Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 4
III. Lucca


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! *-*



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Maio

— Querido, pode nos dizer seu nome? — perguntou a Sra. Abigail, apoiada na mesa.   

Debaixo da luz provinda da lâmpada na cozinha, Nathan pôde perceber que o garoto não era tão novo quanto imaginara. Provavelmente teria mais do que doze anos, ao contrário do que anteriormente pensara, devido aos detalhes que agora podia enxergar com mais nitidez. O formato do rosto, os poucos pêlos que tinha pelo corpo e a estrutura óssea de suas mãos indicavam que era mais velho do que sua altura indicara.   

O garoto, com as pernas curvadas de forma com que ficasse de cócoras, se encontrava em um dos cantos da cozinha, ao lado da mesa de jantar. Os olhos escuros, que Nathan descobriu serem negros, disparavam pela cozinha e alargavam-se ao som de qualquer ruído proeminente. A pele morena estava não só coberta por sujeira e sangue, como que por cicatrizes também. Nenhuma era tão profunda a ponto de chamar atenção ao passar os olhos, porém Nathan fora analítico o suficiente para vê-las. Aprendera em sua residência no hospital que, tratando-se de pacientes, toda atenção é pouca, especialmente quando se trata de vítimas de eventos traumáticos.  

— Mãe, já perguntei isso. Não acho que ele vá responder — afirmou Nathan, dando um passo em sua direção apenas para vê-lo quase unir-se à parede novamente. Suspirou, recuando o passo que dera.  

— Nathaniel, não acha que devemos ligar para um hospital ou para a polícia?  

— Mãe, eu sou médico — lembrou-a ao encarar o rosto preocupado da mãe. Aproximou-se o suficiente para falar baixinho com ela. — Ele está assustado, não acho que devemos chamar ninguém até que se acalme. Mas sim — imendou, encarando os olhos azuis da mãe —, devemos chamar a polícia. Vou tentar tratar os ferimentos visíveis, como o do joelho. Assim que eu me certificar de que ele está bem ou que, pelo menos, me diga seu nome, eu chamo quem tiver que chamar. Está bem? — Perguntou, vendo a mãe suspirar antes de encarar o menino mais uma vez.  

— Está bem, querido — confirmou. — Eu vou subir e colocar uma roupa decente — contou, apontando para o robe que usava. — Aviso o seu pai para não descer e não assustá-lo ainda mais.  

— Obrigado. — Nathan deixou um beijo em sua testa antes que ela se retirasse.  

Voltou os olhos para o garoto, nem um pouco surpreso ao encontrá-lo o observando também. Caminhou em direção à sala, pegou um kit de primeiros socorros que arrumara para os pais e voltou à cozinha, encontrando-o no mesmo lugar em que o deixara. Aproximou-se mais uma vez, ficando de cócoras também, em frente à ele. Uma distância de pelo menos um metro os separava, mas era visível que o menor não estava à vontade com a aproximação, apesar de tudo.  

— Meu nome é Nathan — disse a ele com um sorriso amigável. — Eu sou médico — contou. — E sou dos bons. Será que não posso me aproximar mais um pouco e cuidar do seu joelho machucado? Prometo que não vai doer — afirmou. Olhando para as escoriações no garoto, no entanto, se perguntou se ele realmente era capaz de sentir dor, visto a quantidade de machucados antigos que havia em sua pele.   

Nathan pegou um pequeno vidro de soro fisiológico e um pedaço de gaze para a limpeza, um em cada mão. Ergueu-as para mostrar a ele que não segurava nada além disso e sorriu novamente. Aproximou-se pouco a pouco, vendo que o cenho franzido do menor aprofundava a cada centímetro que Nathan chegava mais perto. Porém, não se mexeu. Tampouco recuou para trás, para a parede. Apenas o observou ao passo que avançava em sua direção.  

Assim que Nathan chegara perto o suficiente para sentir o cheiro de sangue e suor provenientes do garoto, molhou a gaze com o soro e encarou as órbitas escuras do garoto.  

— Posso? — Perguntou com atenção. Segundos passaram-se lentamente ao passo que o menor calado mantinha-se. Nathan já desistia de uma afirmação, verbal ou corporal, quando o garoto de cabelos castanhos acenou com a cabeça de forma quase imperceptível.  

Nathan reprimiu a vontade de fechar os olhos com alívio. Já estava cogitando a hipótese do menor não falar sua língua - ou língua alguma. Sorriu novamente, levando a gaze em direção ao seu joelho de forma lenta, para não assustá-lo. Limpou-a devagar, atento aos movimentos do garoto, mas este manteve-se imóvel, os olhos focados no rosto do mais velho.  

— Não quer me dizer seu nome? — Tentou mais uma vez, os olhos a procura de algum outro ferimento visível. Era difícil saber onde mais estava machucado, devido à quantidade de sujeira em sua pele. — Ou você não lembra? — Indagou-se tanto para ele quanto para si mesmo.  

— Lucca — A voz baixa e rouca veio de forma tão sutil que Nathan quase assustou-se.  

Apesar de querer ouvir sua voz e saber o que havia acontecido com ele, ainda assim não esperava obter resposta alguma. O garoto era um enigma e por um momento, pensou que permaneceria assim para sempre. Tomou pouco tempo para recuperar-se da surpresa, agora percebendo que suas sobrancelhas haviam se arqueado de forma nada sutil.  

— Lucca — repetiu Nathan, testando o nome em sua voz. Terminou de limpar e fez um curativo por cima do joelho. — Nome bonito — falou, sorrindo. — Será que você pode me contar o que aconteceu com você, Lucca?  

O garoto, antes de cócoras, deixou os joelhos encostarem no chão, as mãos esparramaram-se neste em seguida, o rosto imundo a milímetros de Nathan. O médico, imóvel, apenas observou quando o menor baixou os olhos para seus pés, o cenho franzido. Pegou o soro fisiológico ao lado deles e inclinou a cabeça para o lado, encarando o vidro com tanta curiosidade quanto Nathan encarara um coração pela primeira vez em cirurgia.  

Em seguida, Lucca espalmou a mão no peito de Nathan, empurrando-o para trás de forma com que sentasse no chão, confuso. Pegou o pé ainda descalço do maior e virou o soro ali onde havia machucado, com tanto interesse que deixou Nathan intrigado. Nem lembrava-se da pele injuriada abaixo do pé, já que ignorara a dor ao caminhar até esquecê-la por completo. 

— Você vai cuidar do meu machucado também, é isso? — Perguntou, incapaz de impedir um sorriso espalhar por seu rosto. No entanto, o sorriso não demorou a desvanecer completamente.  

O comportamento de Lucca não era nem um pouco normal para sua idade e como médico, entendia isso mais profundamente do que desejara. Não havia qualquer explicação lógica para a situação em que o garoto se encontrava que não fosse no mínimo, perturbadora.  

— Você pode me dizer seu sobrenome, Lucca? — Perguntou, vendo-o largar o soro depois de despejar quantidade suficiente para fazer uma pequena poça no chão abaixo do pé alheio. Ergueu os olhos para Nathan, o rosto sereno, sem nada dizer. — Sua idade, talvez? Quanto a sua família? Pai, mãe? Não sabe me dizer os nomes deles?  

Silêncio mais uma vez.  

— Se eles lhe fizeram algum mal, Lucca, eu não vou chamá-los. Está bem? — Perguntou, observando os cílios abundantes protegendo os olhos de cor escura. — Mas eu preciso saber mais sobre você para poder ajudá-lo.  

Nathan apoiou as costas na parede, virando o rosto para o lado esquerdo para encarar o garoto mais misterioso que já conhecera. Suspirou ao desviar os olhos para a cozinha, pensando no que faria a seguir. Devia chamar a polícia ou o conselho tutelar? Não sabia, visto que nunca se deparara com uma situação do tipo e não o haviam ensinado isso na faculdade.  

No hospital, haviam protocolos para pacientes não-identificados, como já houvera presenciado ao menos cinco vezes durante os três anos em que ali trabalhara. No entanto, nenhum dos pacientes era menor de idade e todos apareceram no hospital em estado grave. Fez uma nota mental sobre aprender o procedimento destes casos o mais rápido possível. Também tinha conhecimento do protocolo da ala pediátrica quando um menor aparecia com indícios de maus tratos. 

No entanto, Lucca não era um paciente e isto não era um hospital. Era seu lar, era a casa de seus pais. O garoto não se encaixava em nenhum protocolo, mas ao mesmo tempo se encaixava um pouco em todas as situações que lembrava.   

O que fazer quando um garoto entre treze e dezesseis anos aparece em seu jardim, injuriado, agindo de forma peculiar e recusando-se a dar-lhe informações 

— Está com fome? — Perguntou ao focar os olhos amendoados na mesa de café da manhã. Voltou-os à Lucca para vê-lo franzir o cenho mais uma vez. — Claro que está — afirmou, sem esperar resposta, visto que não a obteria mesmo. Levantou-se com um suspiro. — Vou preparar algo para você comer, está bem?  

Cortou uma fatia de pão e o preencheu com os melhores frios que obtinha na geladeira. Serviu-lhe um copo com leite morno e, por via das dúvidas, abriu um pacote de bolachas doces.  

— Pronto. Mas você precisa se levantar, tá bom? — Perguntou, observando-o de cima.  

Ao ver que não obteve sucesso, Nathan sentou-se à mesa, esperando que isso o motivasse. Esperou um, dois, três minutos. Serviu uma fatia de pão para si mesmo e servia outro copo de leite quando um movimento chamou sua atenção. Lucca levantou-se de forma lenta, os olhos no maior, sem ficar completamente ereto - tinha os joelhos levemente dobrados. Meio caminhou meio arrastou-se para a mesa, subindo na cadeira em frente à Nathan com os pés. Ficou de cócoras novamente, em cima da cadeira, antes de pegar o pão e levá-lo à boca. Comeu em uma velocidade absurda, sujando-se como uma criança e deixando farelos caírem na mesa e em sua roupa – ou na falta dela.  

Observando com atenção, Nathan pegou outra fatia e o preparou da mesma forma que o anterior, entregando-a à ele e vendo a cena se repetir. Empurrou o copo com leite e o viu virar todo de uma vez, novamente sujando-se. 

Nathan fazia anotações mentais ao observá-lo em silêncio: compreende o que lhe é falado, tem dificuldade com tarefas fáceis, comportamento não condiz com aparente idade, é desconfiado, desconhece objetos simples – como o soro fisiológico, recusa-se a falar, reflexos em ordem, pupilas normais, nenhum ferimento grave aparente.   

Não tinha informação suficiente para descobrir o que havia de errado com Lucca, e tampouco passara tempo suficiente na ala psiquiátrica para saber se havia alguma dificuldade mental óbvia. Não poderia saber muita coisa se ele não lhe fornecesse as informações mínimas necessárias. Nem ao menos sabia de onde o garoto havia surgido, afinal.   

Em cidades pequenas, quase todo mundo se conhece. Porém, Nathan não morava ali há tempos e nunca, durante sua estadia na cidade, conhecera todo mundo. Cherub Field não era tão pequena, afinal, e haviam lugares afastados onde pessoas gostavam de construir suas casas. Não lembrar de ter visto Lucca alguma vez não significava que ele não morava ali.   

— Não quer tomar um banho, talvez? — Perguntou, vendo-o comer com gana as bolachas que caíam para fora do pacote. Não obteve resposta, mais uma vez.  

Um segundo depois, o garoto deu um pulo e sumiu de sua vista, agachando-se ao lado da cadeira mais uma vez. Nathan franziu o cenho, logo percebendo os sons de passos em direção à cozinha. Deveria acrescentar à sua lista: ouvidos aguçados.  

Ergueu os olhos para a mãe e o pai que entravam na cozinha, vestidos. Os olhos de Nigel dispararam pelo cômodo, certamente procurando pelo garoto do qual sua mulher falara ao subir para o quarto. Abigail encarou o filho com expectativa.  

— Ele disse alguma coisa?  

— Está tudo bem — Nathan sussurrou ao enfiar a cabeça debaixo da mesa e encarar os olhos escuros. Ergueu-se para observar os pais. — Tratei o machucado em seu joelho e não acho que há algum ferimento grave em seu corpo. Pelo menos, não visível — explicou, erguendo os ombros. — Seu nome é Lucca.  

— Ele falou? — Perguntou a mãe, aproximando-se ao ver Nathan assentir. — Contou o que aconteceu com ele? — Nathan negou com a cabeça, logo soltando um suspiro.  

— Só me disse o nome — falou Nathan, decepcionado. — Se alimentou agora. Acho melhor você não fazer isso — falou, pegando o braço do pai que se aproximava do garoto.  

As sobrancelhas grossas de Nigel ergueram-se consideravelmente, desviando os olhos do filho para os cabelos sujos visíveis ao lado da mesa e logo para o filho novamente.  

— Ele não disse mais nada, só seu nome? — Perguntou, inclinando a cabeça para ver os cabelos castanhos e desordenados do garoto quase abaixo da mesa. — Você já o viu antes, querida?  

— Nunca — disse ela, o cenho franzido. — Não soube de nenhuma criança desaparecida aqui, aliás. — Apoiou-se no balcão, o rosto preocupado. — Talvez eu encontre alguma coisa nesta coisa de internet ou...  

— Nem se dê ao trabalho, mãe. Não encontrei nada — interveio Nathan, colocando as mãos nos quadris. Havia pesquisado em seu celular assim que conseguiram fazer com que Lucca entrasse na casa. — Talvez pela cidade haja algum cartaz nas ruas ou nas paredes, sem que haja sido divulgado na internet. Não sei — falou mais consigo mesmo, pensando, frustrado. — Talvez... — Bufou ao perceber que a cabeça já doía.  

Tentou afastar a hipótese de sua mente, mas assim que pousou os olhos no garoto mais uma vez, ela voltou na velocidade da luz. Levando em conta a maneira como o menor agia e alguma reportagem aleatória que haviam assistido um tempo atrás durante uma aula da faculdade, imaginou se não poderia a mesma coisa haver se passado com Lucca. Voltou os olhos aos pais.  

— Talvez, se houver alguma notícia de desaparecimento — começou Nathan, inspirando fundo —, ela seja antiga.  

O silêncio que pairou na cozinha acabou pesando o ar à volta de Nathan, fazendo parecer que havia durado mais do que apenas alguns meros segundos. A hipótese que incomodava a Nathan, se não houvesse passado pela cabeça de seus pais, passava no momento, visto que nada falaram.  

— Vamos ter que ligar para alguém se ele não disser mais nada. — Nigel pronunciou-se, quebrando o silêncio que instalara-se na cozinha. — Aliás, já devíamos ter ligado — emendou, olhando para Nathan. O médico sabia que ele estava certo, mas o vínculo que havia criado com o garoto em tão pouco tempo o deixara atordoado. Suspirou.  

— E para quem ligamos primeiro, pai? Para a polícia, para o Conselho Tutelar?   

— Para ambos, querido — falou a mãe, encarando o garoto. — Podemos falar com Gerard, lembra dele? Ele era o filho do xerife e agora tomou seu posto.  

Nathan assentiu, lembrando do senhor que assumia a posição de xerife em seus tempos na cidade, elegido pelo povo. Era um senhor respeitado e honrado. Olhou para o celular em cima da mesa, a mente voando. Vacilou um pouco ao cogitar se o filho do xerife também seria como o mesmo ou se o caráter não havia sido passado geneticamente. Fez uma careta.  

Havia conseguido fazer com que Lucca o dissesse seu nome e ainda tentasse tratar o machucado de seu pé. Havia conquistado sua confiança e agora não queria pô-lo nas mãos de alguma pessoa rígida ou incompetente. Queria protegê-lo.  

Não é como se tivesse muita opção, no entanto.  

— Pode ligar, mãe — falou, assentindo. — Não acho que Lucca vá dizer mais alguma coisa. Liga você, já que o conhece. Mas eu não quero ninguém o machucando — completou, o rosto sério antes de voltar os olhos ao garoto que já levantara do chão e voltara ao canto da cozinha em que se encontrara anteriormente.

O corpo do mesmo tremia de leve, os joelhos dobrados como em toda vez que tentava ficar em pé. Os olhos estavam mais ferozes do que nunca ao deslizar sobre as três pessoas que o encaravam. Em sua cabeça, devia significar ameaça elevada ao cubo.  

Nathan indagou se, uma vez que se sentisse seguro, Lucca pudesse manter o corpo reto como qualquer ser humano. Indagou se, uma vez que se sentisse seguro, pudesse falar mais do que seu próprio nome. Indagou se poderia, alguma vez, a selvageria desvanecer dos olhos escuros.  

— Acredito que ele já esteja machucado o suficiente — completou Nathan, pesaroso.  


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Notas finais do capítulo

Gente, vou ser chata e pedir reviews. Escrever uma história sem ter comentários para ler é a mesma coisa que entrar em um túnel escuro sem saber se está indo para o local correto ou não.
Sim, essa foi uma ótima metáfora! Hahahahah
E queria ressaltar que o site tem uma opção de "editar capítulo", então nunca é muito tarde para sugestões e/ou críticas.

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! *O*



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