Antes de ELA chegar escrita por Ahelin


Capítulo 7
6. Fazer uma coisa proibida


Notas iniciais do capítulo

Oi oi oi oooi, olha eu de novo depois de (quase) dois meses atualizando calmamente como se nada tivesse acontecido!
Gente, vocês não têm noção de como a minha vida tá corridaça! Eu leio os comentários de vocês e fico toda boba tentando responder, mas nunca tenho tempo aaaaaa prometo que no fim de semana eu vou responder tudinho!
Bom, como não é segredo, eu tô no último ano da escola e só estudo, mais nada. Galera do terceirão vai me entender.
Mesmo assim, tô aqui com um capítulo com mais de 5k pra compensar ahahahaha SÉRIO, eu nunca tinha escrito tanto, fiquei até assustada. Espero que valha a pena a demora.

Agradecimentos especiais pra esse capítulo:
•Meu lindo muso Giulliano por não me deixar desistir -q
•Meu Vader da vida real, cujo nome será preservado, por cumprir TODAS essas maluquices comigo (sim, gente, eu fiz isso)
•Bia Nascimento e Lady Hiih, pelas recomendações MARAVILHOSAS. Eu fiquei emocionada, de verdade. Obrigada, vocês são demais!

Sem mais delongas, aqui o capítulo. Espero que gostem :3



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— A gente devia cumprir um item hoje — murmurou Gustavo.

Virei para olhá-lo e a grama fez cócegas na minha bochecha. Estou me acostumando a prestar muito mais atenção em coisas como essa. Estávamos deitados no chão do parque do centro (para os íntimos, Parque do Peão) em sentidos contrários, minha cabeça ao lado da cabeça dele, então eu podia vê-lo bem.

— Ok — respondi, mas minha vontade era ficar deitada. O sol esquentava minha pele de uma forma que eu poderia lembrar para sempre. — Você sabe um aí, de cor?

A pergunta era um teste, por capricho. Eu não esperava que ele memorizasse cada coisa que eu lhe enviava por mensagem enquanto tinha uma epifania de madrugada.

— De cor, não. — Abri um sorriso maldoso e me preparei para começar um falso discurso sobre como ele deveria ter uma consideração maior por mim e blá-blá-blá, mas antes que eu pudesse fazer isso, ele tirou uma folha de caderno dobrada do bolso. — Vejamos...

Vader fez sua cara de marmota, quase fechando os olhos para conseguir enxergar o que estava escrito lá. Ele tinha esquecido seus olhos óculos em casa. Cheguei mais perto e deitei em seu ombro, tirando o papel de suas mãos e observando-o sozinha. Era uma cópia da minha lista, mas muito mais detalhada; tinha até os itens que eu só tinha mencionado uma vez, de brincadeira, e na frente de cada um ele tinha feito várias anotações com ideias que podíamos tentar.

Senti lágrimas se formando nos meus olhos.

— Você anda com isso pra todo lado? — Ri para afastar a emoção. Ultimamente venho sentindo uma vontade incontrolável de rir e chorar, às vezes ao mesmo tempo, o tempo todo.

Ele deu de ombros.

— Nunca se sabe quando uma ideia pode surgir. Então, você que enxerga, me diz aí qual quer tentar.

Li aleatoriamente seus rabiscos e parei num item onde não havia sugestões, apenas perguntas.

6. Fazer uma coisa proibida. Proibida por quem? Pela família? Pela igreja? Pela sociedade? Pelo Bro Code? A Helena é meio misteriosa às vezes.

— Escolhi — anunciei. Estava começando a perceber uma pequena dificuldade pra projetar minha voz. — Ah, é muito fofo você carregar minha lista por aí.

— Não é nada. — Ele sorriu. Apesar de suas palavras, deu pra ver que ficou feliz com o que falei. — Qual vai ser?

— Essa sua manifestação ao vivo de filosofia aqui — apontei. — Vamos fazer coisas proibidas, Gustavo. Prepare-se.

Ele se levantou e estendeu a mão para mim. Pude ver as engrenagens girando em sua cabeça enquanto me esforçava para me levantar.

— Ok, Helena. Uma coisa proibida. O que vai ser?

Parei pra pensar. Eu sempre quis nadar pelada na praia, mas nós moramos muito longe do litoral, então estava fora de cogitação. Não queria roubar nada, também, muito menos colocar fogo em alguma coisa aleatória.

— A gente pode cantar karaokê na biblioteca pública — dei de ombros. — Não é exatamente proibido, mas seria legal. Ou... — Parei de falar de repente. Tinha acabado de ter a melhor ideia do mundo.

— O quê? — exigiu Vader, agarrando meus ombros e me sacudindo. — Não faz suspense, sua maluca, seus olhos estão brilhando. Conta logo!

— Invadir uma casa assombrada — sussurrei. Tive a leve impressão de que ele aprovou a sugestão.

— A gente pode entrar em uma daquelas casas do bairro novo! E comprar bebida alcoólica com identidade falsa, ou entrar de penetra em uma fesa, também — continuou ele, baixando a voz no mesmo tom. — Estão vazias e talvez a gente ache alguns fantasmas.

— São casas novas, Vader. Não tem como alguém ter morrido lá. Você nunca viu um filme de terror?

— E você nunca viu Supernatural?

Ri alto e tive certeza de que esse seria um bom item.

Admito que, quando bolamos tantas coisas proibidas pra fazer, eu não imaginava que faria todas elas. No fim, quando não conseguimos nos decidir sobre qual das opções seria a vencedora, passamos de "fazer uma coisa proibida" a "fazer três coisas proibidas". Vou tentar me lembrar de tudo enquanto estiver contando aqui, mas, sinceramente, acho que não conseguiria esquecer nem se quisesse.

Na sexta de manhã, nós dois matamos aula juntos. Não quis mencionar nada pros meus pais — e menos ainda pro Lucas, que por algum motivo louco que eu finjo não saber qual é ainda está ficando com a gente —, porque ficariam mais preocupados que o necessário. Não acho que me proibiriam de fazer o que eu estava planejando, já que ultimamente eles nunca me proíbem, mas não queria que ficassem se perguntando onde eu estava.

Tenho sido meio injusta aqui, a propósito. Não falei muito dos meus pais, quase como se eu não estivesse passando tempo com eles — estou, sim — ou como se eles não fossem bons pais — são até melhores do que eu poderia imaginar. A verdade é que toda essa expectativa quanto ao que a vida me reserva, e ficar imaginando qual será a próxima piada sem graça que o universo fará comigo, tudo isso... Me deixa maluca. Acontece o tempo todo, mas fica mais intenso quando estou com eles.

Gosto de ficar junto com a minha família, gosto mesmo, mas é nesses momentos que a realidade me atinge. A forma como eles me tratam, como se eu fosse quebrar a qualquer instante, me faz lembrar de tudo que eu ainda vou passar. Isso, somado à pressão de ser sempre a pessoa feliz da casa e nunca demonstrar meu pessimismo, é exaustivo.

Entenda, por favor; eu amo meus pais, amo meu irmão. Só prefiro dar prioridade a contar aqui o tempo que passo com meu melhor amigo porque é quando eu me esqueço de toda essa merda e sou, de novo, só a Helena. Não mais a garota com ELA; só Helena.

Ele nunca mede palavras comigo, nunca me trata com medo de que eu quebre. É a única pessoa com quem eu me sinto normal.

Foi só um pequeno desabafo.

Como eu ia contando, matamos aula e fomos direto pra sorveteria matar o tempo. Prefiro não dar detalhes sobre como ele teve que me dar o sorvete na boca como se eu fosse um bebê. Fiquei dividida entre os estados "morta de vergonha" e "pensando seriamente em casar com esse menino".

Ele pagou por nós dois e ficou repetindo mimimimimi quando eu disse pra dividirmos a conta.

Foi lá pras dez horas da manhã que partimos direto para o item 6.1: comprar bebidas com identidade falsa. É meio óbvio que a gente não ia beber, porque eu abomino o gosto de todo álcool que já experimentei e o Vader boicota a indústria das bebidas — consigo até ouvir o coro universal de adolescentes que bebem gritando caretas! e, sinceramente, eu concordo com essa galera aí —, mas íamos comprar mesmo assim.

— Ei, que bobagem é essa de identidade falsa, afinal? — Vader perguntou. — Primeiro que a gente não tem, segundo que aqui é o Brasil. Ninguém pede identidade pra vender bebida alcoólica no Brasil.

Infelizmente, ele estava errado. Chegamos num bar a três quarteirões da escola — eu teria deixado minha mochila em algum lugar, mas meu querido amigo gênio insistiu que pendurar a mochila num ombro só nos faria parecer universitários. Na verdade, só estávamos parecendo dois adolescentes baixinhos e futuros portadores de escoliose, pelo menos do meu ponto de vista — e entramos como se fôssemos os donos do lugar. O segredo é mostrar confiança, foi o que li na internet.

— Oi, bom dia — cumprimentei e me sentei no balcão. O homem ali atrás deu um sorriso amigável.

— Pois não, o que vão querer?

— Duas vodkas com limão, por favor — Vader se adiantou antes que eu pudesse falar, sentando-se ao meu lado.

Olhei para ele com a minha melhor cara de indignação e começamos uma calorosa discussão por telepatia. Foi mais ou menos assim:

Eu, irritada: Não dava pra pedir cerveja?

Vader, com sua melhor expressão de deboche: Adolescentes pedem cerveja, universitários pedem vodka.

Eu, imitando seu deboche: Não me diz que você leu isso num fórum da internet.

Vader, indignado com a minha ousadia: Isso não é da sua conta.

Eu, desconfiada: Ele não acredita na gente, olha a cara dele!

Vader, confiante: Confia em mim, ele tá no papo.

— Com licença — o cara nos interrompeu, parecendo não notar o que estava acontecendo entre nós. — Vocês não são novos demais pra beber?

— Não — dissemos em uníssono, com um desespero tão escondido na voz que foi cômico.

Percebi que ele estava se esforçando pra não rir da nossa cara.

— Eu preciso ver o RG de vocês dois, ou pelo menos o seu — ele apontou o dedo pro Gustavo. Dessa vez, eu também senti vontade de rir; o cara estava brincando com a gente.

Pelo visto, ele não entendeu a mesma coisa que eu, porque arregalou tanto os olhos que eles ficaram redondos.

— É que... A gente, quer dizer, nós... — Ele travou, parecendo realmente nervoso. Mal abri a boca pra tentar socorrê-lo e ele começou a falar de novo, muito rápido, quase parecendo um rapper. — É que, você sabe como é, a Helena tem ELA e a gente tá fazendo essa lista de coisas que ela quer tentar e...

Em menos de dez segundos, enquanto eu olhava pra ele, boquiaberta, ele despejou toda a história da minha vida pro cara do bar que a gente nunca tinha visto antes. No fim, o homem só assentiu e lançou um olhar pra mim. Confirmei tudo com a cabeça.

Sem dizer outra coisa, ele serviu dois minúsculos copinhos de vodka e a gente pagou. Eu nunca tinha tomado antes, mas ele ficou encarando a gente com tanta expectativa que nós viramos a bebida garganta abaixo de uma vez.

Cara, não vou mentir. Eu odiei aquilo. No instante em que senti o álcool na língua, quis cuspir, mas engoli tão rápido que não deu tempo. Encarei Vader e fiquei surpresa por ele não estar tossindo tanto quanto eu. Na verdade, ele estava ótimo.

— Ei, nem é tão ruim assim — comentou, rindo da minha cara. — Já tomei piores.

Revirei os olhos. Boicota a indústria de bebidas é o caralho. O barista já estava rindo da nossa cara de novo.

— Olha, eu gostei da história de vocês. Se quiserem mais um, fica por conta da casa.

Nota: acho que as pessoas sentem compaixão por outras que estão com doenças terminais e tendem a realizar serviços gratuitos. Ou isso, ou a humanidade é mais gentil do que eu imaginava.

Obviamente, nós agradecemos e negamos. Quando saímos, meu amigo se virou pra mim e disse, na maior cara de pau:

— Vou escrever uma plaquinha dizendo "sou portadora de ELA" e colocar no seu pescoço a partir de hoje.

Talvez outra pessoa tivesse ficado ofendida, mas eu caí na gargalhada. Realmente, era um bom modo de ver as coisas.

Depois disso, passamos para a próxima parte do nosso dia épico. Era a hora do item 6.2: entrar de bicão numa festa. Você pode pensar onde diabos a gente arrumou uma festa pra ir às onze da manhã, mas eu tenho uma pequena palavrinha pra você...

Churrasco.

Se Barretos algum dia incorporou algum costume sulista, com certeza foi o churrasco. Só no meu bairro tem umas nove edículas, aquelas casas que você aluga pra passar o dia, e todo fim de semana, sem falta, aparecem mil galeras lá pros churrascos familiares.

Foi assim que eu e meu melhor amigo acabamos caminhando pelas ruas sinuosas da cidade, procurando pelo lugar perfeito pro nosso plano. Em menos de dez minutos, o Gustavo ouviu um pop tocando alto perto da esquina e agarrou minha mão.

— Me segue — disse ele. — Sinto cheiro de festinha adolescente.

Não deu outra; quando chegamos mais perto, deu pra ver por uma fresta do portão laranja uma mesa decorada com docinhos, bolo e presentes. Tínhamos encontrado nosso alvo.

— Tá, mas como a gente vai fazer isso? — perguntei. Não que eu tivesse amarelado, só... comecei a ficar meio apreensiva.

Vader riu. Uma risada diabólica que me deu calafrios.

— Confia, Helena, confia.

Daí ele tirou os óculos e me pediu pra guardá-los comigo. Coloquei a armação no meu cabelo como um par de óculos de sol; ele com certeza reclamaria se me enxergasse fazendo isso. Eu já sabia que não dava pra aquilo terminar bem. Como se não fosse o bastante, ele tirou a clássica camisa de flanela xadrez de ir pra escola e amarrou na minha cintura, bagunçou ainda mais o cabelo e ajeitou a camiseta branca por fora do jeans.

Parecíamos... bom, parecíamos um par de hipsters. Escondemos as mochilas que, sim, ainda estávamos carregando, na jardineira perto do muro.

Sem pedir uma confirmação, ele puxou o portão da edícula e me arrastou pra dentro com ele.

— Qual é o seu plano? — sussurrei.

— Qual é o nome da aniversariante? — ele sussurrou de volta.

Dei uma olhada no lugar enquanto nos aproximávamos do tumulto de pessoas na varanda. Alguns estavam na piscina, mas a grande maioria estava ali comendo, e isso me fez perguntar se é muito comum as pessoas da nossa idade matarem aula pra irem a uma festa de aniversário assim. Na parede atrás da mesa, tinha um varal de letrinhas roxas, como o resto da decoração, formando "parabéns, Beatriz".

— Beatriz — falei baixinho, no exato momento em que uma menina muito bonita chegou perto da gente.

— Bia! — Vader me largou e deu um grande abraço na garota, que tinha acabado de sair da piscina pra vir nos receber, e eu só rezei em silêncio pra que ela fosse a pessoa certa.

— Ah, oi... — Ela estava sem graça quando ele a soltou, mas não sei dizer se era por causa do abraço, ou porque a blusa branca dele agora estava molhada e causando o efeito que garotos molhados costumam causar em garotas, ou por causa do sorriso caloroso no rosto dele, ou pelos olhos verdes que sorriam junto com a boca, ou pelo fato de ela não ter a mínima ideia de quem éramos nós dois.

Sério, não dava pra cena ser mais engraçada. Quase ouvi aquela música romântica que toca nos filmes quando os personagens se apaixonam um pelo outro à primeira vista e por pouco não enfiei os óculos de volta na cara dele pra ele se apaixonar por ela também.

— Feliz aniversário! — continuou ele, atuando perfeitamente. Eu quase não o reconhecia. — Desculpa a gente se atrasar, mas sabe como é. Minha mãe é doida.

— Hm, não tem problema, relaxa. — Ela com certeza não sabia quem ele era, mas parecia estar se esforçando pra lembrar. Meu sexto sentido de Cupido começou a apitar; eu já estava planejando a cor dos enfeites que iam ficar no cabelo preto e comprido dela no dia do casamento dos dois.

— Espero que ainda não tenham cortado o bolo — comentei, dando meu melhor sorriso. Tive pena da expressão dela, porque parecia confusa de verdade.

— Ah, não, não íamos fazer isso sem vocês! — Ela era tão boa atriz quanto ele. Naquele momento eu tinha certeza de que, caralho, eles tinham sido feitos um para o outro.

— Sem ele, você quer dizer — comentei, só pra ter uma oportunidade de dizer o nome dele em voz alta. Helena Cupido, mode on. — Todos sabemos que o Gustavo é uma formiga gigante.

Ele riu alto.

— Gustavo — ela repetiu baixinho. Posso jurar que os olhos dela brilharam. Como eu queria que ele tivesse visto aquilo! — Bom, de qualquer jeito, vocês chegaram agora. Vamos nadar com o resto do pessoal!

Se eu fosse contar cada detalhe das próximas duas horas, que foi o tempo que passamos lá, esse item teria que ter um caderno à parte só pra ele. Sério, foi o churrasco mais insano da minha vida.

Quando dissemos que não tínhamos roupa de banho, ela fez questão — uma questão absurda, se quer saber — de arrumar um biquíni pra mim e uma bermuda pra ele. Por algum motivo, ela não conseguiu a bermuda e apareceu pra nós com uma sunga de capa de revista nível Calvin Klein. Caí na gargalhada na mesma hora e tive que correr pro banheiro pra conter um ataque de riso e preservar nosso disfarce.

A única coisa mais engraçada que isso foi todo o pessoal da festa fingir que conhecia a gente sem ter nem ideia de quem éramos. Fora a carne, o refrigerante e o bolo grátis, ainda fizemos amizade com várias pessoas ali — e, claro, eu dei um jeito de passar o celular do Vader pra tal Bia antes de irmos embora, dando a desculpa de que ele tinha mudado de número recentemente.

Se tudo correr como eu estou planejando, o romance deles vai florescer e ela nunca vai desconfiar de nada.

De qualquer forma, eram quase duas da tarde quando abraçamos todo mundo lá e nos despedimos. Assim que colocamos nossa roupa de volta e saímos dali, eu liguei pra minha mãe e disse a ela que ia estudar na casa do Vader e talvez dormir por lá, o blábláblá de sempre, enquanto ele ligava pra mãe dele e dizia a mesma coisa. Pra ser sincera, eu nunca tinha tentado essa estratégia antes, mas quase sempre funciona nos filmes.

Como estávamos os dois entupidos de carne assada e refrigerante, apenas pegamos de volta as mochilas e seguimos para a próxima fase. Senhoras e senhores, item 6.3: invadir uma casa.

Quer dizer, é claro que nenhum de nós seria tonto de invadir uma casa com gente dentro. Dã. Mas tem esse bairro bem pertinho, cheio de casas em construção e outras prontas apenas esperando um comprador... Não faria mal algum dar uma olhada nelas, certo?

Só pra constar, eu acho que nunca mais vou caminhar tanto quanto caminhei naquela sexta. Não só por causa da ELA — no momento em que eu tô escrevendo isso, faz menos de uma semana que tudo aconteceu e já tenho muito mais dificuldade pra andar do que antes —, é que nós dois simplesmente atravessamos a cidade quase sem cansar.

Antes de mais nada, eu quero desfazer um conto de fadas que acho que andei criando. Sem contar meus dedos e, depois deles, minhas mãos cada vez mais difíceis de controlar, pelo que escrevi até agora parece que a esclerose não teve efeito nenhum em mim.

Bom, teve. Eu caio constantemente e evito segurar as coisas a não ser que esteja sentada porque sempre derrubo tudo que tenho nas mãos. Minha garganta dói e minha língua pesa; às vezes, tenho que me esforçar muito pra falar. Eu rio e choro o tempo todo sem motivo algum. Vader tem que subir de elevador comigo quando o visito porque mal aguento pisar em três degraus.

Naquela sexta-feira, inclusive, ele me apoiou a cada segundo. Não dei um passo sem que meu braço estivesse em torno do ombro dele. Não que eu não pudesse andar — era um dos meus raros dias bons —, mas ele disse que não queria que eu caísse na rua e quebrasse todos os dentes. Um amor.

Bom, enfim... É como a coisa dos meus pais. Eu meio que quero fugir um pouco da realidade aqui. Espero que não se importe.

Continuando, item 6.3! Demoramos um pouquinho pra chegar ao tal bairro, e durante todo o trajeto eu fiquei pensando se devia contar pra ele o que tinha acontecido na festa com a Bia. A coisa toda de eles serem um casal predestinado e tal. No fim, resolvi deixar para mais tarde.

— Ótimo, escolhe uma casa — comandou Vader. Estávamos no meio da rua e as casas à nossa volta eram todas coloridas e fofas, mas o silêncio era tão intenso que chegava a incomodar. A maioria delas é recém-construída e pertence a algum casal rico da cidade grande que quer ter um cantinho pra passar os fins de semana tranquilos no interior, outras são de pessoas que as compraram e estão esperando o preço subir pra poderem vender mais caro.

Ah a propósito, o nome disso é especulação imobiliária. Aprendi na aula de Geografia. Nenhum motivo em especial pra mencionar isso aqui, eu só quis me exibir por ter aprendido alguma coisa sobre geografia.

Na hora, me lembrei daquele anime A Viagem de Chihiro; quem já viu vai entender o clima bizarro daquele lugar. Comecei a olhar em volta, procurando pela construção mais fantasmagórica de todas, ou a que tivesse mais pinta de abrigar um fantasma emo do século XXI que canta Restart, mas Vader cobriu meus olhos.

— O que foi? — perguntei.

— Olhando não tem graça! — Ele riu. — Vai, eu vou te girar e você aponta pra um lugar aleatório. — Fui girada sete ou oito vezes em torno de mim mesma até que finalmente ergui, débil e tonta, o braço pra indicar a casa. — É essa?

Ri.

— É!

— Pera, uva, maçã ou salada mista?

— Hm... Salada mista? — Vou contar um segredo pra vocês: eu nunca descobri o que era a salada mista da brincadeira. Acho que era alguma coisa polêmica, porque todo mundo formava um coro de "oooooh" na minha rodinha de amigos quando alguém escolhia isso.

Vader riu alto, tirou a mão dos meus olhos, beijou minha bochecha e saiu correndo. Sério, eu me senti com oito anos de novo, foi incrível. Mas ele se distanciou uns dez passos e deu meia-volta, com cara de cão arrependido.

— Desculpa — pediu, marchando de volta até onde eu estava. Não entendi o motivo até ele puxar meu braço de volta pro apoio confortável do ombro dele.

— Gustavo, eu sei andar, tá? — Tentei me soltar. Os ombros dele com certeza doeriam pra caramba no sábado.

— Sossega aí — repreendeu ele. — Não é porque eu sou bonzinho, seu cabelo tá cheiroso pra caramba.

Ri alto. Só nesse instante vi a casa para a qual tinha apontado sem olhar; no meio do quarteirão colorido como o carnaval, era a única marrom e sombria. Um arrepio percorreu minha espinha.

— Ok, eu concordo com a sua teoria do fantasma agora — comentei enquanto andávamos em direção à aparente masmorra do diabo. — Cara, quem é o dono disso aqui?

— Aparentemente, Obi Wan Kenobi.

Franzi a testa.

— Não me lembro de nenhum lugar falando que o Obi Wan curte coisas macabras.

— Não, mas ele tá morto. Faz sentido.

Eu teria rido de novo, mas quando abri a porta ela soltou aquele gemido de filme de terror. Nunca desejei tanto que uma porta fizesse o gemidão do Zap.

— Beleza, ao trabalho! — Vader largou a mochila na entrada e eu fiz a mesma coisa. Por algum motivo, a casa tinha mobília, mas não tinha alarme; ou os donos eram super confiantes na humanidade ou tão ricos que não faria diferença uma ou duas poltronas a menos. Comentei o assunto com ele. — Não tem TV — foi a resposta. — Duvido que tenha algum eletrônico ou qualquer coisa de valor. Ninguém rouba tapetes.

Por incrível que pareça, estava bem mais escuro lá dentro do que deveria estar numa tarde quente de sexta, mas meu genial amigo tirou um par de lanternas da mochila.

— Você trouxe lanternas?

— Você nunca viu Supernatural?

Fiquei esperando que ele tirasse um pacote de sal também, mas não aconteceu. Talvez ele não tenha pegado completamente o espírito Winchester.

— Haja o que houver... — Peguei uma das lanternas. — Eu sou o Dean.

— O quê? — protestou ele. — Por quê?

— Porque você é o rato de biblioteca e eu gosto de torta.

Ele revirou os olhos.

— Não é exatamente assim que funciona.

Começamos a explorar o térreo da casa. Não tinha poeira ou barulhos bizarros, exceto os que eu ou Vader fazíamos tentando assustar um ao outro. Ao todo, era um lugar bem normal e até meio entediante.

Não encontramos espíritos nos quartos, nenhum demônio no banheiro e um total de 0 fantasmas na cozinha.

— Decepcionante. — Sentei ao pé da escada.

— Admite, você tá aliviada — Gustavo juntou-se a mim e me cutucou com o cotovelo. — Se tivesse qualquer coisa aqui, a gente já estaria gritando lá do outro lado da rua. Bom, eu não ia gritar, só correr pra acompanhar você.

— Claro, claro. — Dei uma olhada para cima e, depois de um tempinho, acabei tomando uma decisão bem estúpida. — Vamos subir a escada. — Assim que levantei, Vader fez menção de me segurar; não duvido que ele teria me pegado no colo se eu tivesse deixado. — Eu quero subir — completei, baixinho. Ele não pareceu concordar, mas também não reclamou.

Me apoiei no corrimão e subi o primeiro degrau. O maior esforço era plantar meus pés inteiros, porque minhas panturrilhas doem bastante se eu não inclinar os pés pra fora. Visualize Stephen Hawking no filme A Teoria de Tudo e terá uma ideia do que eu quero dizer. Se eu andasse do jeito que me era confortável, provavelmente iria cair.

Tudo isso e eu ainda estava subindo o segundo degrau, depois o terceiro, com mais dificuldade do que eu ousaria admitir. Começou a ficar difícil no quarto; precisei de toda a minha força. Tentei buscá-la nos meus braços que seguravam o corrimão, e isso deu certo por mais duas ou três vezes, mas logo ficou impossível.

Olhei para o chão. Eu estava esgotada e nem tinha chegado à metade. Respirei fundo e tentei continuar, mas não consegui.

Daí eu fiz o que qualquer mente racional faria no meu lugar: me deixei escorregar pelo corrimão até sentar na escada e encarei a derrota.

— Ei, vamos, você consegue — encorajou Vader, me cutucando com o pé, mas só estava tentando me animar. Ele sabia tanto quanto eu que eu não conseguiria chegar lá em cima. — Vem, eu te dou uma mão.

Balancei a cabeça.

— Não, eu já vou descer. Isso foi estúpido.

Ele deu um sorrisinho de lado e sentou comigo. Nem percebi quando comecei a chorar.

— Vem cá. — Ele passou o braço por cima do meu ombro e mexeu no meu cabelo. Me deixei afundar no ombro dele e sentir o cheiro gostoso daquele cabelo até que não tivesse mais lágrimas pra escorrer. — Você é melhor que uma escada.

Dei risada. Foi a melhor frase motivacional merda que já saiu da boca dele.

— Vou tatuar isso na minha testa.

— Boa ideia pra um novo item — disse ele.

— O quê? Fazer uma tatuagem?

— Não especificamente uma tatuagem. Alguma coisa que dure pra sempre.

— Talvez meu caderno azul dure pra sempre — ponderei.

— Tenho certeza que vai. Você já escreveu muito nele?

— Sei lá. — Dei de ombros. — Umas trinta páginas. Claro, eu contei quando cheguei em casa: tenho um total de 38 páginas escritas.

— E tem alguma coisa sobre mim?

Dei risada e me afastei do ombro dele pra olhar seu rosto. Fiquei dividida entre contar ou não que, de 38 páginas, ele protagonizava quase 30 (e era honrosamente mencionado no resto delas).

— Tem — falei simplesmente.

— E quando você pretende me deixar ler? — Ele cutucou minhas costelas.

— Quando eu precisar da sua ajuda até pra escrever lá — prometi.

Isso, na verdade, não parece estar muito longe de acontecer. É raro o dia em que eu consigo escrever de um jeito que eu mesma consiga ler depois. Amém, dias bons.

— Fechado. — Ele me puxou pra perto de novo e eu fechei os olhos; me perdi em seu abraço, naquela maldita escada gelada e na noção do tempo. Depois de sei lá quantos minutos, talvez horas (tá, não horas, mas você conhece meu exagero) de silêncio, senti o peito dele vibrar enquanto ele falava de novo. — Sabe o que seria legal? A gente dormir num supermercado. Tipo, é proibido, né? Por que não vamos pra lá agora?

Mais silêncio. Depois que eu saí do meu estado filosófico de pensar em mil coisas e nada ao mesmo tempo e assimilei as palavras dele, só fiz que não com a cabeça.

— Outro dia, Vader.

Ele concordou.

— É, você tem razão. Outro dia.

Eu deveria ter aceitado a proposta, mas estava frustrada demais, ou cansada demais, ou as duas coisas. Desde aquele dia, essa é a primeira vez em que eu tenho forças (física e psicologicamente) pra levantar da cama, e a primeira coisa que fiz foi escrever tudo o que você tá lendo agora.

Não sei ao certo como, mas já estava escurecendo quando saímos de lá. Talvez minha ideia de horas passando não estivesse assim tão errada.

Acabamos pegando um ônibus de volta pra casa dele. Como eu já tinha avisado a minha mãe, não teria problema dormir por lá. Sentados naqueles bancos duros, nenhum de nós dois disse nada até que o ônibus, até então vazio, parou e se encheu de gente num piscar de olhos. Claro, era o horário em que pessoas saíam do trabalho e outras iam pra faculdade. A última a entrar, quando o corredor já estava cheio de jovens fortões (por que eu tive a impressão de que eles estudavam Educação Física?) e todos os lugares estavam ocupados, foi uma senhora de aparência muito frágil.

Lancei um olhar pra velhinha, depois outro pro cara fortão que tinha se apropriado do banco preferencial que sobrava, e admito que fiquei bem puta com ele até me lembrar que eu mesma às vezes não aparento estar tão mal.

E eu tenho, literalmente, a porra de uma esclerose.

Me apoiei no encosto do banco, agradecendo por Vader ter tornado tudo mais fácil ao se apropriar do lugar na janelinha e estar distraído demais com a visível paisagem do pôr do sol atrás do teto de um posto de gasolina, e levantei.

— Senta aqui, senhora — ofereci. Ela tentou dizer que não precisava, mas eu já estava de pé e sabia que precisava, sim. Ela sorriu e agradeceu, tomando o lugar.

Vader só percebeu o que estava acontecendo quando sentiu a mudança de peso a seu lado e fez menção de ceder o lugar dele pra mim. Tenho certeza de que, se ele tivesse visto a senhora, teria levantado antes que eu pudesse sequer pensar nisso, mas meio que fiquei feliz por ele não ter visto. Quando neguei com a cabeça o gesto dele, ele bateu a mão no colo.

Pelo menos senta aqui então, foi o que consegui decifrar do olhar dele.

Neguei de novo e esperei que ele também tivesse entendido o meu recado. No fim das contas, acho que ele captou o básico:

Seria uma das últimas vezes em que eu poderia dar meu lugar pra alguém que precisava mais do que eu.

Não foi assim tão difícil me apoiar no banco e não cair até o fim da viagem. Agora deve ser a hora certa pra fazer propaganda das minhas alpargatas de 25 reais da lojinha do centro, porque eu me senti pisando em nuvens.

Quando descemos, ele fez questão de carregar minha mochila pelo trajeto de dois quarteirões do ponto até seu prédio e não hesitou nem por um segundo ao apertar o botão do elevador. Eu ainda me pergunto se ele tá superando a fobia aos poucos ou se a cena da escada o deixou tão abalado que ele não quer nem me ver tentar outra vez.

Não tem muito pra contar depois disso; nós fizemos pipoca e ficamos acordados até tarde conversando. Resolvi não contar sobre a Bia, porque seria muito mais legal se ele descobrisse pessoalmente quando ela aparecesse do nada mandando mensagem.

Eu vou ser sincera, não sei como concluir esse capítulo. Das outras vezes, eu meio que encorajei você a fazer o que eu fiz, mas não quero que ninguém cometa um crime e saia por aí gritando "A Helena mandou". Se parar pra pensar, a gente — caralho — invadiu uma casa. Só, sei lá, não deixe que uma proibição estúpida te impeça de fazer alguma coisa que no futuro será algo bom de lembrar.

Principalmente se você tiver proibido a si mesmo. A vida é curta demais para "não posso comer isso porque não quero ficar gordo", "não posso terminar meu namoro porque não quero ficar sozinho", "não posso ser eu mesmo porque isso incomoda as pessoas". Chega disso. Você pode, sim.

Essa é a questão. Você sempre pôde.

Aqui quem fala é a Helena,

Câmbio e desligo.


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Notas finais do capítulo

E aí, que tipo de coisa proibida cês fizeram essa semana? Ou pretendem fazer num futuro próximo? Conta tudo, conta tudo.
Espero que tenham gostado do capítulo ♡ ficou bom? O tamanho tá cansativo? E essa de eles fazerem várias coisas no mesmo item? Eu e meu amigo não conseguimos nos decidir AHUAHUA e, admito, deu um pouco de medo ir até aquela casa. Dica da tia Mare: NÃO invadam casas possivelmente assombradas!

E foi isso. Me contem aí o que acharam :3 tô numa época de insegurança que aaaaa
Beijão!