Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 34
XXXIII. Questionamentos


Notas iniciais do capítulo

Gentem linda do meu ♥

Eu vou pôr uma alerta de gatilho aqui no início, apesar de eu não considerar o capítulo pesado pela falta de detalhes, mas eu imagino que se alguém já passou por isto pode se sentir mal, ok?

ALERTA DE GATILHO: homofobia, negligência familiar, e espancamento.
*Isto não está inserido na primeira parte do capítulo, quando Lucca aparece, apenas depois, nas cenas do hospital, então a primeira metade tá liberada.

Boa leitura! ♥



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Novembro

— Você pode esquecer de mim?

Nathaniel havia retornado à casa para visitar, apenas por um dia, antes de retornar para o hospital, para os seus pacientes. Havia chegado pela madrugada, se ajeitado de fininho no quarto de Lucca, e dormido por poucas horas antes do sol despertá-lo.

Lucca estava sentado como um índio, na beirada de sua cama, enquanto Nathan se recusava a levantar sequer o tronco do colchão, esparramado no mesmo.

— Como assim? — questionou, fisgado.

Lucca mexeu nos cabelos que, cada vez mais compridos, mais desordem pareciam causar, e deu de ombros. Nathan sorriu para aquilo, percebendo que havia se tornado uma mania dele.

— Esquecer meu nome, ou quem eu sou, ou... — Pensou por um instante, ao passo que Nathan franzia o cenho. — Eu.

Nathan permaneceu encarando os olhos negros do garoto e o contraste que os mesmos faziam com os cabelos castanhos em torno do rosto. A expressão, para variar, não podia decifrar, mas aquela ruga entre as sobrancelhas parecia indicar preocupação.

— Hum, eu tenho uma boa memória — apontou, sorrindo com preguiça. — Eu sou médico, eu preciso ter uma boa memória. Por que a pergunta? — questionou, curioso por de onde surgira aquilo.

Lucca ajeitou-se na cama, deixando os pés encostarem no colchão ao lado dela.

— A avó do Tyler tem Alzheimer — contou, lembrando-se do nome porque o traumatizou um pouco quando pensou a respeito. — Ela esquece quem ele é.

Nathan sorriu, um tanto aliviado.

— Alzheimer é uma condição mental, Lucca, não são todos que têm — explicou, encarando-o de baixo.

— Mas e se você tiver?

Nathan pensou por um instante, achando justa a pergunta, e então pôs-se sentado também em seu colchão.

— Não se sabe tudo sobre Alzheimer ainda, Lucca, mas sabemos que pode haver uma predisposição genética. Sabe o que isto significa? — questionou, e Lucca tinha certeza de haver ouvido aquilo antes, mas não recordou-se do significado. Negou. — Quer dizer que há um gene no nosso sangue que pode causar esta doença, e podemos descobrir se temos este gene ou não.

Lucca tentou acompanhar, e demorou alguns minutos antes de assentir, compreendendo por cima. Nathan sorriu.

— Eu fiz meu mapeamento genético há algum tempo — contou, despreocupado. — Não tenho predisposição alguma para Alzheimer, aliás, ninguém aqui têm.

Nathan ficara tão paranoico no início da residência que fez todo mundo fazer o mapeamento para poder já evitar algumas doenças como as cardíacas no caso dos pais, já que a idade já os alcançava.

Lucca assentiu, aliviado.

— Podemos fazer o seu mapeamento algum dia — sugeriu, subitamente fisgado pela possibilidade.

Era bastante comum fazerem este teste em sistemas adotivos, sem custo algum, para que os futuros pais soubessem o passado genético das crianças e adolescentes.

Lucca, apesar de não haver entrado no sistema, de certa forma, era um adolescente adotivo. Nada sabiam sobre seu histórico familiar.

— Eu não tenho — afirmou, com convicção.

Nathan arqueou as sobrancelhas, curioso. — Como sabe?

— Nunca esqueceria você.

O sorriso, que começou com um leve levantar dos lábios, terminou com um sorriso largo de puro contentamento.

Se Lucca não era a melhor coisa que havia acontecido em sua vida, Nathan não sabia o que era.

Sequer teve coragem de explicar que as coisas não funcionavam assim, porque poderia ouvir aquilo a vida toda, e desejou que funcionassem mesmo.

— Eu jamais esqueceria de você também, Lucca.

Lucca sorriu, satisfeito, ao observar as orbes claras do médico, com ternura, por sobre si.

Ainda demoraram um tempo se encarando, Nathan ainda sorrindo ao divagar sobre a preciosidade que representava Lucca, e o garoto apenas absorvendo a calmaria que era tê-lo encarando-o com carinho.

Quebrou o olhar, um tempo depois, quando levantou da cama e pôs-se a colocá-la em ordem, com certa agilidade adquirida com o tempo. Nathan ainda o observou por mais alguns instantes antes de levantar e seguir o exemplo.

*

Estavam apenas os quatro, desta vez, em casa.

Sassenach revirava a casa com folia, de certa forma abstinente das brincadeiras no jardim. O outono já havia chegado e o frio espreitava pelas portas da casa nos últimos dias.

Os dois garotos da casa enrolaram o banho do início da manhã e esperaram anoitecer para tal. Haviam finalizado as tarefas de casa, e o Lucca os temas de aula, haviam feito guerra de almofada na sala após assistirem um filme após o outro de uma série de super-heróis, haviam brincado de jogar a bolinha para o Sassenach na sala, o que causou uma confusão na mesma.

E por fim, apenas por ameaças da Dona Abigail, com as mãos na cintura rechonchuda, subiram para tomar banho antes da janta.

Nathan, já de banho tomado, encontrou Lucca sentado na própria cama, com uma das pernas dobradas, e com a mão por debaixo da bainha da calça, como se houvesse algo em sua canela. 

— O que foi? — perguntou, vendo a cara perturbada de Lucca.

Ele ainda piscou, como se recém se desse conta dos quase um e noventa do médico, que se sentara de forma despojada na poltrona ao lado da cama.

Lucca deu de ombros, tirando a mão da perna e levando para a pantufa no pé que estava sobre a cama. Levou um dos dedos para a frente da pantufa, onde estava a cara do dinossauro verde, e enfiou-o na abertura da pelúcia.

— Rasgou — explicou, chateado. — E a sola — acrescentou, erguendo o pé para o Nathan, quase acertando-o na cara — está caindo.

Nathan desviou e riu, mas evitou que se prolongasse devido à chateação do outro.

— Isto é normal quando usamos muito algo que gostamos — garantiu, calmo. — Podemos comprar outra igual à esta. É sua preferida, não?

Lucca assentiu, antes de sorrir fraco, olhando para os pés. Ergueu os olhos para Nathan, mais animado, ao digerir as palavras.

— Igual?

Nathan riu. — Igualzinha!

— Ok.

O médico ainda notou que ele tornara a acariciar a canela, ponderativo, sem sequer olhá-la.

— Se machucou? — ponderou, curioso.

Lucca franziu o cenho, mas negou, erguendo a calça para que Nathan pudesse dar uma olhada. Além de cicatrizes antigas, no entanto, o médico nada enxergou.

— São pêlos — explicou Lucca, ao ver a expressão confusa do mais velho.

Nathan piscou, ainda sem entender, ao focar a atenção nos pêlos finos que cobriam toda a perna do garoto indiano. — Sim, e o que tem?

Lucca suspirou, baixando a calça com certo desgosto.

— São muitos — reclamou, uma ruga entre as sobrancelhas, antes de erguer o braço, como se Nathan pudesse ver por sobre a roupa de lã. — Aqui também — explicou, antes de baixá-lo.

Nathan riu, porque não sabia qual outra reação ter.

— E o que tem? — insistiu, tentando desvendá-lo.

— Incomodam.

Nathaniel assentiu, como um médico muito compreensivo, enquanto segurava o riso. — Sim, eu imagino, tantos assim devem incomodar mesmo — brincou, debochado. — Não vai dizer que quer depilá-los?

Lucca ponderou por um instante, antes de questionar: — Eu posso?

Nathaniel riu, sem se aguentar.

— Lucca, pêlos não nascem só para aparecer — explicou, achando graça no garoto. — Eles estão aí com o propósito de proteger sua pele. Não só os pêlos das pernas, como os do abdômen, das sobrancelhas... — numerou, educativo. — Até mesmo seus cabelos estão aí por algum motivo!

Lucca ainda o encarou por um instante para saber se ele falava sério.

— Não entende — enfatizou, confuso e de certa forma irritado que Nathan defendesse os pêlos que já tomavam conta de todo o seu corpo, como uma alergia que se espalhara por ele. 

— As sobrancelhas e os cílios servem para proteger os olhos de suor, insetos ou poeira — explicou, paciente. — Nossos olhos são muito sensíveis a tudo. Pêlos nos ouvidos ou no nariz, por exemplo, protegem a região interna dos mesmos, impedindo que qualquer sujeirinha entre neles.

— E as axilas? — perguntou, especialmente incomodado com estas, erguendo o braço mais uma vez para indicar do que falava. — E as pernas?

Nathan pensou por um tempo, fazendo uma careta de culpado.

— Nas axilas evitam alergias e irritações — tentou, acabando por rir enquanto Lucca portava uma careta de quem sabia que ele não tinha uma resposta. — Mas olha, você nem tem muito pêlo não. Imagine se fosse assim — argumentou, colocando o pé na cama e erguendo a calça. 

Funcionou, porque Lucca se permitiu sorrir para aquilo.

— Não vou ficar assim — garantiu Lucca, da mesma forma que garantira que jamais teria Alzheimer.

Nathan riu. — É, provavelmente não — concordou, tranquilo. — Cada corpo é diferente. Você não vai se transformar em um primata, Lucca — garantiu também, com um riso. — Não se preocupe com bobagem. 

Lucca levou uma das mãos para a perna exposta do médico, como se comparar uma à outra. Nathan não se incomodou, de fato interessado sobre o que se passava na mente de Lucca e sua aversão aos pêlos já concentrados em seu corpo. 

Os fios pareciam ainda mais escuros em Nathan, como os de seus cabelos, ou talvez fosse apenas o contraste dos mesmos com a pele branca demais. Demorou-os ali, como se os testasse e se esforçasse a compreender que não deviam ser incômodos mesmo. 

Nathan não ousou se mexer, embora já se sentisse desconfortável com os dedos que deslizavam desde seu tornozelo até o joelho com curiosidade genuína. Perturbava-o mais ainda pensar no que se passava pela cabecinha emaranhada do garoto ao passo que deslizava os dedos com uma delicadeza memorável por sobre sua pele, parecendo ter a mente em branco. 

Lucca apenas analisava que os fios eram mais espessos que os seus, e em maior quantidade, mas não se incomodou ao senti-los nas pontas dos dedos. Ponderou, ainda, para si mesmo, se isto era porque não pertenciam à si próprio e achou justo responder-se que sim.

Ergueu os olhos para o médico, que já não lhe sorria, e parou de mover a mão como se recém se desse conta de havia cometido mais alguma peculiaridade sua. 

Sequer sentia-se surpreso consigo mesmo, já que sempre parecia deixar todo mundo desconfortável.

— Garotos, gastaram toda a caixa d’água? — questionou Nigel, quando escancarou a porta entreaberta de uma vez, com um sorriso brincalhão. — Estão bem? — questionou, ainda, percebendo o silêncio do quarto.

Nathan ainda se demorou com os olhos no pai, lento na arte de raciocinar novamente, antes de piscar, inspirar fundo e sorrir de canto. 

— Lucca e eu estamos decidindo se a gilete é algo considerável — explicou, referindo-se à calça erguida, antes de baixá-la.

Nigel riu, e Lucca apenas deu de ombros, antes que Nathan se levantasse, alternando o olhar entre o pai e o garoto. 

— Venham, a janta vai esfriar — chamou mais uma vez, antes de dar as costas.

Lucca levantou-se, com as mesmas pantufas, não importando que estivessem usadas demais. Nathan, ainda sentindo-se aéreo, como se nada houvesse em sua cabeça, apenas observou o garoto que jamais parecia mudar de humor. 

— Não se preocupe, na próxima eu te trago uma pantufa nova — garantiu, distraído, apontando para os dinossauros.

Riu fraco, sentindo-se tão desconfortável quanto Lucca se sentia do contrário.

*

Nathan chegou no hospital com uma áurea ruim no fim de semana e já se deparou com outra quando encontrou a polícia e o que parecia ser uma família discutindo no meio do corredor da UTI, antes que fossem retirados de lá.

— O que eu perdi? — questionou, relanceando ao longe o que se passava por lá.

Olivia se aproximou para atualizá-lo.

— John Doe foi identificado pela família pela foto que saiu nos noticiários — explicou Olivia, apontando para a cena que se desenrolava ao lado da UTI, desta vez. — Ele se chama Ron Morrison, trinta e oito anos, aquele é o namorado e aquela é a família otária dele — explicou, e Nathan girou o rosto para a forma julgadora com a qual ela falou.

— Otária? — perguntou, arqueando uma das sobrancelhas.

Olivia suspirou. — Eu sei o que você vai dizer — antecipou, antes de olhar para ele. — Não somos ninguém para julgar a família, a não ser quando se trata de menores, porque estamos aqui para tratar os pacientes. Mas esta família — acrescentou, rapidamente, tirando um suspiro de Nathan — diz que se o filho foi espancado e largado para morrer, é porque mereceu.

Nathan ergueu os olhos do prontuário, focando-os nela como se questionasse a veracidade disto. Franziu o cenho, deslocando-os dela para a família e da família para ela.

— O namorado afirma que o crime foi de teor homofóbico — contou, fazendo o humor de Nathan se tornar ainda mais sombrio —, e os pais nem se importam. Eles dizem que não devemos tomar nenhuma medida extrema, porque se ele morrer na UTI é porque deus quis assim — explicou, com mais calma, enquanto Nathan começava a entender o que ela quis dizer com “otária” —, e deus vai levá-lo para o céu para purificar a alma do filho que apodreceu enquanto ele praticava atos libidinosos frente aos olhos do senhor — debochou, irritada.

De longe, pôde distinguir a figura do homem que se encontrava ao lado da polícia e há alguns pés de distância do restante da família.

O único que tinha o rosto avermelhado e inchado pelo choro, que parecia ter a vida por um fio - como todos os que tinham entes queridos na mesma situação na UTI -, que sequer conseguia irritar-se com os absurdos que lhe eram ditos porque estava tão perdido em seu próprio sofrimento.

Nathan suspirou, já sentindo o peso que este plantão teria sobre ele.

— Eu só queria um pouco de paz... — murmurou, insatisfeito, ao guardar a caneta no jaleco. — E agora vou ter que lidar com um paciente com a vida em risco e uma família otária.

 Olivia sorriu por isto, seguindo-o até a movimentação, de onde Russell, como chefe de cirurgia do hospital, o chamou para que se dirigisse até a UTI.

— Senhora! Senhora — pediu o policial, sem muita paciência. — Eu vou pedir que se retire para que eu converse com o Sr. Hamann às sós.

— Mas é muita audácia desse sujeitinho mesmo! — disse ela, com cara de nojo, ao se referir ao enteado. — Você não pode ficar aqui, está entendendo? Vai atrapalhar a passagem do meu filho para o reino de deus!

— Com todo o respeito, senhora, quem não pode ficar aqui é você — interferiu Russell, com toda a calma do mundo.

— Como é que é? — disse o marido, dando dois passos na direção do médico.

— Esta é a UTI — disse ele, sério e firme, sinal de que também já perdia a paciência. — Há pacientes em sério estado de saúde e familiares sofrendo, e não podemos permitir esta gritaria justo ao lado. Se querem gritar que o façam fora daqui ou chamarei os guardas para os tirarem à força — garantiu, em um tom mortalmente sério. — Agora. 

— Não iremos deixar nosso filho com este sodomita! — exclamou a mulher, apontando para o homem que permanecia em silêncio.

Olivia deu um passo em frente, vibrando de ódio, mas Nathan a impediu com o braço, apenas a repreendendo com o olhar. “Não”, os olhos de mel disseram, firmes.

Olivia suspirou, assentindo, com raiva.

— Senhora, viemos aqui para investigar a agressão física ao seu filho, mas se continuar com isto, não me importarei em levá-la à delegacia — frisou a policial, colocando uma das mãos por sobre as algemas em sua cintura.

— Sob qual acusação? — provocou a mulher, arqueando a sobrancelha. 

A policial sorriu, mas para nada se divertia. — Homofobia. A mesmo que trouxe seu filho para um hospital — acrescentou, com julgamento no olhar. 

Nathan percebeu que o outro policial revirou os olhos para a fala da companheira, certamente incomodado por ela, e sentiu desgosto pelo mesmo.

A mulher arquejou, e o marido a segurou, desprezando-os com os olhos, antes de se retirarem. Aproveitando a deixa, os dois policias acompanharam o namorado da vítima até o andar de baixo para finalizar o depoimento. 

Russell os acompanhou até a UTI para checar mais uma vez o paciente, reclamando sobre como era dificultoso o seu trabalho.

Nathan havia participado da primeira cirurgia, mas eles tiveram que reabri-lo em uma craniotomia devido à um sangramento enquanto o Walker estava em Cherubfield. 

— Não tivemos mudanças de ontem para hoje — explicou Russell, checando os aparelhos. — Estamos em cima para ver se ele não terá mais nenhum sangramento intracraniano, mas se for para eu ter um palpite, ele ficará em coma por mais do que apenas algumas semanas.

— Isto se ele acordar — murmurou Olivia, encolhida.

— E se acordar com todas as funções intactas — acrescentou Nathan, inclinando-se sobre ele para checar as pupilas.

Nathan observou os fios ligados ao corpo, o tubo na garganta enquanto ainda não podia respirar por conta própria, e os aparelhos controlando sua respiração e batimentos cardíacos.

Ele tinha o rosto inchado, ainda mais inchado após a cirurgia craniana, comum nos pacientes pós-operação. Escoriações e hematomas se encontravam por todo o corpo, o tornozelo e os dedos de ambas as mãos enfaixados e o braço esquerdo engessado. Ainda haviam duas cicatrizes grandes feitas nas cirurgias, uma na cabeça e outra no abdômen, para lembrá-lo do que ocorreu por toda a vida. 

— Disseram que eu podia entrar — anunciou o namorado, assim que deslizou a porta, enquanto os médicos conversavam ao fazer a checagem do paciente. — Eu tenho algumas perguntas.

Russell tratou de responder cada uma delas, que mais se assemelhavam à um disco repetido na cabeça de Nathan, já que eram tão comuns vindas dos entes queridos dos pacientes. Nathan e Olivia permaneceram atualizando o status do paciente no prontuário, enquanto, baixinho, ele a dava instruções como residente. 

Jason, como era chamado o namorado, aproximou-se do corpo desfalecido do namorado, mas mal conseguiu encostar nele antes de desatar a chorar mais uma vez.

Russell se retirou enquanto Olivia e Nathan permaneceram para finalizar.

— Eu sabia que não devíamos ter ido naquele bar — desabafou Jason, fazendo carinho no rosto do parceiro, chamando a atenção dos dois médicos. — Me desculpa por insistir. Eu devia ter lembrado que há limites para a nossa voz e que temos que escolher quando usá-la. Eu não soube escolher, mas você sempre soube — lamuriou, encolhendo os ombros. 

— Não foi culpa sua — intrometeu-se Olivia, sem evitar, enquanto Nathan se apressava para sair logo dali e deixá-los à sós. — O que quer que tenha acontecido, a culpa é apenas do agressor.

Nathan a repreendeu com o olhar por haver atrapalhado o momento íntimo dos dois, mas Jason pareceu agradecer com os dele. Olhou para a interna, com um sorriso fraco e triste.

— Os agressores — esclareceu, e Nathan ergueu os olhos para ele também. — Eram três — contou, o lábio inferior tremendo. — Eles já haviam nos ameaçado diversas vezes por frequentarmos um bar que eles denominavam hétero — falou, com nojo, antes de voltar os olhos, desta vez amenos, para o namorado. — Ron queria deixar para lá, mas eu não quis. E nesta última noite, eles não estavam lá, então baixamos a guarda. — Balançou a cabeça, fazendo o que podia para segurar o soluço. — Não fiz questão de acompanhá-lo em casa, e só comecei a me preocupar com o silêncio dele na noite do outro dia. Relatei o desaparecimento, mas ninguém se importou, até que eu o vi, quase uma semana depois, no noticiário.  

Debruçou-se, então, ainda em pé, com o rosto enfiado no pescoço do paciente, fungando baixinho e tendo o cuidado de não deixar o peso do tronco por sobre o do outro e não enroscar-se nos fios.

— Sinto muito, Sr. Hamann, ninguém devia passar por isto — comentou Nathan, piedoso, ao vê-lo lamuriar. 

Olivia tinha os olhos cheios d’água e aproveitou quando Jason já não mais os olhava para limpar o rosto com rapidez, sendo observada pelos olhso experientes de Nathan.

— Está dispensada, Dra. Bell — falou, com ênfase para que ela entendesse o recado. Apontou para a porta com a cabeça. — Eu termino aqui.

Ela assentiu, se retirando com rapidez ao tentar controlar o choro, antes de se retirar com rapidez. Nathan agradeceu mentalmente por ela não haver teimado. 

— Acha que ele vai acordar? — questionou Jason, erguendo o rosto inchado subitamente.

Nathan forçou um sorriso. — Há uma chance dele acordar, sim, mas infelizmente não podemos dizer de certeza.

— E pela a sua experiência? — insistiu, com uma pontada de esperança, mas a feição de Nathan pareceu tê-lo respondido. — Ah, não — murmurou, tornando-se a sentir-se minúsculo.

Nathan suspirou, largando o prontuário atualizado no local, antes de se aproximar.

— Sr. Hamann? — chamou, já que os olhos azuis do homem estavam fixos no namorado, e quando os teve em si, continuou: — Pela minha experiência, Ron tem duas possibilidades: acordar e não acordar, 50/50 — declarou, optando por deixar de lado as variáveis. — As estatísticas não importam realmente, porque no fim das contas, o paciente faz o que bem entender — brincou, com um sorriso. — E muitas vezes nos surpreende. 

Lucas sorriu, limpando o rosto, antes de assentir.

— Obrigado — agradeceu, assim que Nathan deu as costas.

Walker assentiu, educado, antes de sair por fim e arrastar a porta para deixá-los à sós, com um suspiro pesado. Olivia estava ao lado, sem poder ser vista por eles, escorada na parede, já recuperada. Nathan deu uma olhada nela antes de se aproximar. 

— Tudo bem? — questionou, calmo.

Ela assentiu, embora o rosto ainda estivesse avermelhado.

— Eu sei que jamais devo perder a compostura frente a um paciente ou a família dele, não precisa vir me dizer isto — foi logo avisando, firme, como se tentasse recobrar a postura formal de médica de antes. 

Nathan soltou um som pelo nariz, balançando a cabeça.

— Sei que sabe — concordou, trazendo uma ruga por entre as sobrancelhas dela. — Você estava à serviço do Thompson mês passado, e eu sei que ele enfatiza muito esta parte. Ele é um saco. 

Olivia deixou-se rir e Nathan a acompanhou no processo, tentando espantar toda a energia ruim. 

— Como você consegue? — questionou ela, sem se aguentar. — Como consegue permanecer tão neutro?

Nathan suspirou, com um sorriso fraco, antes de se apoiar na parede ao lado dela.

— Sinceramente? — perguntou, e ela assentiu. — Eu estou calmo agora, mas provavelmente vou remoer este mesmo caso por meses na minha cabeça — contou, para que ela se sentisse melhor, e não mentia. Observou-a com atenção, em toda a peculiaridade da garota que passou a gostar em pouco tempo. — Olivia, você está no seu primeiro ano, ainda está testando as águas... Olha, eu não posso te dizer que as coisas ficam mais fáceis, mas você se acostuma com isto.

— Eu duvido muito — disse, passando a mão no rosto ao soltar um suspiro pesado.

— Não estou dizendo que não haverão casos que vão te pegar de jeito, porque haverão sim — afirmou, chamando sua atenção. — Agora, ano que vem, no próximo, quando estiver no seu último ano, quando estiver na especialização... — enumerou. — Isto nunca vai mudar, e isto nunca deve mudar, porque são estes casos — explicou, apontando para o quarto ao lado ao enfatizar — que nos relembram o porquê de estarmos aqui.

Olivia marejou os olhos mais uma vez, inspirando e expirando fundo para se acalmar.

— Este é nosso trabalho — continuou, sério. — Estamos aqui para dar o nosso melhor para mantê-los vivos, e não somos perfeitos nessa arte, Olivia. Infelizmente, não somos — acrescentou, com certa tristeza. — Mas se realmente quer ser uma cirurgiã, ou mesmo se escolher outra área, vai ter que aprender a lidar com isto. Vai ser obrigada — enfatizou — a se manter neutra como eu, e não importa como faça. Não importa que chore escondido no banheiro, que faça terapia toda sexta-feira, que visite a capela do hospital todos os dias — esclareceu, e Olivia assentiu freneticamente. — O importante é que lide com isto, e não em frente aos pacientes ou a família deles, porque eles já estão lidando com o suficiente para ter que lidar com você também.

— Tem razão — concordou, agitada. — Tem razão. Obrigada — acrescentou, com um sorriso.

Nathaniel riu. — Não me agradeça ainda, é bem mais difícil do que parece — assegurou, achando graça. — Vai me odiar por mais vezes ainda. 

Olivia ainda ficou em silêncio por um tempo antes de perguntar, em tom jocoso: — Então quer dizer que você chora escondido no banheiro?

Nathaniel riu, não se importando por ser alvo da brincadeira. 

— Todos os dias, Olivia, todos os dias — concordou, fazendo-a rir ainda mais. 

Apesar do tom de brincadeira, a verdade era que Nathan chorava sim, quando um caso lhe afetava demais, o que já ocorrera muitas vezes. No início, como Olivia, não sabia lidar com aquilo, talvez por ser tão alegre e tão para cima, e ter que se deparar com o contraste de tanto sofrimento e morte dentro dos corredores daquele hospital. Depois, foi aprendendo aos poucos a se controlar e a engolir tudo o que sentia e só desmoronar depois que saísse pelas portas do hospital. 

Por vezes, conseguia aguentar o tranco até se encontrar em seu silencioso apartamento e não ter em nada mais no que pensar além do que ocorreu nas últimas horas, de novo, de novo e de novo. Outras, no entanto, não aguentava ir tão longe. Já no carro, desatava a chorar. Raras vezes se deslocou até a cidade natal pelo colo da mãe. 

O segredo era balancear as coisas: não podia se deixar desmoronar no hospital, mas também não podia engolir tudo sem colocar para fora em algum momento. De nada adiantaria manter a postura pelos pacientes à todo custo se isto custasse sua saúde emocional. 

Sinceramente, entendia Kellan por haver odiado os casos da Pediatria no início, porque a maioria dos pacientes que afetaram Nathan vinham de lá. Sempre era mais difícil com crianças. 

O caso de Ron era diferente, mas igualmente pesado. Não havia se envolvido emocionalmente com o caso, como Olivia o houvera feito por algum motivo, mas podia admitir ao menos a si mesmo que aquilo lhe afetara de uma maneira distinta. 

Nunca questionara a própria sexualidade, justamente por estar tão seguro dela. Também nunca tivera problema algum com pessoas de sexualidades diferentes, aliás, isto era primordial que aprendesse nos primeiros anos de medicina. Sempre tratou a todos como semelhantes, porque o são. 

No entanto, não deixava de pensar em sua família.

É comum que a boca do povo, inclusive a sua, acabe propagando, no mínimo, piadinhas comuns com minorias. Nathan lembrava-se de haver feito isto diversas vezes quando adolescente, e mesmo quando adulto, e também lhe custava lembrar de alguém do qual nunca houvera ouvido algo parecido. 

A questão é que os pais estavam inclusos nesta lista. E a cruz no meio da sala de estar da mãe não estava lá por um acaso. Não eram religiosos devotos, e sequer frequentavam a igreja, mas tinham suas crenças e criaram os filhos no meio delas. 

Usavam passagens da Bíblia, ensinavam sobre o criador, ensinavam a respeitar os pais e amar ao próximo, ensinavam que deus, sobretudo, é amor. 

Nathan nunca teve problema algum com nada disto, apesar de não saber o que pensar quando se tratava de religião, já que nunca considerou algo importante para si. Também nunca retrucou os pais, e não era apenas respeito, era mais uma questão de que não se importava com a religião alheia. 

Então por que agora aquilo não lhe saía da cabeça? 

Não era o primeiro caso de homofobia que pegara, e não era a primeira família com discordância de religião e nem tampouco a primeira que demonstrava não amar o filho, especialmente considerando sua sexualidade. 

No entanto, desta vez, tudo parecia tão pessoal. 

Não deixava de pensar se, apesar de saber que jamais veria os pais agindo da forma como os pais de Ron agiram, seus pais não se entristeceriam por pensar que estava seguindo um caminho contrário ao amor que seu deus tanto prega. 

A ideia de que assim o fosse trouxe um aperto no seu coração. 


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Notas finais do capítulo

*Quero ressaltar que não deixo "deus", "criador", "senhor" em minúsculo para ser ofensiva. Todas essas palavras são substantivos e deviam ser com a inicial minúscula, por ortografia mesmo. Acho que o único motivo de "Deus" ser escrito assim é porque este deus católico não tem um nome próprio com inicial maiúscula, então por respeito se coloca o D em maiúsculo do que ele representa: um deus. De certa forma, no entanto, me incomoda escrever assim. Sinto muito se os incomoda do contrário :/

1) A passagem do Ron & Lucas nessa parte seria bem curta, mas eu acabei alongando devido à reação da Olivia para a discussão entre ela e o Nathan. Aff, quando esses personagens agem como bem entendem e se esquecem que sou eu que os controlo HAHAHAHAHAHHA.

2) Só pra lembrar: 'Lucca' se passa em um país fictício, e como estamos em clima de vitória porque homofobia oficialmente é CRIME aqui - yey, vamos nos abraçar! -, então resolvi que no país de Lucca também seria. Era assim que devia ser sempre, em todo lugar do mundo.

Alzheimer, pêlos, homofobia, e responsabilidades médicas. Que capítulo aleatório, gentem! Hahahha. Espero que tenham gostado!

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam!



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