Janta escrita por Dark_Hina


Capítulo 11
Uma oferta de paz




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De manhã acordei com os pedaços de acrílico na mão, as marcas dos meus dedos afundadas na armação falsa. Quando olhei para o despertador na cabeceira percebi que tinha sido um cochilo rápido. Tateei pela cama procurando o celular e disquei o número de Alex, era tão tarde que chegava a ser cedo, passava pouco das quatro.

—Kara? – Sua voz era um arfar sobressaltado.

—Acordei você?

Ela exalou pesado.

—Não importa, o que aconteceu? Aonde vocês está?

—Eu estou em casa. – Falei baixo engolindo o choro. -Eu achei que queria ficar sozinha, mas não quero. Você está com a Maggie?

—Não, eu estou no DEO ainda, cochilei na sala do J’onn, o que aconteceu? – A voz de Alex ainda estava embriagada de sono, era um murmuro ranzinza a contragosto.

“O que aconteceu?”

Essa era uma excelente pergunta.

A verdade é que eu tinha muito o que falar mas não fazia ideia de por onde eu deveria começar. É que estava tudo tão bagunçado ao meu redor que era difícil aceitar que a minha maior bagunça era interna. As coisas dentro de mim estavam tão desarrumadas que eu acabaria sufocada dentro de uma daquelas pilhas de pensamentos mal resolvidos.

—Eu falo com você amanhã de tarde. - Disse antes de desligar, ainda escutei um “Ka...”, mas ela não retornou nos minutos que se seguiram.

Olhei para o meu teto, depois para além dele. A garoa da madrugada deixou o céu cinza, não haviam mais sem estrelas. A mesma garoa me deixou parada olhando o tempo, para os segundos que vagarosamente se convertiam em minutos, os mesmos que nunca conseguiam se tornar horas. O céu minguava em sua cor incerta, numa batalha fadada para a escuridão noturna que se via incontestavelmente rendida aos primeiros raios do sol. Eu caí no sono enquanto o dia chegava, naquele resto de madrugada eu sonhei com pessoas e como elas eram resilientes, foi um sonho com uma multidão sem rosto, que me lembrou bastante um trailer de filme de guerra – talvez fosse uma lembrança longínqua do que Batman tinha comentado sobre a possibilidade de uma guerra intergaláctica.

Acordei meio zonza e com fome, e quando fui na geladeira ver o que tinha para comer encontrei um pote do sorvete italiano que estava sendo usado para guardar o resto de uma sopa fria que ela tinha trazido em uma das últimas vezes que tinha ido lá.

Peguei a embalagem com um cuidado precioso, sustentei a superfície gelada com a ponta dos dedos. Fechei a porta da geladeira com uma batida de quadril e liguei a luz da cozinha com o cotovelo. Deixei o pote sobre a ilha contemplando a estampa no seu rótulo. O pote era cilíndrico, a cor era vermelho telha, uma marca d’água estampava a embalagem, apenas contornos de uma renda delicadíssima na cor cinza, bem clarinha, muito elegante. As letras em relevo na embalagem eram coloridas com um dourado metalizado. Exalei percebendo que a embalagem me encarava de volta. Sacudi a cabeça e senti meu olhar me trair, voltando a pousar na embalagem. Me amaldiçoei em pensamento e saí em disparada voando pela janela meio aberta da sala.

Quando voltei passava das 11 horas, assim que entrei de volta no apartamento fui para a ilha da cozinha, soprei sobre o mármore até criar uma fina película de gelo em sua superfície, deixando sobre a bancada congelada a sacola térmica de papelão que eu carregava.

Fui tomar um banho, um banho real, daqueles que demoram bastante, daqueles sem pressa, daqueles que você espera de verdade que a água leve embora toda a agonia do dia, troquei de roupa na mesma lentidão. Eu não conseguia aceitar bem aquele sentimento que remoía dentro de mim, não parecia coerente. Absolutamente nada parecia coerente.

Voltei para a sala em uma camisa social e uma saia de linho, meu cabelo estava preso e peguei uma armação reserva horrorosa que Alex tinha me dado há algum tempo e eu tinha prometido a mim mesma nunca usar, redonda e vermelha, muito chamativa. Exalei pegando a sacola e saindo porta a fora.

Eu entrei na L-Corp sem saber exatamente para onde ir, a sala de Lena estava interditada por causa da invasão do dia anterior. Assim que eu disse meu nome a recepcionista me encaminhou para o subsolo acompanhada de um segurança de dois metros. Quando entramos no andar subterrâneo me senti em outro planeta, as paredes eram de um material esquisito que não parecia metal e tudo por lá era branco e austero. Aparentemente esqueceram de avisar a Lena que eu estava chegando com aquela montanha que chamavam de segurança, ela estava escorada numa mesa branca com o que pareciam dois engenheiros olhando uma série de papéis largos e azulados. O segurança pigarreou atraindo atenção dela e dos cara, ela me encarou visivelmente surpresa, minha cabeça inclinou observando-a mordiscar o lábio.

Seus olhar me encarava contando como estava dividida entre me expulsar de lá e saber o que havia me levado até lá. Havia uma mágoa, um ressentimento genuíno nublando seu olhar. Eu entendia de ouro. Mas Lena, definitivamente, não era aquele tipo de pessoa pequena que simplesmente se fecharia para alguém que uma vez já lhe significou tanto, ela era maior que isso.

—Senhores, se me dão licença... – Ela disse dispensando os homens. Ele se entreolharam sem entender o que estava acontecendo, mas a obedeceram saindo da larga sala branca. Eles se dirigiram a outra parede, mas esta começou a se movimentar como uma daquelas portas automáticas de shopping, tudo muito high-tech, as paredes voltaram a se fundir assim que eles saíram. –Rock, você também.  – Ela forçou o melhor sorriso amarelado, ele lhe cumprimentou com um acenar de cabeça e saiu. Na lateral do corredor uma porta brotou da parede, nós agora estávamos em uma sala perfeitamente quadrada, totalmente branca que só tinha a mesa de Lena e algumas cadeiras próximas.

—O nome daquele cara é Rock?  - Eu perguntei forçando uma risada. – É um nome extremamente conveniente, o tamanho...  – Eu não consegui projetar mais nenhuma palavra, seu olhar gélido pesava sobre mim e aquilo me desconcertou. –Eu fiquei surpresa por terem me deixado entrar tão fácil. – Confessei engolindo a seco.

—Por que não seria? Seu nome está liberando há muito tempo. – Ela me respondeu seco, e eu respirei fundo vendo que eu estava meio encurralada.

—Eu pensei que você não iria querer me ver pintada de ouro.

—Sem dúvidas não tive cabeça para externar isso, caso contrário você não estaria aqui, não é mesmo?

Outra dura engolida a seco. Apertei a sacola nos meus dedos e dei dois passos a frente.

—Uma oferta de paz. – Disse estendendo a sacola.

Ela olhou desconfiada.

—O que é isso?

—Uma oferta de paz. – Insisti, estendendo o braço para que ela pegasse.

Hesitante ela segurou a sacola fria e com a ponta dos dedos entreabriu as laterais da sacola lacrada para espiar o que havia dentro. Instantaneamente suas feições mudaram. Ela rapidamente rasgou o selo e tomou o conteúdo na mãos. Seu olhar não voltou para mim, ficou encarando o pequeno pote.

—Como...? – Ela soltou baixo.

—Eu tenho excelentes amigas que me impedem de fazer burrices. – Ela deixou a sacola na mesa e ainda encarava um pouco atordoada o sorvete. – Tem uma colher dentro, se bem que você não come doce antes de....

—Kara, eu... – Ela cortou minha fala, mas ela mesma não conseguiu falar, seus lábios entreabriram vagarosamente entretanto não conseguiram projetar nenhum som.

—Você não precisa dizer nada. Eu sei que nós duas sentimos muito pelo que aconteceu ontem e acontece que eu... - Inesperadamente seu cenho franziu e sua cabeça balançou. Seu olhar pulou do pote para mim na mesma velocidade, aquilo atrapalhou minha linha de pensamento de tal maneira que eu não consegui terminar de falar.

—Eu sinto muito por ter agido de maneira inesperada, - seu tom foi ligeiramente agressivo, quis acreditar que estava mais precipitado que agressivo - eu sinto muito por não ter falado nada antes, mas eu não sinto muito por ter te beijado – ela falou definitiva -, na verdade é uma das poucas coisas na minha vida que eu não me arrependo. – Ela parou, sua voz vacilou, e recuperando o compasso da respiração me encarou num tom mais calmo. –Eu posso estar perdendo minha melhor amiga nesse exato momento, mas eu não quero me desculpar por sentir o que eu sinto por você. Não é justo com nenhuma de nós duas.

Demorou um segundo para eu processar o que Lena estava dizendo.

—Lena, eu... – Comecei insegura, mas não tinha muito o que dizer.

—Não, Kara, me escute, pelo menos, por essa vez, você me escute. – Seu olhar encontrou o meu e pela primeira vez nós conseguimos nos encarar mutuamente. –Eu não me arrependo em nenhum momento do que aconteceu, aquela era a minha verdade. – Ela parou suspirando.  Qual é a sua verdade?

Minha cabeça pendeu para o lado e eu percebi que não sabia o que eu estava esperando quando fui pra lá. Qual, exatamente, era o propósito? Exalei correndo do olhar analítico de Lena. Meus olhos reviveram e veio aquela enxurrada de lembranças. Engoli a seco. Eu voei para a Itália para pegar aquele sorvete, o que eu estava esperando com isso?

Ajeitei o óculos, ainda muito desconcertada, e me lembrei que foi justamente por causa dessa porcaria que tudo tinha ido de mal a pior ontem. Sacudi a cabeça e voltei a encará-la. Seus grandes olhos verdes estava nublados, eles transmitiam tons de ansiedade na expectativa da minha resposta. Por que aquilo era tão torturante?

—Eu não quero perder você. – Disse por fim. –Eu não sei de que maneira eu quero você na minha vida, mas eu tenho certeza que não consigo imaginá-la sem você. - Era isso. Eu estava lá com medo de perde-la, de perder sua amizade, de perder sua risada, de perder seu toque quente e seu abraço aconchegante. De perder aquele olhar. – Não sei se é a minha verdade, mas sem dúvidas é minha única certeza.

Foi a vez dela engolir a seco, as suas defesas cederam um pouco, pude analisar pelo brilho do seu olhar, que dessa vez não transmitia tanta mágoa reprimida.

—Eu também não quero perder você. – Ela disse como um suspiro aliviado. Deixou o pote de sorvete em cima da mesa e caminhou lentamente em minha direção, acompanhei com o olhar seus passos, seu jeito cauteloso de se aproximar. –Eu acho que você precisa ir agora, nós podemos jantar depois?

—Claro. – Falei rápido, quase sem conseguir respirar. Gelando por dentro com sua aproximação. Ela estava na minha frente, a centímetro de mim, e novamente estava eu rendida, sem a reação esperando seu próximo movimento, desejando internamente que houvesse um próximo. Suas mãos pousaram na gola da minha camisa, os dedos envolveram o pano.

—Certo. Nós não precisamos ser nada agora, não precisamos decidir nada agora. Mas eu preciso que você pense seriamente sobre algo, e me diga hoje de noite o que acha sobre isso, pode ser?

—Sim. – Falei com a boca seca. -O que é? – Saiu como um fio de voz, uma última lufada de ar dos meus pulmões.

 Ela sorriu de lado e puxou a gola para si, meu rosto foi juntos e a distância entre nossos lábios foi selada. Dessa vez, apesar da apreensão, a textura macia de sua boca contra a minha não me causou pânico, não me deixou completamente estática, eu consegui corresponder minimamente ao seu beijo, e isso genuinamente a espantou, nem parecia que na noite anterior ela estava seminua comigo em sua cama, nem que aquele não era o nosso primeiro beijo, talvez fosse o sabor novo de honestidade que estivesse retemperando o fato.

Bom, eu nunca tinha imaginado que teríamos um primeiro beijo, se eu tivesse imaginado antes ele seria exatamente assim: um beijo pleno. Sua língua quente lambeu meu lábio e eu mordisquei o seu em troca, o beijo terminou com uma mútua risada, nos divertimos de uma maneira meio debochada com essa inesperada ousadia e quando percebi nós estávamos meio abraçadas, seus braços envolvendo meu pescoço e de alguma maneira minhas mãos estavam em sua cintura.

A curva que pesava em seus lábios era um tanto quanto acanhada, ela me soltou e fiz o mesmo. Só talvez eu estivesse esperando que no jantar a sobremesa fosse mais um de seus beijos.


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