Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 16
XV. Inquietude


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura, folks! *-*



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Dezembro

O natal podia ter vários significados, para mais de uma religião, mesmo que boa parte das pessoas não soubessem do fato. Nathan não era o tipo de pessoa que frequentava igrejas ou orava antes de dormir, mas sempre levou o mesmo tipo de fé que sua família levava. Apesar de ser médico e acreditar fielmente na ciência, gostava de acreditar que a vida não podia ser só o que seus olhos eram capazes de enxergar.  

Ao começar seu trabalho no Hospital Oak Tree no primeiro ano de sua residência, o internato, descobriu da pior maneira que o Natal tinha um significado diferente em seu local de trabalho. Significava algo parecido como "o buraco negro da morte". Acidentes, suicídios, homicídios e tentativas de ambos, e ataques de doenças tomavam a área de emergência.  

Nestas datas, Nathan sentia certa amargura em seu peito pela profissão que escolhera.  

— Hora da morte: seis e quarenta e dois. — Nathan retirou as luvas com agilidade, já de mau humor por declarar a oitava morte do dia. — Você — chamou o interno que não teve a chance de decorar o nome —, por favor, avise a família responsável.  

Então, como um vulto irritado, saiu do cômodo em direção ao próximo paciente que chegava com um machado cravado em sua perna, gritando de dor. O médico sequer tinha tempo de tomar um ar ou chorar internamente antes que passasse para a próxima missão, mas achava melhor assim. Desta forma, não teria a chance de lamuriar o fato de estar cercado de dor e morte ao invés de estar na casa da família, cercado de amor.  

— O que temos? — perguntou a Kellan, que empurrava a maca em direção à uma área menos lotada do hospital, com o uniforme sujo de sangue, ao lado de dois internos.  

— Ryan Schmidt, trinta e três, esposa o atacou com um machado ao chegar em casa — explicou ele ao entrar em um cômodo próprio, obtendo uma sobrancelha arqueada de Nathan. — Traição e costumes bíblicos antigos — sussurrou ele ao inclinar-se para o moreno, fazendo-o sorrir.  

— Eu vou matar aquela filha da puta! — gritou o paciente assim que Nathan pôs as mãos em sua perna para analisar a extensão do ferimento. 

Com um suspiro, Nathan não pôde deixar de pensar que aquela seria uma longa noite.  

Seu quarto ano de residência, que começou no meio do ano, estava sendo o mais cansativo de todos. Trabalhava cerca de noventa horas por semana, incluídos os turnos extras, fora o tempo que tinha que dedicar ao próprio estudo. E ainda por cima, neste ano havia superado Gus no tempo em que passava em Cherub Field, o que devia ser impossível. Apesar de sempre haver visitado a família desde que deixara sua cidade natal com seus dezessete anos, nos últimos meses havia dado um jeito de visitá-los ao menos uma vez por semana. Estava bastante claro para si – e para todos - que o fato se devia quase que completamente a Lucca. Tentava passar a maior parte do tempo perto do garoto, assim como perto da família, para auxiliá-los no desenvolvimento do mesmo. 

No entanto, um maior número de visitas significava um maior número de viagens de três horas, ida e volta, o que resultava em não só um número escasso de tempo em seu próprio apartamento, como em um número inexistente de tempo livre. 

Estava exausto como nunca houvera estado.  

— Fim de semana então? — perguntou Abigail pelo telefone, um toque de dó pelo filho. Nathan confirmou, suspirando ao ouvir o som de sirene do lado de fora do hospital. — Você quer falar com Lucca?  

— Mãe, Lucca não confia em telefones — lembrou Nathan, sorrindo pelo fato.  

Havia tentado explicar como funcionavam os telefones, mas Lucca não entendera bulhufas de sua explicação.  O médico, então, desistira da ideia em pouco tempo. Evitava deixar o smartphone perto de Lucca, porque imaginou que, se um telefone residencial o assustava, a touchscreen devia pô-lo em pânico total. Testara sua teoria uma última vez na semana passada, percebendo que Lucca encarara o telefone ao ouvir a voz de Nigel através dele como se o mesmo fosse atacá-lo e engoli-lo. 

— Não se preocupe, conseguirei um tempo livre no fim de semana e irei até aí com os presentes. Mas terei que voltar no Ano Novo — continuou, ouvindo um suspiro da mãe. — Sinto muito — pediu, tentando um sorriso mesmo sabendo que ela não o veria. — Darei o meu melhor.  

— Tudo bem, Nathaniel — respondeu ela logo em seguida, desanimada. — Jill virá junto com você no fim de semana? Porque eu preciso saber, para arrumar os quartos dos seus irmãos.  

— A Jill não... Eu não... — Então, suspirou, colocando uma das mãos na cintura. — Eu não sei se ela irá junto, mãe. Te aviso assim que eu souber, está bem? — perguntou, avistando Russell ao longe, que lhe acenava para que voltasse ao seu posto. — Tenho que ir, mãe. Nos falamos depois! 

— Espera, Nathan! — Ouviu a mãe falar mais alto quando fez menção de desligar o celular. — Feliz natal, querido — desejou, com carinho. 

Nathan sorriu tristemente. Era o terceiro natal que passava longe da família. — Feliz natal, mamãe. Mande abraços para todos, sim? 

Ao passo que descia as escadas em direção ao seu superior e uma dúzia de pacientes, se repreendia por haver mantido em segredo por tanto tempo seu rompimento com Jill.

Apesar de haverem terminado a relação, e Jill haver se mudado do apartamento, continuaram a se encontrar quando tinham tempo. Encontros levavam a beijos que, por sua vez, levavam a sexo e estadias de Jill em sua residência que, no fim, acabavam por levar o rompimento de namoro à um beco sem saída. Nathan sequer sabia se era solteiro ou comprometido. Não que importasse, já que não tinha tempo para conhecer ninguém além dos próprios pacientes. 

Enquanto Nathaniel se preparava para mais uma cirurgia, o restante da família Walker tratava de se preparar para o jantar, espalhados pela casa. Estavam reunidos na sala de estar, tomada de gargalhadas e conversas paralelas. Edward viera do outro lado do país e Gabriel viera do outro lado do estado para o natal em família. Haviam vezes em que, Edward principalmente, não podia comparecer devido ao seu emprego, mas na maioria delas, eles conseguiam manter-se unidos durante toda a semana preciosa. 

Ed e Gabe estavam grudados nos pais, conversando abertamente com aquela saudade arrebatadora do tempo que passavam separados. Ed, com seus trinta e cinco anos, segurava a filha nos braços ao rir de uma piada do pai. Gabe estava abraçado na mãe com um sorriso no rosto enquanto a mesma tentava desvencilhar-se do mesmo com um riso ao tentar conversar com a esposa de Ed, Giselle. Giselle deixou para contar a novidade da gravidez, já de três meses, quando vieram à Cherub Field no natal. Estava esplêndida em seu vestido branco de renda e os cabelos castanhos soltos. 

Gabe, com trinta e dois anos, continuava solteiro e focado nos livros de economia que escrevia e publicava não só no país que viviam, como em toda a Europa. Era um homem sério de cabelos loiros e curtos, ao contrário das longas madeixas louras de Ed, que já havia estado em, pelo menos, quatro relacionamentos sérios ao longo de sua vida adulta. No entanto, perto de seus pais, agia de maneira parecida com a de Gus, e se recusava a deixar de sorrir ou de largar a mãe, apesar de seus protestos. 

Gloria havia deixado a cidade para passar a data com sua família, e como Lisa provavelmente estaria com a sua, a casa dos Walker ficou livre de qualquer envolvimento do caso de Lucca. Com exceção, é claro, do próprio garoto, que havia se recusado a ficar perto de tantas pessoas por tanto tempo e ficado em seu quarto. Gostava da família Walker, e olhando para os rostos de Ed e Gabe, percebendo que eram mais parecidos com os pais que os mais novos, achava impossível não gostar deles. No entanto, haviam limites para seu senso de segurança, e os limites começavam no volume alto em que o conjunto de vozes terminava.

Gus estava na área da frente de casa, com seu jeito despojado, conversando com a namorada baixinha que trouxera para a família conhecer, Caroline. Junto deles, estavam seu tio e a esposa, junto com o primo de dezessete anos que não tirava os olhos do celular, de forma entediada. Em torno deles, Sassenach pulava e latia, ao contrário de Lucca, feliz por haver tanto calor humano em uma residência só. 

Depois do jantar, e de muita insistência por parte de Gus, Lucca desceu para a sala de estar com relutância. Começara a nevar mais uma vez do lado de fora, e Lucca permaneceu próximo da janela para observá-la cair. Desviou a atenção somente para a imensa árvore de natal brilhante e, tomado de curiosidade, decidiu por fim perguntar do que se tratava tudo aquilo. 

— Por que as luzes? — perguntou a Gus, interrompendo a conversa do mesmo com sua namorada.

O mais velho arqueou as sobrancelhas, embora não estivesse tão surpreso pela pergunta. Afinal, na parte da manhã, Lucca havia perguntado o porquê de haver uma árvore grande dentro de casa. Virou o rosto para Caroline, que o encarava com o semblante pensativo, assim como ele.  

— Esta é uma ótima pergunta, Lucca — respondeu, ao dar-se conta de que não fazia ideia. Era o artista da família, e embora gostasse de luzes no geral e soubesse bastante sobre o Thomas Edison*, não fazia ideia da relação com o Natal em si. 

Lucca o encarou como se esperasse uma resposta, já que pensava que, se a pergunta era ótima, a resposta devia ser melhor ainda. Gus, ao perceber a espera, deixou-se rir com humor, encarando as orbes negras com carinho contido. 

— Eu não faço ideia do porquê — respondeu, rindo. — É símbolo da data, todo mundo usa a árvore iluminada, então... Acho que por costume, usamos também — tentou explicar, vendo que o rosto de Lucca ficava ainda mais confuso. — Mas o que importa é que ela é bonita, não? 

O garoto girou o rosto para a árvore mais uma vez, ficando um pouco tonto ao encarar as luzes piscando por tempo demais, mas apreciando a vista. Era curioso, para ele, o formato perfeito e triangular do pinheiro, e a forma como os diversos enfeites o deixavam bonito. Não haviam pinheiros perfeitos na floresta, geralmente eram distorcidos ou sequer tinham o formato triangular. No entanto, sim, a árvore com as luzes era bonita. 

— Bonita — murmurou, encarando as luzes até os olhos reclamarem. 

 

Assim que fora liberado pela parte da manhã do dia seguinte, Nathan resolveu dormir no próprio hospital, para que pudesse ter uma maior quantidade de sono. 

No fim de semana, retornou à cidade natal feito um zumbi, esperando que a família reunida amenizasse o gosto ruim que tinha na garganta da quantidade de morte que registrara e/ou presenciara no hospital. Chegou a tempo de passar o dia com os irmãos, Ed e Gabe, e a família do mais velho, antes que eles partissem no dia seguinte. Os dois, por serem Walker, talvez, também passaram a apreciar a peculiaridade de Lucca. Não se esforçaram muito em comunicar-se com o menor, no entanto, sabendo só de olhar que o mesmo ainda sentia-se em estado de alerta com os intrusos na sua nova casa.  

Assim, Nathan fora a única novidade da casa que permaneceu, em seu último dia que permaneceria do período de folga. 

— Duas semanas sem vê-lo e parece que ele cresceu uns cinco centímetros — falou para a mãe, com as sobrancelhas arqueadas, ao observar Lucca de longe, concentrado na folha de papel em sua frente.  

Abigail sorriu, assentindo ao seguir o olhar do filho.  

— Bom, desde a primeira consulta médica de Lucca até este mês, ele cresceu cerca de sete centímetros — contou ela, vendo o semblante surpreso do filho.  

— É mesmo? — perguntou, os olhos alargados ao dar-se conta de que nunca perguntara a respeito das consultas de todo mês. Sempre limitava-se a questionar apenas se estava tudo bem com os exames do menor.  

— Sim — respondeu, com um sorriso. — A médica disse que é mais difícil perceber, já que estamos de olho nele o tempo todo.  

Nathan assentiu, sorrindo.  

— E também — acrescentou Nigel, desviando o olhar da televisão para incluir-se na conversa —, é difícil Lucca permanecer muito tempo em pé para percebermos.  

— Isso é verdade. — Nathan respondeu no automático, a mente viajando em maneiras como poderia fazê-lo praticar mais atividades.  

— Ele está em fase de crescimento. Nesta idade, você já era maior que eu — contou ela, rindo da careta do filho. Então, lembrou-se do que a médica dissera a respeito de Lucca durante a consulta do mês. — A médica disse que, apesar da possibilidade genética, é mais provável que Lucca não tenha se desenvolvido de forma adequada por causa de sua alimentação — explicou, vendo Nathan assentir, sério, com o semblante que usava ao incorporar o médico em si. — Se ele estiver mesmo com seus catorze ou quinze anos, agora que têm se alimentado bem e que as doenças já tenham sido tratadas...  

— Não tem nada que o impeça de chegar à puberdade e continuar o crescimento ósseo, normalmente — completou Nathan, pensativo ao se dar conta de que não havia pensado a respeito desde que Lucca passara a viver ali. — Ele já deve estar produzindo o hormônio de crescimento na quantidade adequada — murmurou para si mesmo, obtendo um aceno da mãe.  

Sem desviar os olhos do garoto que fazia os exercícios de aula, Nathan perguntou-se qual seria a altura final de Lucca. Sempre assumiu que o menor fosse pequeno por genética, talvez devido à sua primeira impressão do mesmo, mas podia ser que estivesse enganado. Sabia que não tinha como Lucca ser tão alto quanto ele, mas ainda assim lhe permanecia a curiosidade.  

— Daqui um pouco, o garoto está maior que eu — disse para sobressaltar a mãe, sabendo que não poderia ser verdade.  

— Bate na madeira, Nathan! — exclamou ela, rindo com um tom de seriedade ao lembrar-se do estirão do filho. — Você se lembra de como era difícil encontrar roupas para você, não? Tinha que comprar roupa de adulto!  

Nathaniel riu alto. Lembrava-se perfeitamente do fato, já que ser o mais alto da turma o fazia sentir maneiro como um adulto, mas ao mesmo tempo, um gigante desengonçado. Não sabia qual das sensações se sobressaía.  

— Ei, pequeno — exclamou, interrompendo sua resposta à mãe ao avistar Lucca ao lado da porta —, tudo certo?  

Vestido com poucas roupas para o frio do inverno e ao mesmo tempo, com mais roupas do que já o tinha visto usar, Lucca permanecia em pé ao lado da porta de acesso à sala. Usava meias grossas, porque apesar de todo o esforço em fazê-lo usar calçados, não havia funcionado nada bem.  

— Terminei a tarefa — contou, depois de assentir, caminhando até sua poltrona preferida.  

Nigel estava sentado no sofá maior, já havia desistido da poltrona escura há muito tempo. Nathan sentou-se no mesmo sofá que o pai, ao lado de Lucca, lugar que também havia tomado para si, assim que a mãe deslocou-se até a cozinha para conversar com Gloria.  

A assistente social, com os dias já contados na cidade, estava prestes a viajar para sua cidade natal novamente, assim como no dia de ação de graças, para a virada do ano. Seu trabalho com Lucca chegava ao fim e no ano que se seguiria, voltaria apenas nas datas estipuladas, saindo do cronograma especial feito para Lucca e entrando no cronograma normal de qualquer adoção. A não ser que fosse chamada pela família ou enviada pela Dra. Clark, é claro.  

— Está gostando das aulas caseiras? — perguntou Nathan, observando o mais novo, vendo-o dar de ombros. — Se não estiver, podemos arranjar uma nova professora ou um novo professor.  

Lucca franziu o cenho, negando com a cabeça. Pode ser que achasse difícil aprender o que todo mundo aclamava ser muito importante, mas não era culpa da professora Bea que ele não gostasse tanto assim de repetir palavras em uma folha de papel.  

— O que você aprendeu hoje de manhã? — O médico decidiu perguntar, curioso.  

— Ciclo da água — respondeu, lembrando da forma com Bea detalhou o motivo pelo qual chovia e nevava de vez em quando.  

— É mesmo? — perguntou, aproximando-se mais de forma involuntária. — Isso é bacana, eu gostava muito das ciências da natureza no colégio. Ciclo da água... — murmurou, pensativo.  — Gosto bastante da chuva e da neve, mas eu não gosto muito de mar.  

Olhou feio para Nigel sobre o ombro, que atrapalhara a confissão do filho com um riso. Era ainda pequeno quando conheceu a praia pela primeira vez, e acabara afogando-se na beira do mar. Não durou tempo o suficiente para que ocorresse algo mais grave, mas fora o necessário para causar certo trauma persistente.  

— O que Nathaniel quer dizer, Lucca, é que ele tem medo do mar — explicou o pai, inclinando-se para frente para que pudesse encarar as sobrancelhas arqueadas de Lucca, escondido pelos ombros largos de Nathan.  

Nathan fez uma careta, negando com o rosto de forma silenciosa para Luca, de costas para o pai. Então, sorriu novamente ao perceber o indício de sorriso no rosto do menor. No entanto, o mesmo sumiu, dando lugar à um semblante pensativo.  

— Eu não conhece o mar — soltou em um murmúrio, inclinando a cabeça ao observar a expressão no rosto do médico mudar. Ficou surpreso e logo pensativo, para então encará-lo com uma expressão que Lucca não era capaz de identificar.  

— Nunca esteve em uma praia? — perguntou, o sorriso murcho ao dar-se conta de que isso era mesmo, na realidade, pouco provável. Lucca negou, os grandes olhos negros curiosos. — Sabe o que é um mar?  

— Sabe — respondeu no automático, logo percebendo o próprio erro. Mesmo assim, não quis se corrigir. Nathan sorriu minimamente.  

— Como? — perguntou, os olhos claros carinhosos.  

— Livro — respondeu Lucca, fazendo um gesto vago com a mão, talvez com o intuito de apontar para os livros da sala. — Fotos.  

Nathan assentiu, mas continuava com um aperto doloroso no peito. Não era algo tão terrível, percebeu, mas tudo que Lucca havia perdido durante sua vida remetia à sobrevivência precária que tivera durante todos aqueles anos. E imaginar como havia sido não era algo que o médico gostava de pensar.  

No entanto, ao perceber que Lucca sequer entendia a magnitude do que isto significava, relaxou os ombros. Se não houvera conhecido o mar, não entendia o que havia perdido. Talvez um dia viesse a compreender, mas demoraria um tempo, Nathan sabia em seu interior. Sem falar que, mesmo que Lucca viesse a se apaixonar pela beleza do oceano, não se lamentaria por não havê-lo feito antes. Lucca era, afinal, uma pessoa simples. 

Relanceou o pai antes de voltar os olhos para o garoto, sorrindo de forma completa ao engolir a sensação ruim.  

— Então, levaremos você para uma praia no verão — falou, percebendo que Lucca sequer se importava, apesar da curiosidade em seu olhar. — Talvez você tenha mais sorte com as ondas do que eu, mas estarei lá para te segurar, caso você também seja azarado — falou, com certo humor. 

Assistiram a televisão por um tempo, parando em um documentário sobre a diversidade animal, em silêncio. Nathan percebeu que Lucca gostava de assistir televisão, principalmente os desenhos animados. Imaginou qual seria o preconceito do menor com os celulares, já que ambos eram inovações tecnológicas. 

No entanto, a televisão devia ser monitorada, por conselhos de ambas Gloria e Lisa, devido à motivos óbvios. Procuravam sempre deixar programas educativos e desenhos animados, mas Lucca já pedira para que o canal de filmes fosse deixado, com os olhos alargados de curiosidade. O motivo foi a cena específica que congelara na tela durante os poucos segundos da troca de canais, onde o homem-aranha jogava teia por seus pulsos para deslocar-se de local em local. 

— Nathan? — chamou Nigel, depois que o documentário acabara e Nathan, a pedido de Lucca, colocara no canal onde passava o desenho do Bob Esponja. — Por que Jill não apareceu mais com você? 

A pergunta chamou a atenção de ambos Lucca e Nathan, deixando o médico apreensivo. Era bastante óbvio para si que não poderia guardar segredo por muito tempo, mas mesmo assim manteve sua boca fechada. Sentia-se um babaca. 

Nigel mantinha os olhos no jornal em suas mãos, mas a pergunta intrusiva fora feita porque a resposta era bastante previsível. Nathan sabia disso tanto quanto o pai. 

— Não estamos mais juntos — respondeu, focando os olhos no Lula Molusco. 

Nigel largou o jornal em suas mãos e virou o rosto para o filho, olhando por cima de seus óculos, observando suas reações. 

— Há quanto tempo? 

— Cerca de dois meses depois da aparição de Lucca — murmurou o médico, relanceando o menor com rapidez antes de olhar para o pai.

No fim de semana em que Lucca aparecera, a discussão com Jill parecia haver acabado seu relacionamento, mas nos dois meses que se seguiram, tentaram reatar sem muito êxito. 

Hum — resmungou o pai, voltando os olhos para o jornal. — Por que não nos contou antes, Nathaniel? 

 — Não sei — respondeu o médico, com honestidade. Sorriu amarelo para o olhar relanceado do pai, como um menino que acabou de aprontar. — Vocês gostam tanto dela, e nós tentamos resolver... Suponho que eu só não sabia como contá-los. 

Nigel deixou-se sorrir, balançando negativamente a cabeça com descrença. Às vezes, o filho se assemelhava bastante com uma criança desentendida. 

— Gostamos de Jill, mas gostamos ainda mais de sua felicidade — deixou claro, arqueando uma das sobrancelhas. — Não nos deve explicação sobre o rompimento, mas seria bom que nos contasse que terminou. 

— Tem razão — admitiu, com rapidez. — Tem razão, desculpa. Não irá acontecer de novo — completou, com um sorriso. 

— Crianças — resmungou Nigel com um riso, quase em um sussurro, voltando a atenção para seu jornal. 

Nathan arqueou a sobrancelha, prestes a perguntar quem era a criança a qual se referia - ora essa—, mas a voz ao seu lado chamou atenção. Lucca tinha as orbes escuras focados em Nathan, nem um pingo de atenção aos resmungos irritados de Lula Molusco. 

— Jill, sua namorada? — perguntou, os olhos curiosos. 

Apesar da surpresa, Nathan não demorou em dar-se conta de que, com certeza, seus pais falavam a respeito de si quando não estava por perto. Perguntou-se, por um instante, se havia algo sobre a família que Lucca ainda não soubesse. Pessoas quietas são observadoras, afinal de contas, como esponjas. Absorvem tudo ao seu redor.  

— Sim — respondeu, distraído, antes de acrescentar: — Jill era minha namorada, mas terminamos. 

O franzir do cenho de Lucca surgiu em um instante, aprofundando-se ao passo que tentava entender o que isso significava. 

— Não entende — disse ele, confuso, frase que passou a usar com tanta frequência quanto a palavra "não". 

— Claro que não — murmurou Nathan, com um sorriso. — Nem deveria — acrescentou, arqueando as sobrancelhas. — Quando você começar a namorar, deve ser com a pessoa certa, alguém com quem você queira passar o resto de sua vida ao lado. Alguém que faça seu coração bater muito rápido e continue a fazê-lo. Alguém que te faça sorrir sempre, mesmo que você esteja triste ou emburrado ou irritado. Assim, não vai precisar entender nunca o que um término de namoro significa — declarou, de forma carinhosa. 

Nathan tomou como acabado o assunto quando Lucca não fez mais perguntas, e voltou a atenção ao desenho preferido do garoto. No entanto, a ausência de perguntas não queria dizer que  Lucca deixara de pensar a respeito. Ficara com as palavras de Nathan rodando sua cabeça por tempo além do necessário. 

Lucca já sabia o que era namorar, ou achava que sabia, antes mesmo de conhecer o mundo afora da floresta. Conviveu com pessoas antes de sair do ambiente verde, mesmo que não falasse a respeito disto com ninguém. Não gostava de falar a respeito do que não gostava de lembrar, e definitivamente não gostava de lembrar de ninguém que chegou, algum dia, a conhecer. No entanto, descobriu ainda mais sobre o namoro das pessoas com a televisão.  

Peter Parker* era apaixonado por Mary Jane*, seja lá o que isso significava, no filme em que assistira. O que Lucca sabia era que, se ele estava apaixonado por ela, então isso significava que ela seria namorada dele. Sabia também que namorados encostavam os lábios entre si, em uma espécie de ritual que já vira algumas vezes em seu antigo lar. Não tinha nojo ao observar o ato, apenas achava curioso que alguém quisesse fazer tamanha esquisitice, ainda mais de ponta cabeça, como o homem-aranha o fizera.  

Lucca chegou a questionar-se, por um momento, se Nathan já havia beijado Jill de cabeça para baixo, e a ideia não lhe agradou nem um pouco. Chegou à conclusão de que não gostava que os outros fizessem coisas que ele não compreendia. 

No entanto, o que Nathan lhe dissera deu a entender que ele precisava namorar com alguém que gostasse muito. Afinal, Lucca só quereria passar sua vida inteira ao lado de alguém se gostasse muito desta pessoa. Se o ritual com beijo já era estranho por si só, então saber que acontecia entre pessoas que se gostavam muito, fazia menos sentido ainda. Por que alguém gostaria de fazer tamanha estranheza com a pessoa que gosta?

Gostava muito de todos da família Walker, bem como Gloria e Lisa, mas não sentia vontade alguma de encostar sua boca na boca de ninguém. 

— Lucca? — chamou o médico, estranhando os olhos desfocados do garoto. Era comum vê-lo alienado, mas não quando seu desenho favorito repercutia em sua frente.

O menor piscou algumas vezes ao voltar os olhos para Nathan, descendo-os para a boca do médico com curiosidade. Nathan arqueou as sobrancelhas quando o olhar baixo tornou-se fixo e a ruga entre as sobrancelhas de Lucca aumentou. 

— Qual o problema? — perguntou, confuso com a reação do garoto. 

Lucca piscou novamente, voltando a atenção aos olhos cor de amêndoas que tanto adorava. 

— Não vou ter namorada — declarou o garoto, sério, ao relaxar o rosto.

— Não? — perguntou ele, com certo humor. — Por que não? — perguntou, sorrindo, com curiosidade. 

— Porque não quero... fazer... — começou Lucca, mas por uma razão desconhecida para si, sentiu-se estranho ao explicar o motivo. Sentia-se sem graça. 

— Fazer o quê? — incitou o médico, a curiosidade aumentando. 

— O ritual — respondeu Lucca, como se fosse óbvio, deixando de lado o indício de vergonha que não compreendia. 

— Ritual? — perguntou o médico, pensando se seria muito inapropriado que começasse a rir antes de descobrir do que diabos o garoto falava. — Que ritual? 

A atenção de Nigel também havia sido fisgada e, mesmo que não pudessem ver, a das mulheres que conversavam na cozinha também, já em silêncio. 

— Beijo — respondeu Lucca, sem entender, ao lembrar-se do nome em inglês usado para o que namorados fazem.

Nathan estreitou os olhos, ficando mais tempo que o esperado em silêncio, tentando descobrir se ouvira mesmo o que pensara. Então, dez segundo depois do silêncio absoluto da casa, deixou-se romper em gargalhadas. 

Não sabia o que lhe parecia mais engraçado: o fato de Lucca continuar pensando a respeito do que lhe dissera, a seriedade em seu rosto ou a conclusão à qual chegara.  

O médico, por tudo que lhe era mais sagrado, tentou conter o riso para não deixar o garoto desconfortável, mas não conseguiu fazê-lo completamente. Percebeu, com muita surpresa, que a expressão surpresa de Lucca tornara-se aborrecida subitamente e os lábios do mesmo acabaram franzindo com chateação. O menor havia percebido que não gostava que Nathaniel se divertisse às custas de sua ignorância. Porque soube, no mesmo instante, que estava sendo ignorante, já que havia algo desconhecido para si a respeito do assunto. Sempre havia algo que não sabia quando não entendia uma piada, afinal. Não era totalmente burro, pensou. 

Nathan pediu desculpas em seguida, declarando que Lucca não precisaria nunca beijar ninguém, se não quisesse. Tentou explicar, em palavras que Lucca entenderia, que o beijo não era motivo para namoro, mas a consequência do mesmo, e que não era obrigatório acontecer. 

Ao perceber que os ombros do garoto relaxaram novamente, mudou de assunto, fazendo-lhe perguntas sobre os desenhos que mais gostava, além do desenho da esponja. No entanto, durante o resto do dia, percebeu que Lucca deixara seus olhos caírem para a boca do médico mais vezes do que podia contar. Podia perceber que Lucca ainda estava intrigado com o assunto e que apenas com o tempo esqueceria de vez.  

Apesar de sentir-se minimamente estranho com a situação, Nathan não deixou de sorrir com a mesma. Era notável que Lucca ficava atrás da cortina no que diz respeito à muita coisa da vida, mas estava aprendendo aos poucos, ainda mais com os questionamentos cada vez mais contínuos. 

No entanto, o médico não pôde evitar sentir-se agitado com a percepção da curiosidade de Lucca. O menor tinha essa gana de aprender o que não compreendia, e segundo o que o médico percebera, Lucca não compreendia o motivo dos beijos. E, se tudo desse certo e o desenvolvimento do garoto só melhorasse, ele acabaria aprendendo, cedo ou tarde. 

Nathan não soube dizer por que isso o deixava profundamente intrigado. 


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Notas finais do capítulo

Postando o capítulo agora, quatro horas antes da hora que tenho que acordar para ir na aula, ô beleza! Hahahha.

Ando meio assim, sem tempo, sem inspiração, sem planejamento... Sinto muito por isso! Quero reforçar que não vou abandonar a história e que, quando eu demoro pra atualizar, eu percebo e corro para terminar mais um capítulo, como eu fiz hoje. Eu tenho esse senso de pendência que, mesmo sendo um baita incômodo, às vezes é útil! Hhahaha.

Quanto aos reviews: peço desculpas se demorar a respondê-los! Podem ter certeza que, apesar disso, sem exceção alguma, eu sempre leio eles! Sempre entro aqui para dar uma olhadinha geral, e sempre leio todos antes de responder, porque sou carente, gente. Hahahah.
Sad, but true.

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! Beijo na bunda!



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