Hastryn: Despertar escrita por Dreamy Boy


Capítulo 6
Resquícios


Notas iniciais do capítulo

Fui obrigado a presenciar a morte de alguém que tanto amei para proteger alguém que ela tanto amava.
Desde então, me senti morto por dentro.
Vivo cada dia me arrastando, sem entender a razão das coisas terem sido do jeito que foram.
Olho para o espelho e enxergo uma imagem suja e tenebrosa.
A única coisa que ainda faz parte de mim é o meu nome.
Sou Thomas Earn.



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Thomas

— Ele está chegando! — O garoto gritou, cobrindo a mulher. A mesma se encontrava sobre a cama que dividia com o marido, atacada por um forte resfriado provocado pelo frio.

— Por favor, tome cuidado... — A sua voz era fraca. Magdalena fazia um imenso esforço para falar, pois a sua garganta ardia e queimava por dentro. — Não o provoque e nem diga nada que o ofenda. Por mim.

Thomas assentiu e correu até a cozinha, apressando-se em servir os pratos sobre a mesa. Dois. Um para si e outro para o pai, Theseus, que sempre retornava para casa à noite, após inúmeras horas de trabalho. Pelo menos era isso o que dizia aos parentes, mas Thomas o havia flagrado diversas vezes em bares, utilizando o pouco dinheiro que recebia para consumir bebidas alcoólicas.

— Onde está a sua mãe?

— Descansando... O dia dela foi difícil. — O nervosismo que sentia diante do patriarca era imenso, mas não poderia permitir que isso fosse exposto. Qualquer possível brecha encontrada poderia ser utilizada contra ele. — Por isso, a estou ajudando. Espero que goste do jantar, papai.

— Magdalena é quem tinha a obrigação de cozinhar para nós... — Os olhos de Theseus estavam quase se fechando e o forte hálito de bebida podia ser sentido de longe. — Meu filho, isso não é tarefa de homem. Não deveria deixar que ela o explorasse dessa maneira. Prometo que isso não passará de hoje!

— Não precisa disso. Gosto de cozinhar. — Thomas sabia que a última frase seria considerada afrontosa, mas precisava se mostrar forte. — O senhor está muito cansado. Peço que não se preocupe com coisas que não valem a pena.

— Tem razão. Depois, me resolvo com sua mãe.

Mais tarde, após caminhar para o seu pequeno quarto e adormecer, Thomas teve o seu sono interrompido por gritos vindos do cômodo ao lado. Assustado, retirou as cobertas do corpo e, com rapidez, se dirigiu ao local, presenciando mais uma das cenas apavorantes que era obrigado a assistir desde pequeno.

Magdalena estava sendo agredida. Encontrava-se despida contra a sua vontade e era espancada fisicamente. O sujeito montado em cima dela sorria enquanto realizava o ato brutal.

— Papai, por favor, não faça isso!

Mas Theseus o ignorou. Ele olhou diretamente para o filho, piscando com o olho direito. Thomas se enfureceu e tentou empurrá-lo, mas era uma pequena criança magra e não tinha condições para lutar contra um adulto. Theseus o ergueu, segurando-o pelo pescoço.

— Na próxima vez que tentar me atacar, sua mãe sofrerá ainda mais. E amanhã quero que me acompanhe até um lugar. Mostrarei a você o que é ser homem de verdade.

...

Os planos de organização da grande competição que seria realizada em Arroway estavam sendo colocados em prática. Katherine marcou uma reunião envolvendo Thomas, os membros da Segurança Real, as damas de companhia e cidadãos nobres.

Quando um considerável número de pessoas se encontrava presente, a monarca se levantou e apanhou um pergaminho. No mesmo, constavam rabiscos, anotações, esquemas e possíveis ideias para serem aproveitadas e transformadas em um conceito mais bem elaborado e definido.

— Estive pensando em formas de atingir a todas as camadas possíveis na cidade. — Deslizou os dedos pelo objeto, que também contava com desenhos bastantes claros de locais conhecidos em Arroway. — Faremos o comunicado oficial e, em seguida, diremos que, na semana seguinte à anunciação, as inscrições poderão ser realizadas em uma praça que será utilizada como ponto principal para conhecermos as motivações de cada participante. Haverá um espaço fechado em que alguém anotará todas as informações possíveis da candidata. Teremos um número específico de inscrições por dia. Excedendo esse número, será possível uma tentativa na manhã seguinte. As que não conseguirem enviar seus nomes a tempo deverão esperar uma futura oportunidade de o fazerem novamente.

— Será uma forma de entretenimento esquecida pelo povo nesses últimos anos, ao mesmo tempo em que diferenciada, pois não apresenta mais o mesmo caráter agressivo e sangrento de antes — disse uma moça, filha de um casal nobre. Os pais assentiram, concordando com as suas palavras.

Obviamente, ninguém ousava discordar da rainha. Thomas tinha plena convicção disso. Contudo, pelas expressões dos ali presentes, estes demonstravam atenção e concordância diante dos comunicados, por mais complicado que fosse. Havia uma dificuldade enorme de indivíduos que viviam no método patriarcal, principalmente homens, para aceitarem aquelas mudanças, pois era algo que confrontava diretamente a vivência em que estiveram acostumados a estar inseridos desde o seu nascimento. Os mais jovens, com desejo de causar mudanças na sociedade, compartilhavam de uma forte identificação com os ideais de Katherine, sentindo-se profundamente inspirados.

— Devemos trazer o maior número de espectadores que conseguirmos para que ouçam por si mesmos o que tenho para lhes dizer. — Thomas se sentiu um pouco mais confortável ao ver que a amiga estava ocupando a mente com os novos projetos e trabalhos, abandonando a figura mórbida e sofrida após as perdas da guerra. No entanto, o semblante da mulher se alterou por inteiro, assustando até mesmo ao jovem. — Devo dizer a todos aqui que qualquer um que discordar de meus planos e estiver envolvido com qualquer forma de conspiração ou traição será descoberto e punido de forma severa. Não terei pena de agir como meu falecido marido caso for necessário.

...

Aos poucos, os membros que compareceram à reunião foram se retirando da sala do trono, restando somente Katherine, Thomas e uma pequena quantidade de seguranças encostados às altas paredes de pedra, que eram decoradas com pinturas e tinham tochas que traziam iluminação ao ambiente. Um largo tapete vermelho com detalhes dourados se encontrava sobre o chão, iniciando-se na entrada e se encerrando somente nos pequenos degraus. Atrás do assento real, duas escadarias conduziam a um piso em que havia uma grande janela de vitrais que formavam a imagem de um cavaleiro segurando uma espada, montado em seu cavalo e mostrando a sua força ao seu povo. A figura anterior mostrava claramente um homem em seu lugar, mas Katherine ordenou que esta fosse alterada para um ser cujo rosto não poderia ser visível. Com a implementação do novo sistema, no qual as mulheres poderiam ter mais chances de participarem de lutas, a visão sobre o que é ser cavaleiro seria modificada. Abaixo dos degraus, duas estátuas de leões ferozes circundavam o trono, mostrando a imponência da governante.

Thomas espiava a vista das ruas por uma pequena janela situada em um canto escondido. Estava próximo a uma pilastra que impedia que os outros o vissem, mas Kath sabia exatamente onde o amigo estava. Ela o seguiu.

— Está pensativo?

— Sim... Sobre a minha mãe. — Suspirou. Ao compartilhar aquilo com alguém, sentia como se um peso fosse retirado de suas costas. — Mesmo que viva conosco, em um aposento especial feito somente para ela, não é como se fôssemos capazes de apagar o que aconteceu em nosso passado. Obrigado por ter permitido que a trouxesse para o palácio...

— Não há pelo que agradecer. — Kath afirmou, com seu tom gentil, como era de costume. — Você salvou a minha vida. Nada que eu faça será capaz de compensar o ato heroico que teve. Estarei em uma dívida eterna. 

— Sabe que não quero que se sinta assim. Agora, estamos quites, pois já houve uma troca. É desnecessário, irrelevante e sem fundamento dedicar seus pensamentos a alguém tão insignificante e sem futuro quando há um reino inteiro para se tomar conta.

Sem hesitação, A Grande Rainha o puxou para um abraço apertado, sem se importar se alguém os visse.

— Eu nunca desisto daqueles com os quais me importo. Entenda isso! Há algo que quero lhe pedir: tire o restante do dia como um tempo para colocar sua cabeça em ordem. Passe mais horas ao lado de sua mãe. Conversem, passeiem... Mostre a ela mais cômodos que ainda não sejam de seu conhecimento.

...

Magdalena Earn se encontrava deitada sobre o colchão de sua cama, com uma expressão entristecida em seu rosto. O modo como a mãe se comportava destruía Thomas, pois o rapaz já tentara de todas as formas salvá-la e fazê-la se sentir viva novamente, mas era como se a sua alma tivesse sido sugada do corpo há muito tempo. O filho sonhava com o dia em que veria novamente um brilho em seu olhar ou um sorriso sincero, e não descansaria até que ele finalmente chegasse.

— Querido... — A senhora se levantou e beijou o seu rosto, passando a mão por seus cabelos. Em seguida, descansou a cabeça sobre o seu peito. O jovem a aninhou e beijou a sua testa em um gesto protetor. — Chegou mais cedo hoje.

— A rainha me liberou, para que aproveitássemos o sol bonito que está lá fora. — Quando se sentia outra pessoa, Magdalena era uma amante nata da natureza. Contemplava as paisagens, a grama, as flores, os frutos, o rio, os mares, os pássaros, os esquilos, os coelhos, os micos, os veados... — Disse que devemos fazer uma caminhada! O seu banho já está preparado e não aceito “não” como resposta.

Após se arrumar e utilizar um vestido simples para o passeio, a mãe parecia renovada. Ainda estava entristecida e sem ânimo, mas parecia muito mais bela. Thomas enxergava a mesma beleza de anos atrás.  Uma beleza, ao mesmo tempo, interna e externa.

De mãos dadas, ambos deixaram o aposento. Retiraram-se da parte interior do palácio e andaram até os campos floridos. Thomas apanhou um pouco da água do riacho e limpou o seu rosto. Em seguida, molhou a roupa da mãe com as suas mãos. Magdalena, desejando fazer parte daquela brincadeira, fez o mesmo. Houve um momento em que o filho reparou as cicatrizes e os cortes no braço dela, mas não tocou no assunto, para que não relembrasse as fases ruins que foram obrigados a presenciar e enfrentar.

A vida era inacreditável. Uma manhã séria e completamente concentrada se transformou em uma tarde alegre, um momento raro entre o que restava de uma família. A ligação entre Madgalena e Thomas era algo certamente criado e abençoado pelos deuses, pois era uma sensação inexplicável. Assim que aqueles braços da mãe o acolhiam, Thomas voltava a se sentir um menino indefeso que dependia de carinho e de cuidados, deixando de ser o jovem em luto por ter perdido alguém que amava.

Quando a viu sorrir, ele soube que havia ganhado o seu dia.


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Notas finais do capítulo

O que acharam da introdução do personagem?
Acho que ele é uma das novidades do livro!