1896 escrita por Emily Rhondes


Capítulo 3
III - Isabelle


Notas iniciais do capítulo

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  - Que bom que ocorreu tudo bem. - Isabelle a abraça, e em seguida James.
  - Eles são assustadores de perto? A mulher barbada tentou controlar seus cabelos?
  - Não. - Ela nega, com uma careta. - Estavam de coleira.
  - Se não estivesse, você estava morta, tenho certeza. - Talvez. Ele tem razão.
  - Cala a boca, James.
  - É verdade. Ouvi falar que eles tem sangue florescente.
  - E você acreditou, seu estúpido?
Lia respira fundo, e os deixa. Aquilo tinha sido demais para ela. 
  - Lia. - A voz de Elliot a chama, ela se vira bruscamente, e ele abraça-a com força antes que possa ver seus olhos. - Você está bem?
  - Sim. - Ela abre um sorriso abobalhado. - Foi tudo bem.
  - Que alívio. - Elliot sorri, tirando uma mecha de seus cabelos rosas dos olhos. Ela guarda o ato na memória. – Se esses animais tivessem tocado em você...
— São pessoas, Elliot. – Ele abre um sorriso compreensivo, e segura seus ombros.
— Não são.
Lia respira fundo. As vezes ele era um idiota completo. Mas não importava. Elliot é Elliot e ela o ama.
 (...)
Seus pés percorriam a longa floresta numa velocidade incrível. Tinha que correr. Sua vida dependia disso. Tudo estava escuro, iluminado apenas pela luz do lampião em seus braços, sacudindo com o terreno irregular. Via as tochas perto do trem, sinalizando. Estava quase lá. Ia ficar tudo bem.
Só não tinha idéia do que ou de quem estava correndo. Muito menos o porquê. Seus pés param no mesmo instante que Lia vê Enoch ali, de pijama segurando um lampião.
— Merda. – Ele murmurou, se aproximando dela rapidamente. – Onde está?!
Nada sai de seus lábios. Ele se aproxima mais, analisando seus olhos.
— Lenna? – ele perguntou, com a mão firme segurando seu queixo.
— Onde estou?
Ele murmurou um palavrão, antes de agarrar seu braço e puxa-la para longe dali. A conduz apressadamente até o tanque improvisado de madame Levour ao lado do trem.
— Entre. Se limpe. Troque de roupa, me espere aqui. Não ouse sair daqui, LIA.
Ele diz firmemente, e Lia nem se mexe, vendo-o desaparecer nas trevas da floresta.
Trevas era o que tinha ali.
A água estava absurdamente gelada, mas ela não disse nada, já despindo-se e mergulhando completamente. Quando seus pulmões clamaram por ar, seu corpo voltou involuntariamente, e ao sair, se enrola na toalha secando no varal, e antes de colocar a própria roupa seca, ela vê uma luz azulada na floresta. Um grito distante, que não acorda ninguém, e ela reconhece a voz na hora: Charles.
— Lia. – a voz de Madame Levour a faz sentar na cama, completamente atônita. Um pesadelo. Um pesadelo completa e absurdamente louco e sem sentido. A não ser que... Enoch tenha feito algo ruim com Charles.
Agora parecia perfeitamente claro.
— Ai meu Deus.
— O que houve? – James pergunta, e ela vê os três encarando-a.
— Um pesadelo. – ela balbucia, pulando pra fora do vagão.
— Lia... Isso não é uma boa idéia... – James comenta, com um sorriso.
— Estamos em... – Lia arregala os olhos, e Isabelle grita.
— NOVA ORLEANS!
A grande cidade era completamente diferente do cenário que estavam antes: no meio do nada, cercados de mato e uma floresta escura. Ali, só via-se construções. Estavam num espaço aberto com chão de concreto. Era um espaço muito grande, feito apenas para o maior circo do sul do país, bem do lado de uma das muitas estações de trem da cidade. Muitas e muitas pessoas se mexiam de um lado para o outro, os homens de Ben trabalhando eficientemente para montar o circo até as dez daquele dia. Pertinho dali, uma avenida com carros correndo de um lado ao outro, e um bonde buzinando junto com todo o barulho a seu redor.
Postes prontos para se iluminarem com luz elétrica, homens de ternos chiques, mulheres de vestidos pomposos, carruagens com cavalos e as construções no estilo moderno que ela simplesmente adorava... Aquela era sua cidade. Era dela. Lia amava aquele lugar. Mais que Isabelle, talvez, ela se interessava apenas nos homens e nos holofordes que Nova Orleans proporcionava. Mas aquilo... Aquilo era a sínteses de todas as coisas boas para ela.
Mas não era hora disso. Seus dedos tremiam, os olhos nervosos procurando o tio. Sua cabeça estava confusa com todo o barulho, homens pararam para encarar seu pijama... Ela simplesmente sai correndo. Corre e corre entre as pessoas, até entrar no vagão onde estavam suas tigres, mal respirando. Não diz uma palavra a elas, que rugem em resposta, mas Lia apenas ecara o chão.
Ela realmente achava que Enoch tinha feito aquilo? Uma coisa era certa: Enoch era assustador, depressivo, odiava todo mundo e... Não tinha matado ela naquela noite...
Mas por outro lado era apenas um sonho ruim. E seu pai sempre dizia que sonhos tem verdades escondidas, e talvez era essa: Enoch matou Charles.
E ela não podia contar a ninguém.
Seus pensamentos são interrompidos pelo tio, que coloca apenas a cabeça para dentro e grita.
— COMO ASSIM VOCÊ SAI CORRENDO DE PIJAMA NA CIDADE GRANDE, VOCÊ TÁ LOUCA? Quer que achem que somos cafetões de vadias que saem semi nuas por aí?
Ela faz uma careta e prende o riso com a mão. O que?
— Vista isso, agora!
E fecha a porta novamente, deixando-a com as tigresas.
— Bom dia.
Lia se veste, com cada imagem daquele sonho na cabeça. Nossa, ela precisava mesmo sair dali. Agora vestida com um vestido azul marinho de mangas compridas todo fechado até o pescoço, de camurça e flores pretas de veludo por toda sua extensão, ela sai prendendo o cabelo rosa num coque. Elliot estava apoiado em sua bicicleta fora do vagão, e abre um sorriso quando a vê.
— Bom dia.
— Bom dia. – ela responde, sorrindo, sabendo o que viria a seguir.
— O que Lia livre lia enquanto limbo livre lia livros? - Seus olhos se reviram, sem largar o sorrisão enorme.
— Lia lia livro.
— Resposta certa. Bem... Eu pensei que iria gostar de um passeio pela cidade... Você adora isso aqui...
— Pensou certo. – Lia sorri, e Elliot se senta no banco.
— Então eu dirijo. - A bicicleta era dela. Ela sabia muito bem dirigir. Mas ele nunca deixaria ela dirigir pra ele.
— Sei.
— É melhor segurar. - Ele diz, e Lia sorri, segurando no banco, e Elliot começa a pedalar, buzinando para as pessoas saírem da frente.
Logo, estavam andando entre os carros, pessoas e cavalos, e o sorriso crescia no rosto de Lia. O vento bate contra seu rosto, o que logo faz o coque se desmanchar, e seus cabelos rosas ficarem livres ao vento.
E Elliot ali. Tão perto dela.
Uma mulher xinga quando Elliot passa muito perto dela. Receberam olhares de todo mundo, não era novidade que seus cabelos rosas não eram da cidade. E cabelos rosas eram associados aos circos.
Achavam que todos eles eram aberrações.
As ruas se estendiam até parecer que não acabam, e as pessoas surgiam aos montes, seguindo suas vidas. Prédios, lojas, locais comerciais, bancas, tudo em estilo barroco e velho.
Eles deram voltas e voltas, até Lia ver uma cena que a faz arregalar os olhos.
— ELLIOT, PARA A BICICLETA. - O garoto freia de repente, lançando-a contra seu corpo.
— Meu Deus, Lia, você está bem? - Ele vira para trás, e ela o ignora, já descendo.
Seus pés a levam até o beco, onde dois garotos empurravam e batiam num menino menor.
— Ei! - Eles pararam de rir, e olharam pra ela.
— Merda. - Elliot murmura, largando a bicicleta, e observando-a de longe.
— O que diabos vocês estão fazendo?
Ambos tinham cabelos dourados e olhos azuis, um mais alto que o outro.
— Não é da sua conta, sua aberração de circo.
— A gente não tem medo de bater em mulher.
Os olhos de Lia param no garoto tremendo no canto.
— Deixem ele ir. - Ela diz, firme, com os olhos pegando fogo, e Elliot se espanta. Parecia outra pessoa.
— Ou o que?
Lia berra no mesmo instante, se jogando contra o mais alto, o derrubando, antes de soca-lo com toda a força. O garoto apanhava, completamente desorientado, o que durou até o outro irmão acertar um soco que derrubou-a no chão.
E foi tudo que precisou para Elliot ataca-lo, acertando seus dezoito anos no rosto do moleque, enquanto se defendia dos golpes patéticos do garoto mais novo que ele.
Os dois saíram correndo, com as bocas sangrando e os olhos humilhados. Elliot se abaixa ao lado de Lia, tocando seu ombro.
— Você está bem? - Ela assente, com um sorriso cheio de sangue nos dentes. Elliot luta contra um sorriso. - Oh, Deus. Você tá louca? Podia ter se machucado feio.
— Obrigada. - Ela sorri novamente, e ele suspira, rindo, antes de ergue-la pelos ombros.
— De nada.
— Eu quem digo, obrigado. - A voz do garoto os faz virar. Ele tinha um enorme sotaque que ela não sabia de onde era.
— De nada. - Ela responde, e ele se levanta. Era mais novo que eles, e sua pele negra acompanhava os cabelos.
— Por que estavam te batendo? - Elliot arqueia uma sobrancelhas.
— Porque acha? - Ele sorri, zombando da própria condição. - Sou Akim. Da Nigéria.
— Lia e ele é o Elliot. - Ele acena.
— Vocês são do circo. Seu cabelo denuncia. - Ela sorri, jogando os cabelos para trás.
— Eu sei. Obrigada. - ele ri.
— Estou procurando um emprego.
— Onde estão seus pais? - Elliot pergunta.
— Mortos.
— Bem vindo ao circo. - Lia sorri. - Sabe limpar as coisas?
(...)
— Um nigeriano. Podemos expor ele ao público.
— O QUE?
O escritório do seu tio era um vagão inteiro. Sua mesa, prateleiras com livros de seu irmão (que ele mal sabia ler), um selotex com informações, a cadeira e uma cama no canto.
— Ele veio para trabalhar. Se não for isso, vou leva-lo de volta.
— Okay, contrate-o. Enoch e a madame Levour não estão dando conta. Um negro, então podemos pagar pouco a ele.
Lia respira fundo para não lhe dar uma resposta malvada.
— Chame-o aqui. E vá alimentar as aberrações.
Sim, senhor. Sim, senhor. Ela o odiava com toda força.
(...)
E novamente ela encarava o vagão todo pintado de preto, com o coração na mão e a alma dividida. Aquilo era errado. Haviam forçado seu pai a prender as aberrações, e uns anos depois ela nasceu. Sua mãe morreu, e seu pai não aguentou a vida sem ela.
É a história que contaram. E não fazia o menor sentido. No fundo ela sabia.
Lia abre a porta, e novamente o ar gelado sai de dentro do vagão.
A mesma coisa.
Billy ficou invisível. A mulher barbada fingiu que não a viu. A telecinética a encarou, como se vasculhasse sua alma. Félix focava no livro em suas mãos.
Lia não havia percebido antes, mas eles tinham alguns pertences. Félix tinha três livros e o porta retrato. A garotinha duas bonecas de pano sujas, Billy um carrinho de madeira sem uma roda. A mulher tinha um... boneco voodu.
— Gostou do Bobby? - ela pergunta, e Lia respira fundo. São pessoas. Iria trata-los como tal.
— Sim. É diferente.
Ela começa a servir os pratos, sem olha-los.
— Não está mais com medo? - Félix pergunta, e ela vê um tom de ironia em sua voz.
— Não. Vocês são pessoas.
— É a coisa mais gentil que já disseram pra gente. - A mulher gargalha. - Meu nome é Elane.
— É um nome bonito. - Félix fecha o livro, recebendo seu prato de comida.
— Se somos pessoas, porque não nos deixa sair? - a garotinha pergunta. Lia suspira, encarando-a. Que coisa.
— Não vou te responder.
— Okay. Gostei de você. - a menininha sorri, abraçada as bonecas. - Meu nome é Ninna. E esse boboca tímido é o Billy.
Lia vê o garoto ficar visível e revirar os olhos. Ela dá os respectivos pratos de comida para cada um deles, não sem antes abrir a janela que lhes dava o banho de sol diário.
Ela os observa comer em silêncio. Félix é o primeiro a acabar, e encara-a como quem elaborasse um discurso.
— Posso fazer uma pergunta? - Lia assente imediatamente, surpresa. - Houve outro assassinato?
Lia arregalou os olhos, sendo fitada pelos quatro pares de olhos atrás das grades. Novamente seu olhar para na gaiola vazia. Talvez o tio a colocasse ali.
— Sim.
— Quem foi? - Ninna gaguejou, abraçando o corpo.
— Não sabemos.
— De novo não... - Félix murmura.
— Como assim, de novo? - Lia.
— Não se lembra do motivo que estamos aqui? - Elane diz, ríspida, terminando de comer. Ah. O mágico. - Esse circo tem um longa história de assassinatos.
— Quem mais foi assassinado? - a garota indaga, quase que instantaneamente, confusa. O mágico, e Charles. O que não estavam contando a ela?
— Cala a boca, Elane. - Félix insistiu, e a mulher de barba sorri.
— Eu mexeria nas coisas do seu tio se fosse você.
— Pare com isso! Não é nada, Lia. - Félix diz. - Acho que você já pode ir.
— É claro. - Ela diz, desconfiada. Com certeza faria isso depois. - Mas como sabem do assassinato?
— Enoch. - Eles brigam com Ninna por deda-lo, mas a mente da garota está em outro lugar. No sonho que tivera.
No sonho onde Enoch matava Charles.
(...)
Uma música tocava alta no vinil. Era o maior vinil que já vira na vida, e seu som se estendia por toda a tenda. Era uma enorme tenda, vermelha e branca como todas as tendas de circo do mundo, mas o Circo Prodigiosum é o Circo Prodigiosum.
O picadeiro era circular e enorme, com o chão de cimento pouco se destacando. A corda bamba estava posicionada, e a rede pronta para ser estendida quando Blair fosse se apresentar na corda bamba. Naquele momento, todos treinavam seus números. Olorax atirava facas que passavam quase raspando no corpo esguio de Blair, Hector treinava suas mágicas, explicando para Akim, seu novo assistente, o que o garoto devia fazer para enganar o público.
O domador Groot, que ajudava Lia lidar com os Tigres, nesse momento levantava pesos de 500 kg, Jun-Jin faziam malabarismo ajudando um ao outro, ensaiando seu número com Pierre, o palhaço que se encontrava sem maquiagem, rindo dos dois irmãos.
Marlon, em cima das pernas de pau, ria com Isabelle e James, numa pausa de suas apresentações no trapézio, as Bailarinas treinavam equilibrio e alongamento sem os cavalos, e Elliot e seus amigos conversavam, com certeza sobre como ficariam o número sem Charles.
Lia passa os olhos pelo lugar. Seu tio inspecionava as ações de todos, ensaiando as próprias falas. Ele assumiu o lugar de seu pai, o de apresentador do circo. E ela odiava isso. Um ódio tremendo que vibrava as paredes.
Seus pés foram ligeiros ao sair por trás da arquibancada de ferro sem ninguém ver. Lá fora haviam apenas os homens de seu tio, sentados numa sombra tomando café juntos. Ela seguiu pelo sol escaldante até destrancar o escritório de seu tio, e fechar a porta atrás de si.
Foram precisos apenas um segundo para ela começar a fuçar nos arquivos em cima da mesa. Valores, algumas palavras simples que ele conseguia ler, mais valores, números, números. Nada de interessante, isso era recente.
Partiu para as gavetas, achando primeiro mais registros antigos, e depois elásticos, canetas tinteiros, material de escritório. Até que forçou uma gaveta e ela não abriu. Foi para a próxima e aconteceu a mesma coisa. Agora seus dedos passeavam procurando uma chave.
Onde ele guardaria uma chave? Sua mente se concentra em pensar como o tio. Vai até os livros, e os tira do lugar, lendo apenas o título. "Guerra e Paz", "Dom Casmurro", que vinha do Brasil. Livros de Aristóteles... Coisas de seu pai. Até que debaixo de "O Sobrinho de Ramneau", encontra um chaveiro com duas chaves.
Com um sorriso vitorioso, ela parte para as gavetas, e abre a de cima, achando apenas dinheiro. Notas e notas, todas espremidas que formavam parte da fortuna do circo, mas ela sabia que havia mais dinheiro escondido. Ela mesma tinha sua parte, deixada por seu pai.
A gaveta debaixo. Seus dedos começam a tremer, e a chave é enfiada na fechadura com cuidado, como se fosse quebrar e revelar segredos. Lia pega primeiro o revólver super antiquado, e o avalia. Já fora usado. Uma única vez. Era de seu pai.
O que seu pai usara para tirar a própria vida. Largar aquilo na mesa com um baque foi tudo que conseguiu fazer, se esforçando ao máximo para não pensar nisso. Se pensasse, já era.
Depois, viu vários recortes de jornal.
"O circo Prodigiosum bate recorde de público na noite de estreia" de 1760. Seu avô havia fundado o circo naquela noite.
"Aberração mata Mágico do circo Prodigiosum." De 1849.
"Aberração é morta em praça pública pelo assassinato de Mágico, e o réu condena a prisão todas as aberrações do Sul" do mesmo ano. Haviam fotos de Hemdoff momentos antes de ser fuzilado. Ele encarava a câmera, com um sorriso sádico cheio de sangue.
Fotos de aberrações já presas. Ela reconhece Félix. Seus olhos saltam ao ver o cospidor de fogo com apenas uns três anos de idade sendo acorrentado enquanto tentava soltar seu fogo.
"Caçada as aberrações continua" em 1851. Ninguém descansou até prender cada aberração ali.
"Casamento no Circo. Dono do
Prodigiosum se casa em meio a apresentação" 1878. Ela sorri, com os olhos cheios de lágrimas de nostalgia e felicidade. Na foto de PÉSSIMA qualidade mostrava sua mãe e seu pai, sorrindo. Ela com seu vestido que parecia ser rosa todo brilhante, cercada por tigres e dançando com seu pai, enquanto malabaristas e trapezistas se lançavam em suas cabeças. Naquele dia, seu pai deixou o ingresso de graça para todos que quisessem ter a alegria do circo. Lia nasceria dois anos depois.
"Lianna Estraña, do circo Prodigiosum morre de Câncer" 1888. Lia suspira. Ela só tinha 8 anos.
"Eric Estraña, dono do circo Prodigiosum, é encontrado com um tiro na cabeça, deixando para trás uma filha de 11 anos e a fortuna do circo. A polícia deu o caso como suicídio" 1892. E ali estava ela. Sem pai. Tentava não odia-lo por te-la deixado sozinha com aquele homem horrível.
Já considerou milhares de vezes seguir esse caminho, mas não podia. Sabe que seu pai foi para o inferno... E não havia coragem. Ela tem esperança. Esperança de dias melhores, era essa força que a faz acordar todo santo dia. Ela tem Elliot, Isabelle, James...
Uma última manchete, com as anotações "Não publicada":
"A polícia avalia o caso do suicídio de Estraña como assassinato"
Ela fita o ar a sua frente, deixando a folha cair no chão. Lágrimas ameaçavam formar, e suas pernas tremiam. Tudo fazia sentido. Seu pai nunca se mataria, e ela devia saber isso.
A arma... a arma na gaveta... Uma lágrima cai, com ela fitando a coisa. Aquela arma matou seu pai, e ela havia tocado nela.
Mais lágrimas vem, e aquela altura já seria impossível parar de soluçar. Seus dedos tremendo pegam um dos papéis amassados da gaveta.
"Eric,
Ela foi levada. Por culpa sua. Você disse que iria protege-la. Seu mentiroso miserável. Ela está morta, e a CULPA É SUA. Meu luto não existe mais, agora apenas ódio, e com certeza guardei para esse momento. Vou esperar pacientemente. Eu juro pela minha vida, nem que seja a última coisa que eu faça: eu vou te matar. Vou destruir sua família como você DESTRUIU a minha. Você já era. Que Deus tenha piedade da sua alma.
Enoch"
Mais lágrimas caem, e dessa vez suas pernas cedem, a fazendo cair soluçando apoiada na gaveta. Seu coração corroia, o desespero tomava posse de seu corpo.
Lia pega a arma de novo, e toca o cano em sua cabeça, fechando os olhos sem deixar as lágrimas de lado.
A música que as crianças cantavam para infernizar sua vida quando ela era menor ecoa.
"Um, dois,
Ela vem por você
Três, quatro,
Já acabou, meu anjo,
Cinco, seis,
Você está morta
Sete, oito,
Não devia ter nascido"
Os dedos roçando o gatilho. Aperte.
— LIA.
Braços a derrubam no chão, e a arma se perde de sua mão. Lia abre os olhos. Elliot segurava seu rosto gritando coisas assustadas que ela mal ouvia.
— Lia, fala comigo!
— E-Eu não ia fazer isso. - ela diz, com as lágrimas congelando em seu rosto. Seu rosto se contorceu numa cara assustada.
— O que?
— Eu não ia fazer isso.
Ele não diz nada, apenas a abraça com força. E ficam os dois ali, derrubados no chão, mas se abraçando sempre.
— Enoch matou meu pai.
— Oi? - ele arregala os olhos, afastando a cabeça do cabelo dela num susto.
— E Charles também. - Lia o mostrou a carta, e em seguida a manchete não publicada.
— Merda. E... S-Seu tio sabia? - Ele balbuciou. Ela não tinha pensado nisso. - Merda, merda, temos que sair daqui.
Lia assente, guardando tudo no lugar, inclusive a arma, no exato jeito que estava. Tranca as gavetas, e coloca o chaveiro embaixo do Dom Casmurro.
(...)
— E no sonho você ouve Charles gritar?
— Sim.
— E de quê estava fugindo? Por que ele te ajudou se odiava seu pai?
— Não sei, Elliot. Talvez tenha sido só um sonho.
— Não acho isso.
Lia não diz nada, apenas encara o horizonte.
— E... Isso não explica o porquê de você estar com uma arma apontada para a própria cabeça.
Lia fecha os olhos, absorvendo a brisa do Sul. Estavam os dois sentados em cima do vagão, apenas encarando o entardecer do circo.
— Eu não ia atirar.
— Mas estava lá.
— Eu sei. - ela encara seus olhos claros, e ele segura sua mão. Lia encara as duas mãos unidas. - Já considerei muitas vezes fazer isso, séria mais fácil. Mas não é o que eu quero.
— E o que você quer? - ele pergunta, e ela apenas o encara.
O encara por longos minutos. Ela sabia muito bem o que quer.
Não demora um segundo para Elliot juntar seus lábios num beijo desesperado. Lia usa cada força de seu corpo para não sorrir e interromper. Seu peito se enchia de uma alegria absurdamente quente.
Ele apertava sua cintura, ela segurava suas costas com firmeza, suas línguas dançando em chamas. Transbordando, seus corpos colados, pele com pele, os corações se tocando.
Mas a falta de ar vem, e eles se afastam, sorrindo um com o outro.
— Vem. - Ele desce do vagão com um pulo, e segura-a pela cintura para descer também. - Temos um espetáculo hoje.
Os dois saem de mãos dadas até a tenda, e Ben os observava de longe, com uma expressão franzida. Vai até seu escritório, e o destranca.
Quando passa a mão debaixo do livro"O Sobrinho de Ramneau", e não a encontra, suas suspeitas tinham se confirmado. Lia entrara em seu escritório.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo teremos uma apresentação do circo, aos que estavam ansiosos!
Comentem XD



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