Feche a porta quando sair escrita por Duda Cartman


Capítulo 3
Você não é pago para dar opiniões!




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Noah

 Assim que acordei, nauseado e com uma dor de cabeça terrível, fui até o meu armário pegar mais uma das diversas telas em branco que eu tinha, tentando ignorar a minha tontura e diferenciar os potinhos de tinta, que ficavam escondidos e organizados em ordem alfabética por cor dentro das gavetas.

Levantei as minhas calças, feliz por não me lembrar do que aconteceu para que elas tivessem abaixadas.

Eu não sabia exatamente quando adormeci e nem como, pois a primeira coisa que senti quando despertei foi a dor dilacerante das minhas mais recentes fissuras.

Sacudi a cabeça, tentando não pensar muito nisso e comecei a pintar mais um dos meus desenhos abstratos, que muitas vezes não tinham significado nem mesmo para mim.

Contornei as linhas grossas, sombreando-as com vermelho. Não fazia muito sentido e eu nem era um bom pintor, mas era apenas uma coisa que eu fazia para me distrair daquele pesadelo que me assombrava todas as noites, me forçando a beber.

Meu mundo era assim: pequeno, solitário e completamente cinzento. Talvez por isso eu gostasse tanto de pintar e desenhar. As cores das tintas davam as cores que faltavam em minha vida e ainda assim, não bastava.

Depois que terminei, lavei as mãos, escovei os dentes e desci para tomar café sabendo que teria que vomitar tudo depois por conta das fissuras. Sem falar que à noite eu precisaria beber de novo e se eu deixasse comida no meu estômago provavelmente amenizaria o efeito do álcool e não era isso que eu queria.

Eu não vomitava tudo, só o bastante para o efeito do álcool ser o máximo possível e não sentir tanta dor.

Após comer feito uma traça e vomitar metade de tudo o que comi, fui até o estábulo conversar com o meu tão adorado cavalo negro que acabei dando o nome de Trovão, que ironicamente era a coisa que eu mais temia no mundo.

Fiz questão de colocar uma roupa mais leve, a minha coroa e me apressei, andando pelo gramado, contornando a fonte inútil e soltando o ar ao alisar a crina do cavalo, que sempre ficava feliz em me ver.

— Sentiu saudades, Trovão? — murmurei com um sorriso. — Estou com uma dor de cabeça tremenda.

O cavalo fez um barulho enquanto balançava aquela cauda longa e brilhante como se fosse um cachorrinho feliz.

Sempre achei que eu e Trovão tivéssemos uma espécie de conexão, talvez se devesse ao fato de ele ser considerado um cavalo indomável e até mesmo rebelde antes de me conhecer. Insisti ao meu pai que eu o queria, mesmo o criador dizendo que não era um bom negócio. Meu pai relutou, porém acabou comprando como sempre comprava praticamente tudo o que eu queria e ainda assim nunca ficava satisfeito.

— Tive uma péssima noite de sono, Trovão — comentei.

— Eu também não tive uma muito boa — respondeu uma voz.

Rapidamente me afastei do cavalo e fiquei olhando igual a um idiota para seus lábios. Pisquei antes de sacudir a cabeça quando tudo levava a crer que o cavalo tinha falado comigo, até sentir alguém atrás de mim e dar de cara com o sorriso detestável de Ian.

— Você me assustou — falei levemente irritado. As pessoas deveriam aprender a se pronunciar antes de entrar em um recinto.

— Desculpe, príncipe — ele pareceu sincero.

— Que seja — minha voz era amarga. — O que faz aqui?

— Queria saber se você estava bem — Ian se aproximou e o analisei de cima a baixo notando as roupas horrorosas que vestia e franzindo o nariz para elas.

— Estou ótimo — empinei o queixo enquanto voltava a acariciar Trovão.

— Ele é seu? — perguntou parecendo notar agora o imenso cavalo negro.

— Sim.

— É muito bonito.

— Eu sei — sibilei, entediado. — Bem, ele parece faminto. Já que está aqui, alimente o cavalo.

— Não sou o seu empregado — Ian revirou os olhos, nada satisfeito com o meu pedido. — Sou seu motorista, sou pago apenas para dirigir para você e não para fazer tudo o que você quer.

— E quem alimentará o cavalo? — Minhas sobrancelhas se uniram de pura incredulidade.

— Alimente você. Já está bem grandinho, não acha? Está na hora de aprender a fazer as coisas sozinho.

— Por que eu me daria ao trabalho sendo que tem pessoas que são pagas para fazer por mim? — indaguei surpreso por ele não ter chegado a essa conclusão óbvia.

— Você é ainda mais mimado do que eu pensava — resmungou baixinho, se divertindo com o fato.

— Cale a boca — grunhi entredentes. — Você não é pago para dar opiniões, posso te demitir a qualquer momento se começar a me encher demais.

— Não pode não — Seu sorriso se alargou. — Fui contratado pelos seus pais, trabalho para eles e não para você, apenas eles podem me demitir.

— Você é o meu motorista, dirige para mim e não para eles — meu tom de voz ficou um pouco mais alto. Ninguém tirava sarro de mim na minha frente e saia impune. — E em breve serei rei, mandarei em tudo, inclusive no solo que você pisa, então acho melhor você me tratar muito bem se quiser continuar respirando.

— Você não é o dono do universo, Chevalier — Ele se aproximou, o sorriso se esvaindo e a voz ficando mais dura. — Só te tratarei bem quando merecer.

Deixei Trovão de lado e dei dois passos para a frente, semicerrando os olhos e me controlando para não surtar.

— Posso não ser o dono do universo ainda — ressaltei —, mas sou o dono dessa ilha você gostando ou não.

— E isso não te dá nenhum direito sobre mim.

— Sobre você? — Tive vontade de rir, só não o fiz porque ele não merecia esse gesto inédito. — Tenho direito sobre todos que pisam nesse solo e acho bom você se acostumar, pois isso nunca vai mudar.

Ian sacudiu levemente a cabeça e deu dois passos para trás.

— Se você diz — finalmente falou, parecendo desistir da discussão. — Não estou a fim de brigar com você.

— Não estamos brigando, jamais perderia o meu tempo brigando com você —praticamente cuspi as palavras, me sentindo extremamente irritado pela sua aparente falta de profissionalismo.

Motoristas não eram pagos para dar opiniões e nem para estar no mesmo estábulo que eu se recusando a fazer uma tarefa e ainda querendo me dar uma liçãozinha de moral como se não soubesse com quem estava falando.

Ele respirou fundo e voltou a sorrir como se eu tivesse o elogiado e isso só me irritou ainda mais.

— Por que continua com essa coroa na cabeça? — perguntou com curiosidade, mudando de assunto de propósito.

— Isso não é da sua conta — Me voltei para o Trovão, desistindo de dialogar com ele. — Vai fazer seja lá o que os motoristas fazem quando não estão de serviço.

— Não deveria usá-la — Ele continuou como se eu não tivesse falado e isso só fez meu sangue ferver. Ninguém passava por cima dos meus argumentos. — Você fica muito mais bonito sem ela.

Automaticamente parei de acariciar o cavalo e me virei para ele de olhos arregalados. Não estava acostumado a receber elogios, porque eu nunca dei abertura para as pessoas fazerem tal coisa. Mas pela cara de satisfação de Ian, estava óbvio que ele tinha dito isso apenas para me deixar boquiaberto.

— O que está insinuando?

— Nada, foi só um elogio — Ele ergueu os braços na defensiva. — Geralmente as pessoas dizem obrigado quando recebem um.

— Pode esperar sentado, Stuart — rosnei. — Jamais agradecerei a você ou a qualquer pessoa por algo. Não fazem mais do que a obrigação de vocês que é me servir.

— Dizer que você fica bonito sem a coroa é uma obrigação? — Ele franziu a testa, não se convencendo do meu argumento.

— Acho que já mandei você calar a boca. — Pude sentir minhas bochechas ruborizarem não por vergonha, mas por ódio. Ele já estava extrapolando os limites e eu tinha quase certeza de que ele e Catarina estavam competindo para ver quem me irritava mais. — E a melhor coisa que você pode fazer é obedecer.

— Calma. — Ele piscou, levantou o braço fazendo menção em tocar o meu ombro e desistiu com um suspiro pesado, certamente chegando à conclusão de que aquele toque não seria bem recebido.

— Estou muito calmo — assegurei, tentando me manter no mesmo nível que ele. Meu tamanho desproporcional ao dele não me dava muito crédito. Ian era um pouco mais alto e isso me irritava ainda mais. Ninguém deveria ser mais alto do que o príncipe, muito menos o motorista dele.

— Não parece — respondeu, tirando vantagem da sua altura ao notar o quão pequeno eu me sentia ao seu lado. — Então é assim que você afasta as pessoas, não é? – concluiu com aquele sorriso que me deixava aflito ao saber que eu jamais poderia fazer igual. A cada segundo que passava eu o odiava mais.

— Assim como? — grunhi, tentando manter o tom de voz mais alto do que o dele.

— Com esse seu ar superior e mesquinho — argumentou tão calmamente que mal parecia uma ofensa, mas suas palavras me fizeram trincar os dentes em resposta.

Quem ele pensava que era para falar assim comigo? Só porque eu não podia demiti-lo, não lhe dava o direito de me ofender gratuitamente como se fosse o dono da verdade.

— Como ousa me ofender? — Apertei minhas mãos em punho e semicerrei os olhos pensando se dava ou não um soco na cara dele. Ao medir discretamente a minha força com o punho, vi que não conseguiria nada a não ser arrancar risadas dele por conta da minha fraqueza, devido aos meus hábitos alimentares.

 — Não estou te ofendendo, só estou dizendo o que todo mundo gostaria de dizer para você — Ele se apoiou em uma das madeiras que cercavam o cavalo, cruzando os braços com satisfação. — Príncipe — pronunciou como se não tivesse a menor ideia do peso daquele título que eu carregava com tanto orgulho.

— O que você quer? — questionei sem reação. Não podia bater nele por não ter força, nem ligar para o meu pai e pedir que o demitisse, porque isso só iria mostrar a ele o quão mimado eu era.

E eu não era mimado!

— Sei que você é muito solitário.

— Não sei de onde você tirou isso — rosnei com irritação. Não gostava nenhum pouco de ouvir isso em voz alta.

— Para início de conversa, você estava falando com o cavalo quando cheguei.

Mordi o lábio, buscando uma resposta coerente.

— Que seja, mas não costumo ser observado aqui — falei pausadamente. — Muito menos pelo meu motorista — dei ênfase no meu de propósito para que ele soubesse quem mandava.

Para a minha surpresa, ele corou.

— Só estou seguindo ordens da sua mãe — respondeu, ainda vermelho. — Ela pediu para eu não te deixar sozinho.

— Além de atazanar a minha pouca paciência ainda vai ser a minha babá? — questionei, descrente. — Você ia me deixar sozinho no clube ontem à noite, isso não é quebrar as regras da minha mãe? — minha voz tremeu quando me referi a ela e Ian provavelmente notou esse tremor, mas para o meu alívio não disse nada a respeito.

Isso só me deixou ainda mais intrigado. Minha mãe além de contratar um motorista para mim sem o meu consentimento, ainda teve a audácia de pedir que me vigiasse como se eu fosse uma criança birrenta.

— Achei melhor te esperar lá fora, mas você insistiu que eu entrasse. Falando nisso, você bebe muito, se continuar assim pode acabar sofrendo consequências muito graves. Ainda é muito novo, tanto álcool vai destruir a sua vida.

— Quem você pensa que é para me dar lição de moral? Eu bebo a quantidade que eu bem entender e você não tem nada a ver com isso.

— Sei que a bebida traz uma sensação boa de libertação, como se você fosse o dono do universo, como se pudesse fazer qualquer coisa e fosse invencível. Mas isso tudo não passa de uma ilusão, príncipe, e a única coisa que sobra dessa sensação é a ressaca que você ganha no dia seguinte depois de prometer a si mesmo que nunca mais vai voltar a beber e fracassando miseravelmente na primeira recaída.

Ian falava com tanta propriedade sobre o assunto, que me deixou um pouco pasmo, mas isso não mudava os fatos. Ele me via como um adolescente alcoólatra e eu não era nada daquilo. Não bebia por nenhuma das sensações que ele descreveu.

Ele não sabia nada sobre mim ou os meus motivos e ficar tentando adivinhar como se fosse uma verdade absoluta só o deixava ainda mais ridículo,

— Você não sabe de nada — rosnei com raiva. Não precisava de suas frases filosóficas e nem nada daquilo.

Mostrei os dentes para ele como se eu fosse um cão raivoso e me virei com passos decididos e elegantes deixando-o sozinho com Trovão e a sua sabedoria de quinta categoria.

 

 

 

 

 

 


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