permitindo-se por os sentimentos para fora. O rosto estava vermelho e os olhos começaram a lacrimejar. Algo o havia abalado fortemente. Katherine não perguntou o que aconteceu, aguardando até que a criança se sentisse pronta para expor o motivo de sua tristeza.

— O Cedric... Ele estava atacando os animais. — A criança tremia enquanto revelava o que havia presenciado. — Mas não era uma caça normal. Eles gritavam, mamãe. Eu vi... olhos. E muito sangue.

— Por favor, leve-me até lá.

Era um bosque próximo, para onde o príncipe tinha ido, desta vez sozinho, após ser liberado das aulas. O mesmo se encontrava sentado sobre a grama, de costas para onde a monarca se situava. Tentou andar silenciosamente, para não chamar a sua atenção. Chocou-se ao se deparar com uma clareira repleta de corpos de esquilos, gatos e coelhos. As cabeças estavam separadas do restante dos corpos. Os olhos foram retirados um a um, sendo perfurados com pedaços pontudos de madeira.

— Cedric, o que é isto? — Perguntou, em um tom que procurava não ser acusatório. Contudo, diante daquela cena aterrorizante, até mesmo alguém que sabia se controlar deixaria a máscara cair. O menino a ignorou e tentou fugir, mas ela foi mais veloz e arrancou a adaga e o pedaço de madeira que estavam em suas mãos. A lâmina deveria ter sido roubada das cozinhas.

— Eu estava caçando... Para termos carne!

— Meu filho, isso que estou vendo não parece uma forma de caça tradicional. Por favor, não minta para mim. Está torturando esses animais indefesos, e quero entender a razão. O que eles lhe fizeram?

— Senti vontade. Quis matá-los. O papai me entenderia se estivesse aqui!

Aquelas palavras tocaram em uma ferida profunda que existia no coração de Katherine. Ao mesmo tempo em que se sentiu ofendida pelas palavras da criança, soube que uma parte do trauma de Cedric era causado pelo seu ato de vingança contra Lothar. Sentindo-se no dever de acalentar ao filho, puxou-o para um abraço carinhoso e olhou diretamente para Daevon, que compreendeu o recado silencioso e os deixou a sós.

— Sinto saudades dele... — falou, em baixo tom. Era uma sensação parecida com a de Katherine e Evelyn ao perderem Gregory. Cedric era pequeno demais para conhecer a índole do pai e foi obrigado a sentir uma insuportável dor de perder alguém que era visto como um porto seguro. — De caçar com ele. Por que os deuses não o fazem voltar?!

— Isso não é possível, meu amor. Quando alguém deixa de viver, não é possível de voltar à vida. Ninguém nunca voltou. Cada pessoa tem um tempo aqui no mundo e, para a nossa tristeza, o de seu pai chegou ao fim...

— Por que os deuses são tão maus?

— É essa a lei das coisas. É assim que elas funcionam. Para novas pessoas nascerem, outras precisam ser levadas pelos deuses. Ninguém vive para sempre. Um dia, a mamãe também irá morrer. Hoje, pode ser difícil para você entender, mas, quando crescer, vai saber do papel especial que os deuses separam para cada um.

— Eu vou descobrir o assassino do papai. E ele vai ser morto!

...

O desejo de vingança de Cedric Wildshade era algo que fazia a mãe sentir calafrios e um enjoo capaz de fazê-la vomitar. A cada dia que passava, a mentira que guardava parecia sufocá-la. Katherine não se surpreenderia se, em algum momento, morresse devido a esse segredo. Ele a torturava por dentro e a enlouqueceria se o assunto do assassino continuasse sendo tratado daquela forma.

Olhou para a cama, onde se encontrava o príncipe mais velho, agora adormecendo. Apanhou os lençóis e cobriu o seu corpo, observando-o silenciosamente. Era uma criança tão bela, um verdadeiro presente dos deuses. Tinha medo de como poderia ser o seu futuro se continuasse com pensamentos tão amargurados e vingativos.

Tentaria ser mais presente em sua vida. Daevon a compreenderia, pois amava o irmão acima de tudo e desejava que este ficasse saudável. Katherine era extremamente grata às divindades por pelo menos um dos filhos ter um comportamento mais saudável e propício a praticar boas atitudes. Dedicaria mais tempo para moldar a visão de mundo de Cedric, pois perdê-lo para as maldades do mundo era algo fora de cogitação.

Despiu-se, tomou um banho e vestiu a roupa adequada para dormir. Ao fechar os olhos, não teve dificuldades para iniciar o sono. As horas se passaram com rapidez, mas um barulho da porta a fez acordar no meio da madrugada. Abriu os olhos e ficou sentada sobre a cama, descobrindo que se tratava de Cedric.

— Oi, querido... Perdeu o sono? Venha para cá, se quiser.

Ela o envolveu em um abraço, beijando a sua testa. Aproveitando-se da proximidade, a criança sussurrou:

— Mamãe, agora sei da verdade... A senhora o matou.

Katherine arregalou os olhos e, sem ter tempo para reagir, sentiu uma lâmina profunda perfurando o seu peito de forma certeira. Cedric se afastou, deixando-a sobre a cama. O sangue jorrava da ferida que foi aberta. Katherine ficou sem forças, tendo a sua visão turva. O menino a observava, parado, aguardando até que ficasse completamente inconsciente.

A rainha criou forças para gritar.

Abriu os olhos novamente, descobrindo que a cena anterior era somente um pesadelo provocado pelo seu inconsciente. Utilizou os lençóis de sua cama para secar o suor que escorria pelo rosto e pelo pescoço. Entrou em desespero, temendo que, de forma semelhante ao momento em que sonhou que matava Lothar, aquela fosse mais uma visão do futuro.


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Notas finais do capítulo

O que acharam das duas faces dela? A rainha e a mãe?