Intrinsically escrita por Jay L


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Tentei postar o quanto antes, espero que gostem ♥



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Capítulo 2

Desde criança, Katniss possuía uma fascinação especial por olhos. Inexplicavelmente, considerava-os a parte mais chamativa das pessoas, fossem olhos feios ou bonitos. Os de sua mãe, azuis cristalinos de dar inveja, costumavam ser os seus preferidos. A menina choramingava desejando olhos azuis como os de Effie.

— Pobre criança, não foi abençoada com meus genes. – dizia a mulher, estalando a língua tristemente.

Haymitch fuzilava Effie quando ela fazia comentários que ele chamava de "gatilhos desmotivacionais", para dizer o mínimo, e Katniss franzia a testa e fungava.

Os olhos de Katniss não eram feios, nem de longe. Dotados de um cinza translúcido hipnotizante, permitiam a qualquer um que olhasse por muito tempo enxergar a si mesmo nos orbes, o reflexo interno do que Katniss via. Todavia, a garota nunca percebia isso, já que, sendo bem franca, jamais pensou em si mesma como detentora de atratividade ou excepcionalidade. As pessoas tinham a peculiar mania de notar preciosidade nela antes que ela própria o fizesse.

Essa era Katniss. A garota que se encolhia quando faziam-lhe estimas e se auto negava com veemência após, subjetivamente, afirmar que o elogio fora por pura educação. Consciente disso, Haymitch garantia à filha a honra de ser dona da beleza universal. Linda, única e especial, hoje levando-a pensar que todo o discurso pronto do pai não passava de uma mentira bonita aos ouvidos, considerando que, nos dias presentes, ele falava com ela apenas o necessário, ou para soltar suas piadas sem graça de homem amargurado.

Embora apreciasse os espelhos da alma, passou a odiar, particularmente, olhos azuis. A cor não trouxera nenhum benefício até então. Katniss enumerava as denominadas “desgraças azuis” da sua vida numa listinha miserável: aos quatro anos, comera um bolinho de recheio azul que lhe deu uma intoxicação alimentar dos infernos; aos cinco, descobriu que precisava arrancar um dente comprometido por cárie, fruto da compulsão por Blue Explosion, o chiclete explosivo que deixava a língua azul; sua primeira queda de bicicleta foi numa monareta azul e capenga; a primeira nota azul no primário não proporcionou a aclamação que os pais dão aos filhos que conseguem sucesso escolar.

Porém, indubitavelmente, o pior dos itens equivalia aos olhos de sua mãe. A dona deles causara uma dor pungente e dilacerante à menina de, no tempo, oito anos. O desprazer pelo azul o tornou a mais odiada das cores, mais que salmão. A situação encobriu-lhe a áurea espontânea e divertida, sobrando a versão pálida e desgostosa de seu céu tempestuoso.

Só que, contemplando os dois globos azuis do entregador, Katniss não sentiu mágoa ou sentimento parecido, ainda que fossem tão semelhantes aos de Effie. De todas as sensações que se pode ter por um desconhecido, ela ficou desconcertada. O rancor não ousaria contrariar a incontestabilidade da beleza óbvia que abrigavam.

O pigarro do rapaz a fez cair em si, a idiota, certa de que sua expressão a deixou com ar de pateta. O que há com você, Katniss? Pelo amor de Deus, não seja estranha.

— São quinze pratas, moça. – o entregador disse, visivelmente incomodado, ligeiramente apressado. Tinha coisas a fazer, esperar a garota o olhando com cara de paisagem atrasaria seus compromissos.

— Aqui. – Katniss tirou o dinheiro do bolso do short e, entregando-o, pegou a caixa octogonal das mãos do rapaz – Obrigada, tenha uma boa noite. - arriscou um sorriso.

O entregador anuiu com rigidez.

— Tenha uma boa noite também.

Ele percorreu o curto trajeto da varanda à vespa elétrica estacionada no meio – fio. O veículo pequeno e verde-escuro continha a logo do Pizza Planet na lateral, uma pizza com anéis de cebola em volta numa galáxia tomada de estrelas minúsculas e naves em formato de picles, tomates e azeitonas, além de um astronauta pairando. Agilmente, o entregador subiu na vespa e arrancou rua adentro, o motor zumbindo como um inseto gigante.

 Katniss entrou em casa de nariz torcido. O dono da pizzaria precisava conversar com os funcionários sobre o quesito cortesia para com os clientes. Se Annie estivesse lá, teria perguntado ao entregador qual era o problema e provavelmente receberia uma resposta grosseira por ser tão direta.

Enquanto lavava as mãos para comer, o baque da porta abrindo e fechando a fez girar o pescoço com rapidez na direção do barulho.

— Droga. - reclamou do mau jeito no pescoço e massageou a região.

Nada de anormal acontecia, Haymitch entrava na sala aos tropeços, chutou a mesinha de centro e soltou impropérios, típica cena de domingo à noite a qual Katniss habituara-se. Cambaleando, chegou à cozinha, a aparência horrível e cheiro forte bebida. A garota rolou os olhos para cima ao ver o pai daquela forma, o bêbado insolente que teria de cuidar.

— E aí, Docinho? Não se deu ao trabalho de cozinhar de novo? – falou enrolado a palavra “trabalho”, o erre quase ininteligível. Sorriu de lado e indicou a pizza com a cabeça - Separe um pedaço pro seu velho, sim? Volto já.

Trôpego, alcançou a soleira da porta e parou, envergou o tronco para frente e despejou o whisky e seja lá o que tivesse comido durante o dia (estava embriagado demais para se lembrar). Gosma viscosa e de um amarelado doentio esparramou-se na lajota. A pálpebra esquerda de Katniss tremeu e ela esfregou a testa.

— Ai, meu Deus, meu Deus. – perdendo a paciência, suplicou baixinho.

Seu pai limpou a boca com as costas da mão e soluçou. Dane-se a calma.

— Que droga, Haymitch! Quando vai parar de agir como um bêbado inútil? – enojada, exclamou e buscou o material de limpeza na área de serviço adjacente à cozinha - Queria comer em paz por uns cinco minutos. É pedir muito?

O homem não ligava nem um pouco para o desconforto da filha. Não dava importância a tanta coisa há tanto tempo...

— Acho que comi tacos no almoço. – apontou o jorro de vômito.

Haymitch pisava perigosamente próximo da sujeira. Katniss deixou o material no chão e tentou afastá-lo da imundície.

— Ei! Me solta, eu posso me virar sozinho! – ele aumentou o tom de voz.

— É tão óbvio que não consegue nem se manter de pé dignamente.

Ter que lidar com o pai bêbado irritava-a até a alma. Aliás, ele por si só se esforçava bastante em desencadear esse estado nela, que, na maioria das vezes, mostrava- se tranquila com as coisas. As atitudes inconsequentes de Haymitch despertavam o pequeno monstro que habitava seu interior, fazendo-o crescer e tomar grandes proporções ao ponto de consumir Katniss e escapar por onde achasse uma brecha.

— Já disse para me largar! – ele tentou se desvencilhar de suas mãos - Não que cuide de mim ou diga o que tenho que fazer ou não. Eu sou o adulto da casa, Docinho.

Katniss reconhecia que sim. Era de seu conhecimento que o pai não precisava dela. Ele mostrava diariamente que não. Então, por que ainda continuava ali? Por que continuava a limpar a sujeira dele quando ela se sujava também? Por que ainda preocupava-se se o homem havia jantando ou onde andava quando demorava a voltar para casa? Haymitch podia ser muita coisa, mas não tolo ou burro, mesmo no mais alto estado de embriaguez. Ele era astuto, sabia se virar.

Embora fosse um cretino na maior parte do tempo, ela o amava. E, apesar das más circunstâncias em que a relação dos dois se encontrava nos últimos anos, aquele cretino era seu pai, sua única família, a pessoa que, ainda que desestabilizada em vários sentidos, não a abandonou, embora pudesse, como sua mãe fez. Haymitch aturava a situação do modo que achava mais viável e a filha, de uma maneira estranha, entendia-o. Bem no fundo de seu coração, um fiapo de esperança de que o pai pudesse mudar fazia-se presente nas perspectivas de futuro que tinha. Contudo, em hipótese alguma exteriorizaria isso. Fazia o tipo de pessoa que acreditava que, quanto menos gente soubesse de seus sonhos e projetos, maiores as chances de se concretizarem.

Katniss passou um dos braços dele pelo pescoço e, com muito custo, o pôs sentado na cadeira da cozinha. A madeira rangeu sob seu peso.

Durante a limpeza do chão, viu Haymitch estender a mão à caixa da pizza.

— Não! – guinchou e apontou o dedo em riste – Não vai comer do meu jantar sem antes lavar as mãos. Pelo menos isso, por favor. Você está imundo.

A contragosto, Haymitch foi à pia e lavou as mãos, aproveitando para jogar água no rosto. Irritara o suficiente sua Docinho por uma noite, melhor obedecê-la.

— Por que você não comeu as sobras de ontem? Eu disse antes de sair que estavam na geladeira – disse e escorregou sobre a cadeira.

— Azedou. Não prestava. – respondeu, terminando de passar o pano com desinfetante na árdua missão de tirar o fedor nauseante.

Haymitch coçou a barba por fazer e cutucou o tampo da mesa com o mindinho. Uma lasca de tinta se soltou.

— Hum.

Decidindo que o melhor a se fazer no momento era comer, voltou os olhos para a bandeja de pizza e apanhou uma fatia. Sem arrancar nenhuma reclamação da menina, sorriu ladeado, satisfeito consigo mesmo.

— Devia sair mais, Docinho. Não faz bem ficar enfurnada tanto tempo nessa casa. – antes de abocanhar a comida, instigou.

Qualquer um que analisasse a cena de fora, trataria a fala de Haymitch como uma admoestação que um pai cuidadoso faria à filha caseira. Mas Katniss conhecia o significado por trás daquelas, aparentemente, inofensivas palavras. Nem de longe ele era um pai normal e, conhecendo-o como conhecia, captou a provocação nas entrelinhas. Enervada, expirou com enfado e finalizou o serviço, a cozinha cheirava a eucalipto e lavanda. Na pia da área de serviço, sobrepôs os utensílios que usara e rumorejou Someday Soon.

— Please, please, please put me out. I promise not to do it again whatever I did to you.

Fitou o pano encardido e melado de vômito e, indisposta, jogou - lhe água a fim de tirar o excesso, optando por lavá-lo de verdade no dia seguinte, quando chegasse da escola. Somente depois de fazer uma minuciosa limpeza nas mãos, pegou o suco na geladeira, um copo e prosseguiu em comer. De jeito nenhum colocaria comida na boca tendo em mente estar com as mãos sujas de excretos de Haymitch.

Com um dissabor que lhe abateu as entranhas, Katniss constatara que a pizza, a princípio quentinha, jazia fria e não tão convidativa, a completar, o cheiro de álcool que exalava de Haymitch pairava no ar, mesmo com o aroma do sabão e desinfetante. Ele, porém, saboreava o jantar e desejava comer mais. Sua mão, prestes a roubar outra fatia, recebeu um tapinha da filha num claro aviso de que o que sobrara a pertencia.

Em silêncio, finalizaram a refeição, afinal, nenhum dos dois queria conversar. Não queriam e simplesmente não tinham o que falar um com o outro.

Katniss arrastou a cadeira ao se levantar, o som arranhado da madeira contra o piso fez Haymitch se encolher. Ela amassou a caixa de pizza vazia e a colocou na lixeira, no quintal. Na cozinha, Haymitch, sem lograr êxito, empenhava-se em manter os olhos abertos. Retornando, a garota deparou-se com o bêbado encostado com a cabeça sobre a mesa, que roncava ruidosamente.

— Maravilha. – gruniu.

Seria o inferno acordá-lo. Se havia algo além da bebida que o dominava, era o sono. Esses dois fatores faziam - na questionar-se como o pai permanecia empregado na Odair Cousin’s, a firma imobiliária em que trabalhava. De fato, ele era inacreditável, um sortudo filho da mãe.

Analisou, pois, as opções possíveis antes de tomar o veredicto final: deixá-lo onde estava e ir dormir, o que implicava a possibilidade de ele ter dores no pescoço no dia seguinte; chamá-lo continuamente por longos minutos, sacudindo-o um pouco e, talvez, ter sucesso; ou jogar água nele, a despeito de que, da última vez que fizera isso, fora obrigada a escutar as injúrias que Haymitch esbravejou. Por se importar com o pai e por querer o caminho mais curto para sair de cena, escolheu a última opção. Antes ouvi-lo enraivado do que reclamando de dores no pescoço, tendo um mau desempenho no trabalho, fora a ressaca.

Posicionada numa distância segura, Katniss pegou da mesa o copo que tomara suco e o encheu com água da torneira, jogando-a em Haymitch. No átimo seguinte, o homem pulou da cadeira e olhou assustado para os lados, um tanto enlouquecido, até que se deteve na filha afastada no canto e agarrada à beirada da pia. Cinza no cinza, aço no aço. Num estalar de dedos, entendeu o que acontecera mais uma vez.

— O que você pensa que está fazendo, Katniss? – mau sinal. Chamá-la pelo nome e não pelo irritante apelido representava a raiva em seu apogeu, tal qual ela o chamava pelo nome quando ele ficava bêbado.

— Já fiz, na verdade. – indiferente, deu de ombros - Agora, se eu fosse você, trataria de tomar um banho e trocar essa roupa. Não precisamos de ninguém doente aqui, muito menos desempregado por faltar no trabalho.

O olhar que Haymitch lhe direcionou era fatal. Ela, no entanto, não dava a mínima. Queria descansar, amanhã o dia seria comprido e implacável. Haymitch sacudiu a cabeça, respingando água como um cachorro molhado, e a segurou no ato, a tontura atingindo-lhe a toda.

— O banho você já fez o favor de me dar.

— Ótimo. Então troque de roupa e vamos deitar. – checou as horas no relógio da parede da porta, dez e quatro da noite.

Ainda irritado, Haymitch decidiu fazer o que Katniss dizia, amanhã teria uma dor de cabeça lancinante e, quanto antes descansasse, melhor. Juntos, saíram da cozinha, a enxaqueca de estresse lentamente atacando Katniss. Aguente mais um pouquinho.

— Haymitch.

O pai, de semblante fechado, parou à porta do banheiro e esperou.

— Precisamos chamar um técnico, a geladeira está nas últimas.

Katniss, então, trancou-se no quarto, sem ter a quem desejar boa noite.


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