Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 29
XXVIII. O garoto perdido


Notas iniciais do capítulo

Gente linda, gente gata, gente poderosa! ♥

CONSEGUI FINALIZAR ESSE CAPÍTULO, AMÉM, DEUSA DOS SETE MARES! Hahahahhaha. E aqui, só acrescento, por fim: 2 capítulos no feriadão é o mínimo que eu podia fazer. Ou melhor: não fiz nada mais que a minha obrigação. Hahhahaha. Beijos no core de vocês!

Boa leitura! ♥



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Julho

O garoto mastigava com gana, levando um pedaço de bolo, depois outro, e depois outro à boca, sem espaço para respirar no processo. Fechou os olhos com a degustação, balançando a cabeça com um meio sorriso de agrado, lambendo os dedos por fim. 

— Mano, 'cê é um anjo — admirou-se, ainda terminando de engolir tudo. 

Lucca sorriu, satisfeito que Tyler também compartilhasse do mesmo gosto por comidas em um geral que ele. Mas a comida e os doces de Abigail realmente eram de encantar qualquer um. 

O garoto indiano demorou um tempo antes de retornar para a instituição HH, carregando um pote com pedaços de bolo, feito pela tia Abigail, nas mãos. Seus pais adotivos ainda ponderavam se aquela era uma boa ideia, e Abigail insistia em querer acompanhá-lo, mas depois de muito titubear, ficou declarado que a companhia oficial de Lucca para as visitas ao orfanato seria Nigel. Aquela seria a atividade especial deles. 

E, alguns bancos à distância, para respeitar o espaço do mais novo membro da família, o Walker mais velho segurava um livro em mãos e o lia através dos óculos de graus. 

Tyler, desta vez, nem chegou a entrar pro jogo de futebol. Mal saíra das salas de aulas para o pátio quando enxergou o garoto franzino com um pote nas mãos. Abriu um sorriso de ponta a ponta antes de se aproximar e sentar ao seu lado no mesmo banco da última vez. 

— Sabe — começou, um tanto hesitante, ao largar o pote vazio entre eles —, agora eu sei quem você é. Geral falou por aqui depois que 'cê foi embora. — Lucca piscou, já sabendo onde ele chegaria. — O garoto perdido. 

Lucca hesitou um tanto, sentindo-se ofendido novamente com aquele rótulo que tanto ouvira na televisão. Mas ignorou o sentimento. 

— Acho que sim — confirmou em um murmúrio, lembrando-se do que já ouvira na televisão, nas delegacias, e pelas ruas da pequena cidade. 

— Você é uma lenda! — afirmou o outro, vendo que o campo já havia sido testado positivamente, rindo. 

Depois de estar ciente do fato, todo o comportamento estranho de Lucca lhe parecera coerente. Ele havia vivido recluso da sociedade por anos, afinal, e Tyler havia sido um dos que criara teorias a respeito quando a notícia saíra na televisão. 

— Me conta mais sobre isso! — pediu, com os grandes olhos curiosos. 

Lucca franziu o cenho. — Não. 

— Pô, nunca te pedi nada! — reclamou Tyler, estalando a língua. Ao perceber o estado de espírito de Lucca, no entanto, percebeu seu erro. — Desculpa. 

Lucca pode ter aparecido nas televisões e ter tido uma trajetória um tanto peculiar perto da sua, ou das demais na HH, mas ele continuava sendo uma criança negligenciada com memórias ruins. E se havia algo de que Tyler compreendia era de negligência e lembranças ruins. 

— 'Cê não fala muito, né não? — ponderou, encarando Lucca de canto de olho ao perceber que ele continuava um tanto chateado pela pergunta anterior. Virou-se, então, totalmente para o indiano. — Vamos. Me faça você uma pergunta — sugeriu. — Qualquer coisa. 

Lucca ponderou antes de girar, também, o rosto para Tyler. Encarou-o por um instante, desde os cabelos crespos despontando pelo mesmo boné vermelho até a cicatriz no lado esquerdo de seu rosto. 

— Quantos anos você tev... tem? — corrigiu-se, inclinando a cabeça. 

— Quinze — respondeu, de forma rápida, com um dar de ombros. 

Lucca arqueou as sobrancelhas. Tyler era mais novo. 

— Por que está aqui? — volveu a perguntar, analístico.

Tyler percebeu, apenas na segunda pergunta, que Lucca fazia as mesmas perguntas destinadas à ele naquela última vez. Achou graça nisto. Desta vez um sorriso começou no rosto do garoto e terminou em seus olhos. 

— Pai morto, mãe drogada, avó doente. — Deu de ombros. Lucca alargou os olhos com as informações dadas de forma tão singela quanto as dele. Realmente gostava daquele garoto, embora tenha se compadecido da causa. — E você, sabe por que 'tá aqui? 

— Pra visit...

— Não. — Tyler nega com a cabeça ao interrompê-lo. — Por que está aqui, longe da floresta? — Apontou de forma vaga para os muros traseiros da HH, onde despontavam topos de árvores visíveis. — Cadê teus pais? 

O primeiro instinto de Lucca foi de friccionar os lábios, desgostoso com o rumo da conversa. Mas Tyler não parecia interessado nas informações em si, como boa parte dos policiais e como sua própria família, que também compactuava com os oficiais. Tyler parecia apenas interessado na história de Lucca, curioso, e Tyler havia compartilhado informações suas também, com desinteresse. 

— Pai sumido, mãe morta — hesitou, engolindo em seco —, e... 

Tyler franziu o cenho quando o silêncio persistiu. — E? 

Lucca negou com a cabeça, não iria dizer, não iria pensar, não iria lembrar. Não gostava de lembrar de Kai, porque entre seu pai e ele, era dele quem sentia mais falta. E era a lembrança de Kai a mais dolorida, pelo simples fato de não saber o que fazer com ela. A lembrança de sua mãe, por exemplo, sabia que estava ali apenas pra poder desfrutá-la quando sentia falta, porque sabia que tudo o que podia ter dela eram lembranças. Sua mãe estava morta. Mas Kai...

Onde estava Kai? 

— Sinto muito — murmurou Tyler, desviando o olhar com certa raiva. Era o que sentia com relação àquele sistema no qual estava preso: raiva. Sabia que não era o mesmo com Lucca, porque nunca havia estado no sistema, mas o resultado havia sido o mesmo. Tragédia. — Mas se serve de consolo, eu preferia que minha mãe estivesse sumida. Assim ela não estaria lutando por minha guarda para poder se drogar novamente e me esquecer trancado dentro de casa mais uma vez. — Riu, sem humor algum. — Um ano — disse, focando os olhos castanhos nos negros de Lucca. — Um ano e eu posso finalmente me emancipar. 

Lucca franziu o cenho, tentando compreender. — Emancipar? 

Tyler riu, fazendo balançar o corpo. — 'Tô vendo que vou precisar te ensinar algumas coisas. 

Lucca deu de ombros. — Dat is geen probleem. Todos me ensinavam algo. 

Tyler, que tinha desviado o olhar para o futebol na quadra, franziu o cenho com a confusão e girou o rosto para Lucca novamente com certa assombração, que logo se tornou uma espécie de deslumbramento. E logo, animação. 

— Cara — começou, daquele jeito dele, ao encostar a mão no braço de Lucca de forma automática, como se faz pra chamar a atenção de alguém. Lucca o encarou, um tanto desnorteado. — Mano, 'cê tem que me ensinar essas línguas maneiras!

Tão logo encostou-o, afastou a mão, mas sem sequer ter percebido o alarme de Lucca disparar com o contato. Lucca, no entanto, se incomodou mais com a constatação de que alguém invadia seu espaço pessoal, aquela constatação automática, do que pelo fato concreto de ter sido tocado. Relaxou os ombros, vendo o jeito despojado - e um tanto desconfortável - com o qual Tyler estava atirado no banco, rindo sozinho com os olhos perdidos ao longe. 

Algo lhe dizia que toda a graça que fazia Tyler balançar a cabeça, soltando um riso pelo nariz, estava em si, e Lucca estava completamente correto. 

Deu de ombros, e logo engajaram em outra conversa monopolizada por Tyler, que surpreendia aos dois de forma igualitária.

Lucca, pela primeira vez, percebia o que era se esforçar para entender alguém, da mesma forma como muitos se esforçavam pra entendê-lo. Tyler usava palavras que não ouvia nas vozes de ninguém, tamanha a estranheza do garoto abrigado.

E Tyler, por sua vez, não mais via dificuldade em compreender Lucca, como tivera no dia em que o conhecera. Talvez saber um pouco de sua história tenha o ajudado no processo de compreensão de que tudo que Lucca dizia ou fazia era justificável. Havia justificativa para todos ali, sempre havia. Era fácil entendê-lo, afinal, Lucca era como todo e qualquer garoto e garota que conhecera no sistema. 

 Simples por fora, complicado por dentro, e perdido no mundo. 

*

 Nathaniel caminhava de um lado ao outro, então corria escadas acima, para logo retornar, pegar o elevador, adentrar em uma sala ou outra, correr para a sala de emergência, pegar e largar prontuários, e logo correr outra vez. 

Estava estressado nas últimas semanas e não sabia ao certo o porquê. Desconfiava que tivesse a ver com a sobrecarga no hospital, que sempre tomava muito tempo dele mas às vezes tornava-se quase impossível viver ali. E com o fato de Lucca estar cada vez mais acostumado longe de si e próximo à outras pessoas. Nathan até fez uma nota mental para lembrar-se de perguntar a respeito da instituição de Lucca visitara. 

Sobretudo, também, tinha a ver com sua residência. Estava na metade de julho, e em menos de dois meses entraria para o último ano como residente. O ano mais puxado e mais desafiador, o ano mais estressante. O ano em que teria que escolher, de uma vez por todas, o rumo da sua carreira. Talvez estivesse estressado em antecedência.  

— Senhor, se acalme. Só preciso te examinar. — Tentou, segurando um homem de meia idade, coberto de sangue, que não parava de espernear. Nathan sequer podia entender se o sangue era dele ou de mais alguém do acidente, porque ele não parava quieto. Chamou um dos enfermeiros com rapidez, tentando fazer o homem se deitar na maca sem sucesso. — Eu preciso que você... 

Fechou os olhos, segurando a respiração, quando sentiu o golpe no rosto jogar seu corpo para trás com a força. Equilibrou-se antes que se estatelasse no chão, com a mão no nariz que latejava devido à cotovelada acidental do homem que esperneava. Trouxe a própria mão na altura dos olhos apenas para enxergar vermelho, e não apenas no modo literal. 

Bastou um olhar furioso para Kellan, que estava com outro paciente à algumas macas adiante, para que o loiro se aprontasse com rapidez em correr até ele. No processo, levou também mais dois enfermeiros e um médico para segurar o paciente. 

Kellan levou a mão ao ombro de Nathan, examinando-lhe o rosto com rapidez, mas Nathan apenas fez um gesto vago e irritado com a mão para indicar que tudo estava bem. 

— Vá se limpar — disse o loiro, relanceando a maca ao lado. A situação havia sido contida com cinco pessoas trabalhando no mesmo paciente e, claro, com uma dose direto na veia do homem. — Eu cuido disto. 

Nathaniel marchou até o vestiário com alguns itens abaixo do braço. Tomou alguns segundos para respirar fundo e acalmar-se, e foi só isso que bastou. Com mais calma, limpou o sangue que minava o nariz e escorria por seu rosto. Avaliou a situação, dando apenas algumas horas para que o nariz tomasse a coloração arroxeada, e poucos minutos para que o nariz terminasse de inchar. 

Suspirou pesadamente, ainda segurando um algodão nas narinas, já que seu corpo não colaborava e continuava a permitir o sangramento desnecessário.  

Nem ergueu os olhos dos pés, sentado em um dos bancos do vestiário, quando a porta se abriu. Perdido em pensamentos, demorou a encontrar os olhos esverdeados que tanto gostou de admirar. 

— Jill? — perguntou, levantando-se de forma automática. — O que faz aqui? 

Jill estava bem vestida, como sempre, e parecia recém ter saído do serviço. Era jornalista formada, e trabalhava detrás de um dos jornais da cidade. Os cabelos castanhos que Nathan sabia que formavam uma cascata de ondas estavam presos em um coque, deixando o pescoço magro à amostra, e os olhos castanho-esverdeados estavam contornados por uma maquiagem leve. 

Jill era deslumbrante. 

— Ah, meu deus! — exclamou ela, perdendo o sorriso carinhoso, ao perceber o estado do rosto de Nathaniel. — Nathan, o que houve com você? — Aproximou-se, preocupada, segurando seu rosto com as duas mãos. 

— Foi um acidente, nada demais. — Nathan deu de ombros, os olhos carinhosos percorrendo os detalhes no rosto dela. — Quanto tempo, hein, donzela? — Usou do apelido que a chamava desde o dia em que se conheceram, devido à uma brincadeira boba. 

Jill sorri, ainda analisando o ferimento com os olhos. — Quatro, cinco meses? — tentou, inclinando a cabeça. 

— Mais — afirmou o médico, rindo. — Como conseguiu chegar aqui sem ninguém te barrar? 

— Seu chefe gosta de mim — disse ela, convencida, ao lhe dar um soco de brincadeira no braço. 

— Todos gostam, Jill. 

O silêncio desconfortável repleto de olhares intensos acabou se repercurtindo por mais tempo que ambos gostariam. 

Nathan gostava muito da ex namorada. Fora apaixonado por Jill durante anos, e mais do que isto, a amara por anos. Jill sempre fora inteligente, sagaz, ambiciosa, bem-humorada e cheia de vida. Mais do que sua namorada, fora sua amiga. Sempre dizia que era sua alma gêmea, porque jamais deixaria de ser compatível com ela. Bastava olhá-la que um sorriso já lhe chegava ao rosto. 

Mas eles não sabiam conviver juntos. Gostavam ainda mais um do outro quando não precisavam se ver todas as semanas. Se deslumbravam ainda mais, como estavam agora, quanto mais tempo ficavam longe. 

Eram compatíveis um com o outro, como almas gêmeas, mas não eram compatíveis na convivência do dia a dia. Se desgastavam, se cansavam, se entristeciam. Demorou, mas conseguiram se dar conta do fato. 

— Bom — começou ela, quebrando o silêncio —, eu estava passando por aqui e pensei em dar um oi. 

— Ah, ok — murmurou Nathan, volvendo a sorrir. — Oi — disse calmamente, levando uma das mãos para acariciar-lhe o rosto. 

Jill fecha os olhos momentaneamente, aproveitando o contato, antes de volver a abri-los. Nathan mal havia encurtecido a distância entre eles e ela já sentia o coração bombear com força, por ele. 

— Senti sua falta. 

— Eu também — murmurou o médico, sincero. 

Jill e Nathan combinaram de encerrar o relacionamento cerca de um ano antes. Ainda assim, continuaram se vendo e se envolvendo mesmo após. Aliás, as coisas haviam melhorado com os encontros casuais que ocorriam de vez em quando. Então, o tempo que demoraram a se ver se estendeu, e se estendeu, e se estendeu. 

Nenhum dos dois reclamou, porque sabiam que era o melhor, mas então, ao depararem-se um com o outro, isso não parecia ter importância. 

— Sei que a gente combinou que... — começou Nathan, ainda preso pelo próprio corpo, impedindo-se de beijá-la como gostaria. Precisava de sua permissão pra cometer mais esse erro. — Bom, que... 

— Que não funcionamos juntos? — tentou ela, as comissuras de sua boca teimando em subir. 

Nathan ri, assentindo. — Bom, que não funcionamos em um relaiconamento — corrigiu, unindo um tanto as sobrancelhas. Os olhos se perderam em seu rosto, descendo para os lábios avermelhados que tanto gostava. — Mas se você quiser...

E Jill sabia o que ele queria dizer antes que ele terminasse a frase, já o conhecia virado do avesso. E afinal, aquele era o motivo que a impulsionou até ali, para vê-lo depois de tanto tempo. 

Sempre volviam a cair na mesma armadilha, impulsionada por um ou por outro. 

— Quero. 

Nathan abriu um sorriso largo, ignorando o pulsar do nariz com a ação, e não esperou mais nada antes de grudar a boca na de sua antiga namorada. Passou um dos braços em torno de sua cintura e grudou o corpo no dela, ouvindo um suspiro de sua parte. 

Sabia que haviam dado sorte de ninguém entrar no vestuário até aquele momento, então sabia que não podiam arriscar. Levou-a até um canto escondido do mesmo, grudando seu corpo na parede, e beijando-a como se não houvesse amanhã. 

Encerraram o beijo intenso assim que alguém abriu a porta, mas trataram de continuá-lo em seu apartamento. Nathan se retirou, terminando suas horas diárias no serviço e Jill o esperou em seu apartamento, levando a chave que ele a emprestou. 

O jantar foi deixado de lado, porque Nathaniel mal se fez presente no pequeno apartamento antes que se embolassem em amassos. Roupas foram jogadas para longe, e logo os dois acabaram caindo na cama de forma apressada. 

Havia pressa nos beijos, nos movimentos, nos gemidos. Havia pressa em ambos os corpos, acumulada durante meses, para que pudessem se encontrar novamente. Ao menos, era isto que Nathan pensara que houvera ocorrido. No momento do ato carnal, carregado de aflição por se unirem logo, Nathan não quis pensar em nada. 

O médico permitiu-se desligar a mente por apenas aquele momento, perdido no corpo que tanto conhecia de Jill. 

Quanto tempo fazia que não sentia o calor de outra pessoa desta forma?

Há mais de meio ano não se deixava afundar em outro ser humano em completa rendição, nem se deixava ser tocado intimamente, nem desfrutava do mais cru e puro prazer. 

Talvez isto estivesse deixando-o tão estressado, afinal. Ou ao menos contribuindo para sua irritação diária dentro do hospital. 

Estavam deitados, embolados um no outro, enquanto as respirações normalizavam aos poucos. Os olhares cravados no teto, as consciências voltando, e a lembrança de que o mundo ainda girava lá fora. E claro, a noção do tremendo erro que cometeram. 

Mas isso era assunto para refletirem nos dias que ficariam sem se ver, depois que Jill fosse embora e Nathan voltasse ao hospital. 

— Ah, Nathan, às vezes eu esqueço o que me fazia voltar sempre pra você... — murmurou ela, com um sorriso malicioso, ao enroscar-se no médico. 

Nathan ri. — É, a gente sabe transar — completou ele, levando um tapa no braço e rindo ainda mais. 

— Está nervoso? — perguntou ela, depois de alguns minutos em silêncio. Nathan franziu o cenho, baixando o olhar pra ela em interrogação. — Com a residência. Vai começar seu último ano — lembrou ela, mexendo em sua barba —, você fala disso há anos. 

Nathan a encarou pelo canto do olho, encontrando os olhos esverdeados em si. Deixou um riso sair pelo nariz. Convivera com aquela mulher por anos, fora sua amiga, e o conhecia de verdade. Ela não se esqueceria. 

— Não é grande coisa — mentiu, recebendo um estreitar de olhos por parte dela. — Sério. O que vem depois é que é importante. Minha vida de cirurgião só começa quando eu virar um atendente. Aí sim é que as coisas vão se... — Complicar, quisera dizer, engolindo em seco. — Ajeitar. 

Quiçá fosse melhor permanecer com a mente desligada, foi o que o médico cogitou. 

— Ah, Nathan... — suspirou ela, deixando um beijo em seu pescoço. — Não adianta ficar nervoso com antecedência. — Riu, mexendo em seus cabelos. — Mais vale é ficar feliz. Seu último ano como residente irá começar! — disse, animada. 

Jill sabia o quanto a medicina era importante para Nathan, afinal, muitas vezes se chateou justamente por ele preferiu o hospital do que ela. 

— É, pois é — riu ele também, se permitindo relaxar um pouco os ombros. 

Mas não durou muito. 

— E como estão as coisas em Cherub Field? — perguntou ela, lembrando das vagas e distantes lembranças que tinha dos Walker. — Seus pais estão bem? Não os vejo há mais de ano! — Deu-se conta. 

Nathan assentiu, deslizando os dedos pelas costas desnudas dela. — Sim. Tenho certeza que sentem sua falta — murmurou, deixando um beijo em sua testa. 

 Ela sorriu, assentindo, ainda brincando com seus cabelos. 

— E o garoto perdido? — perguntou, girando o rosto pro médico, ao lembrar-se de Lucca. 

Nathan demorou alguns segundos pra absorver a informação, ainda pensando nos pais. Mas quando o fez, uniu as sobrancelhas em desagrado, parando a mão que a acariciava. Virou pra ela, os lábios franzidos. 

— Não o chame assim. 

Jill piscou. — Todos o chamam assim... 

— Todos que não o conhecem. — Perdendo toda a paciência de se permitir desligar-se do mundo, Nathaniel sentou-se na cama, com rapidez. — Lucca não é um garoto perdido — continuou, percebendo que o estresse corria em sua direção novamente, como um híman. — Ele não está perdido. Não mais. 

Jill suspirou, de forma baixa, antes de sentar-se na cama também, subitamente aflita com a mudança de humor de Nathan. Mas que, de alguma forma, não lhe foi uma surpresa. 

Desde que o garoto apareceu, Jill aprendeu a andar em ovos perto de Nathan quando resolvia conversar a respeito disso. Às vezes seu rosto parecia iluminar ao falar do garoto, discursando sobre ele de maneira animada, mas na maioria das vezes ele apenas se incomodava quando ela trazia o assunto à tona. E cada vez mais. 

— Certo — tentou, nervosa. — Eu sei. Me desculpa — pediu, ciente de que chamá-lo assim realmente devia ser incômodo para quem o conhecia. Mas era uma jornalista, afinal, e sua mente funcionava como uma. — Como ele es...?

— Bem — interrompeu Nathan, girando as pernas até que os pés encontrassem o chão gelado. — Ele está bem. 

Nathan suspira de forma pesada, e Jill quase pôde enxergar o movimento dos pulmões ao observar as costas desnudas incharem e logo retraírem outra vez. 

— Nathan... 

Mas o médico sequer esperou um segundo depois de ouvir sua voz. Levantou com agilidade, passando a mão no pescoço para ver se os músculos relaxavam outra vez. Não. Sem sucesso.

— Preciso tomar banho — interrompeu uma possível fala de Jill, e sem olhar para trás, adentrou no banheiro e fechou a porta. 

Jill suspira, deixando-se cair na cama outra vez, passando uma das mãos pelo rosto. 

E assim, como em um passe de mágica, o pequeno castelo de papel que construíram ali, distantes do mundo lá fora, ruiu. 

Nathan entrou no chuveiro, esperando que a água o trouxesse à normalidade outra vez, mas apenas se decepcionou. Lavou os cabelos, sequer percebendo qual frasco havia pego. Esfregou o corpo quase com força, livrando-se do cheiro de sexo, perfume e loção provindos de Jill. 

Suspirou, colando a testa na parede de piso frio, sentindo a água escorrer por suas costas, por onde as mãos de Jill houveram deslizado, apertado, arranhado, minutos antes. 

Subitamente, sentia-se sujo. Impuro. Promíscuo. 

Todo o contrário do que Lucca representava. 

Maldita fossse Jill e os momentos inadequados que sempre escolhia para falar de Lucca! Era como se apenas após o sexo, deitados na cama, que a mente dela parecia iluminar-se com a lembrança do garoto. O seu garoto. O garoto que não estava e jamais volveria a estar perdido.

Justo no momento em que menos gostaria de pensar nele, ela o mencionava. Ainda mais sabendo que o próprio Lucca estivera naquela mesma cama meses antes, emburrado com a simples ideia de que Nathaniel estivesse ligado à Jill. 

Fechou os olhos. 

Pudera, talvez, que o incômodo que sentia na boca do estômago tivesse tudo a ver com Lucca. 


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Notas finais do capítulo

Dat is geen probleem: não tem problema/ tá tudo bem. (holandês)

CURIOSIDADE PROCÊS:
Inicialmente, por incrível que pareça, minha primeira ideia de nome para a fic era, realmente, O Garoto Perdido. Agora que penso a respeito parece bobo, porque ele não tava necessariamente perdido (embora todos estejamos perdidos no mundo de alguma forma), mas abandonado em um mundo que ele conhecia: as florestas. Mesmo assim, aí está uma curiosidade pra vocês! "Lucca" quase foi "O garoto perdido" e eu, particularmente, me alegro de ter cambiado isso! HAHAHAHAH.

#elenao

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam!



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