Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 5
IV. Desordem


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! *-*



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/728013/chapter/5

Maio

Nathan sentia a cabeça pesar, e não mais tinha a certeza de que o motivo fosse o cansaço. As pessoas que passavam em seu entorno não eram mais do que vultos e as vozes se assemelhavam a um emaranhado de notas musicais. Os movimentos do moreno eram calculados: observava o paciente, anotava os sintomas e as prescrições, respondia as perguntas e então caminhava em direção à próxima maca. Não cometia erro algum, visto que usava das informações contidas em seu subconsciente. Porém, se alguém perguntasse no fim do dia quais foram os casos de que Nathan houvera assumido, ele certamente não saberia responder.  

Seus pensamentos, durante horas, estavam em Cherub Field. Variavam entre as recordações do que passou e as suposições do que iria passar mais em frente. Sua cabeça se assemelhava a um disco arranhado. De novo, de novo e de novo, podia ver o rosto de Lucca em sua mente. E os olhos, tão escuros quanto a noite, estavam grudados em sua cabeça como chiclete.  

Uma semana se passara e Nathan permanecia com dor de cabeça, ansioso e com a mente bem longe de onde estava seu corpo. Não obteve muita notícia a respeito de Lucca, além do que havia sido contado por sua mãe, a partir de informações fornecidas por Gerard: se recusava a falar mais do que poucas palavras, não entendia outras e o comportamento anormal permaneceu por cada segundo. A polícia da pequena cidade, assim como a Assistência Social não tinham recursos necessários para progredir com Lucca. No entanto, ficara bastante claro que toda a estranheza que envolvia o garoto era puramenta genuína.  

— Walker!  

A voz grave atingiu seus ouvidos de forma esmagadora. Virou o rosto, desnorteado pela mudança em seu ritmo robotizado. Seu chefe, Russell, se aproximava a passos largos. Assim que chegou ao seu lado, ergueu as sobrancelhas grossas ao descer os olhos pela vestimenta de Nathan. O mais velho mal podia acreditar que seu residente, anteriormente seu estudante interno, tinha a capacidade de andar tão desleixado pelo hospital.  

— Senhor? — Perguntou Nathan, dirigindo-se ao mais velho.  

— Você precisa de uma folga? Está parecendo um morto-vivo — reclamou ele, os olhos atentos em Nathan. Este limitou-se a negar com a cabeça, mas antes que respondesse, fora interrompido pelo chefe. — O garoto foi encontrado em sua cidade natal, não foi? — Perguntou, surpreendendo a Nathan.  

— Sim, foi lá — afirmou, confuso. Sabia que toda a história de Lucca estava repassando na televisão várias vezes, já que houvera visto algumas destas. Mas não tinha ideia de que seu chefe relacionaria à si o garoto perdido.  

— Suponho que não exista muitos Walker's em Cherub Field — continuou o homem mais velho, como se lesse seus pensamentos, erguendo uma das sobrancelhas sugestivamente. Nathan fechou os olhos.  

— Claro que apareceria o nome da família que o socorreu — murmurou.  

— Claro — afirmou Russell, sorrindo. — Precisa da folga ou não?  

— Não, obrigado — disse Nathan, ainda confuso. — Estou bem.  

— Lembra de Emily Gilbert, ano passado? Ela havia sido espancada, se lembra? — Nathan assentiu. — Beatrice houvera passado por algo parecido e eu tive que tirá-la do caso, visto que estava afetando seu trabalho. Como cuidador de vocês, tenho o dever de fazer o melhor para os mesmos, de forma que não afete o hospital. O caso do garoto não ocorrera aqui, mas certamente está lhe afetando, Walker. Me entende, não é?  

Nathan suspirou, deixando os ombros caírem.  

— Sim, senhor — falou, olhando-o nos olhos. — Mas não está afetando meu trabalho, como o senhor deve ter percebido.  

— Claro — falou o mais velho, com um sorriso. — Por isso que estou lhe perguntando ao invés de ordenar.  

Nathan riu, balançando a cabeça.  

— Está de bom humor hoje, senhor — afirmou ele ao se dar conta que a conversa durara mais do que meros segundos e que o sorriso no rosto rígido de seu chefe se repetira mais do que apenas uma única vez.  

— Meu terceiro neto vai nascer hoje — contou ele, os olhos brilhantes. — Por isso que estou de saída agora e, já que você decidiu ficar por aqui, preciso que trabalhe no estoque hoje. Organize o que falta e não esqueça de marcar com a caneta verde tudo o que fora selecionado. Entendido?  

— Entendido — afirmou Nathan, entregando a prancheta para uma das enfermeiras. — Parabéns pelo neto, senhor. — Sorriu quando o viu se afastar com um aceno.  

— Obrigado, Walker! — Disse o mais velho, antes de passar pela porta.  

O residente mais novo decidiu que era uma boa hora para passar na sala de descanso e pegar um café. Moveu as pernas até lá, deixou a cafeteira fazer seu trabalho e checou seu celular mais uma vez. Com frustração, percebeu que havia apenas mensagens de Jill e nenhuma de sua família ou do xerife, que houvera prometido manter-lhe atualizado com o caso de Lucca. Inspirou fundo, não deixando-se quebrar nada que visse pela frente. Pegou o café quente e dirigiu-se para a sala de estoques, dando um suspiro ao perceber que haviam pilhas de arquivos prontas para serem inspecionadas por ele. Mal podia esperar para terminar sua residência e virar oficialmente um atendente. 

Assim que entrou em um ritmo bom do trabalho na sala fechada, seus pensamentos voltaram à Cherub Field mais uma vez, precisamente na parte da memória que cerrava sua garganta e apertava seu coração. A parte em que Lucca fora levado para longe de si, o olhar magoado pelo fato de ter sido traído pelo médico. 

 

Sua mãe houvera ligado para a polícia e não demorou muito para que os mesmos chegassem. O xerife, que Nathan percebeu ser uns três anos mais novo que ele, aparecera em conjunto de dois oficiais animados. Afinal, Cherub Field não era o tipo de cidade em que ocorria muita coisa emocionante para que eles pudessem pôr o trabalho em prática.  

Lucca, assim que os viu aproximarem-se, alargou os olhos escuros de forma assustada. Encostou-se mais ainda na parede, como se pudesse ultrapassá-la e manter-se invisível em frente das pessoas que o cercavam. A curiosidade estampada nos rostos dos oficiais era gritante e, ao passo que a família Walker lhes contava tudo o que sabia sobre o garoto, ela apenas aumentava. Assim que o xerife deu um passo a mais em direção de Lucca, este deu um pulo e, na velocidade da luz, dirigiu-se para a porta dos fundos por onde uma hora antes entrara.  

O medo no rosto imundo de Lucca deu lugar a uma fúria absurda assim que seus braços foram pegos com firmeza pelos dois oficiais. Os pés de Nathan, aparentemente com vida própria, aproximaram-se com angústia antes que a mão espalmada de Gerard, o xerife, o impedira de ajudar o garoto. O médico desviara os olhos angustiados do rosto jovem de Gerard para pousá-los em Lucca, que esperneava como se sua vida dependesse disso. Os olhos escuros estavam mais ferozes do que nunca e, ao perceber que não tinha chance alguma de escapar, Lucca deixou-se usar a rouca voz para gritar alto.  

O grito de desespero fizera o coração do médico apertar-se dentro do peito. Nathaniel dera um passo atrás, engolindo em seco ao olhar para seus pais, também comovidos pela cena. O rosto pálido de Nathan voltou ao garoto que, metade deitado no chão ao espernear, metade sentado ao tentar desvencilhar-se dos braços musculosos  dos policiais, ergueu os olhos mareados para o homem que o acolhera. Estava claramente magoado, e a percepção do fato fizera um nó instalar-se na garganta do médico, porque houvera sido traído pela pessoa em que confiara.  

Em seguida, depois da família Walker ser interrogada brevemente, o garoto fora praticamente arrastado para a viatura da polícia, fazendo com que Nathan cerrasse os punhos com raiva.  

— Não o trate assim! — Reclamou, puxando o braço de um dos policiais com força. — Não está vendo que ele passou por muita coisa? Que ele está machucado? — Perguntou, incrédulo.  

— Nathan... — Começou a mãe deste, chegando perto do mesmo.  

O policial mais velho, o qual Nathan havia segurado, apenas franziu o cenho com violência, claramente furioso. Então o mais novo, com um toque de compaixão, se fez ouvir antes que o mais velho respondesse, acima dos gritos de Lucca.  

— Se não o segurarmos com força, ele vai escapar — explicou o policial mais novo, com um sorriso amarelo. — Não parece, mas ele é forte. Não se preocupe — acrescentou, acompanhando o ritmo do policial zangado para fora da porta —, cuidaremos bem dele.  

Um segundo depois eles já empurravam o garoto para dentro da viatura de forma desajeitada, visto que Lucca não desistira nem por um segundo de escapar das mãos alheias. O xerife tinha o cenho franzido e um rosto pensativo ao observar seus homens com Lucca. Virou na direção da família Walker e disse que faria todo o possível para descobrir o que acontecera com o garoto de olhos escuros. Nathan pôde perceber a sinceridade em suas palavras, relaxando os ombros levemente.  

No entanto, o último olhar que Lucca lançara a ele pela janela da viatura deixou um gosto amargo na boca do médico que permaneceu por dias.  

 

O som do toque do celular trouxe Nathan de volta ao hospital, na sala de estoques. Piscou algumas vezes ao se dar conta de que não houvera feito nem metade do que deveria, logo pegando o celular com um suspiro. Atendeu em um segundo ao ver que se tratava de sua mãe.  

— Mãe? — Perguntou, levantando do pequeno banco em que sentara por mais de hora. Sentiu a bunda dormente e as pernas doídas, mas não deu importância, a ansiedade invadindo suas veias.   

Querido — ouviu a voz do outro lado da linha. — Como está você? Está no trabalho?  

— Estou bem, mãe — respondeu de forma rápida. — Gerard tem informações?  

Ouviu a risada da mãe reverberar de forma rápida.  

Você está mesmo comovido com o garoto, não? — Perguntou de forma carinhosa. — Por isso sempre o admirei, toda essa generosidade e bondade em seu coração — disse ela, e Nathan quase podia visualizar o sorriso orgulhoso no rosto da mãe. Sorriu também. — Respondendo à sua pergunta, Gerard ligou para avisar que o caso de Lucca passou para a Departamento de Dobleville, de investigações especiais ou algo assim.  

Estava bastante claro que uma delegacia pequena, de uma cidade do interior e igualmente pequena, comandada por um xerife jovem que certamente passaria o próximo posto para seu filho, não era capaz de lidar com uma investigação tão complexa. O xerife de pouca idade, apesar de haver mesmo colocado seu empenho na investigação, estava falhando miseravelmente. Estava óbvio para o médico que, uma vez que saíra a notícia do garoto na mídia, não demoraria muito para a investigação ser levada à um departamento mais competente e provido de recursos.  

— Investigações Criminais Específicas — completou Nathan, pensativo. — Imaginei que isso fosse acontecer — resmungou Nathan, pensando que Dobleville fica do outro lado do Estado. — E o que mais?  

Bom, eles virão buscá-lo amanhã. Gerard disse que muita gente vai trabalhar no caso, assistentes sociais, proteção ao menor, equipe de capturas e desaparecimentos... Inclusive uma psicóloga para o pobrezinho — falou a mãe, pensativa. — Gerard disse que ninguém consegue encostar em Lucca a não ser contra sua vontade. Não acredita que você conseguiu fazê-lo — disse, soltando um riso pelo nariz —, mas eu disse que você consegue magias com seus pacientes e não seria diferente com mais alguém que precisa de ajuda.  

O médico permitiu que um sorriso se espalhasse por seu rosto. Ah, mãe.  

— Fico feliz que tanta gente esteja disposta a ajudá-lo — falou Nathan, apesar de saber que o mesmo não ocorreria se ninguém fosse pago por isto. — Eu nem sei por que achei que eu, mero médico residente, pudesse ajudar de alguma forma — riu de forma forçada pelo nariz.  

Você pensou que pudesse ajudá-lo porque pode, Nathaniel — falou a mãe logo após. — Você conquistou a confiança dele e é exatamente por isto que Gerard pediu para que você viesse até a delegacia antes que o pessoal de Dobleville chegue.  

— O quê? — Murmurou Nathan, piscando. — Mas de que vai adiantar isso agora?  

Ele confia em você, querido. Talvez o que ele esteja precisando agora é de alguém de confiança por perto, ao menos para lhe dizer que vai ficar tudo bem.  

— Amanhã eu trabalho, mãe — falou o moreno, sem saber o que mais dizer.  

Faça um esforço, meu bem — disse ela, com o tom brando. — Se conseguir vir, já trás com você o seu irmão. Eu não sei o que esse garoto está pensando, que pode ficar mais de duas semanas sem visitar sua mãe? — Bufou ela, o tom teatralmente indignado. O moreno se permitiu rir, tentando deixar a tensão sair de seus ombros.  

— Ele não está pensando, mãe — falou, checando o relógio na parede. — Eu tenho que desligar agora, depois nos falamos.  

Está bem, Nathan. Pense com carinho! — Pediu. — Te amo, meu filho.  

— Também te amo, mãe — falou o médico antes de desligar a chamada.  

O silêncio pairou sobre a sala lotada de arquivos.  

A verdade era que o acontecimento de uma semana antes havia despertado Nathan de uma vida pacata. Adorava o emprego, adorava os estudos e apesar de bagunçado, adorava seu pequeno apartamento.  

No entanto, a adrenalina de salvar vidas não era suficiente para que estivesse felizmente satisfeito. Precisava de outro tipo de adrenalina, o tipo que o fizesse acordar todo dia com gana de viver. Já não sabia dizer se era feliz, afinal. Deparar-se com um garoto escondido em seu jardim havia feito com que Nathan despertasse da ilusão de que sua vida se limitava ao hospital. A selvageria nos olhos escuros do garoto desorientado fizera com que Nathan percebesse que quer mais do que apenas trabalhar e visitar os pais nas suas folgas.  

Queria mais. Queria mais adrenalina, mais emoção, mais vontade de viver. Gostava de promover o bem-estar para os outros e não deixaria de gostar. Porém, queria ter um objetivo a cumprir, algo que fizesse bem a si mesmo para variar. Gostaria que sua vida não parasse por ali.  

Todo o mistério que envolvia Lucca deixava-o curioso para descobrir o que havia ocorrido, toda a selvageria deixava-o ansioso por saber mais a respeito do peculiar garoto e a forma como o mesmo confiara em si deixava-o pendente de proteger o menor. Proteger e cuidar era o que mais gostava de fazer, afinal. Sentia como se houvesse sido puxado para a época em que era uma criança, fascinado demais com o irmãozinho que ganhara. A felicidade genuína de criança ao descobrir que teria alguém para proteger, a mesma função que admirava em seus dois irmãos mais velhos.  

Suspirou ao ouvir o silêncio ensurdecedor da sala vazia, encarando a parede com os olhos desfocados. No fundo, Nathaniel sabia exatamente o que iria fazer. Entretanto, a ansiedade aumentara consideravelmente, assim como a falta de concentração.  

Se não conseguia manter a cabeça em ordem antes, agora é que seus neurônios pifariam de vez.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mais uma vez, queria dizer que sou toda olhos para os reviews. E queria ressaltar que o site tem uma opção de "editar capítulo", então nunca é muito tarde para sugestões e/ou críticas.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Lucca" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.