Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 11
X. Confiar


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! *-*



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Outubro

— Aqui, querido — disse a Sra. Abigail, abrindo a porta desgastada pelo tempo. — Seu mais novo quarto. 

Uma semana havia se passado desde que começara a locomoção na Delegacia de Doubleville, para a transferência de Lucca de volta a Cherub Field. A investigação acerca do garoto tomaria novas proporções e novos rumos, deixando todos estressados. Assim que tudo estava pronto, Hemming se disponibilizou a acompanhar Gloria e Lisa durante o trajeto de volta ao local de onde Lucca surgira. O carro tivera de ser parado mais vezes do que podiam contar, visto que Lucca aguentava no máximo meia hora dentro do mesmo antes de começar a agitar-se. O percurso, percorrido duas vezes mais devagar do que devia, não fora uma boa experiência para nenhum dos passageiros. 

Hemming encarregou-se de passar todas as informações necessárias de volta a Gerard e à pequena delegacia da cidade, para que eles pudessem continuar os interrogatórios com Lucca ao menos uma vez por mês. O agente deixou a cidade logo em seguida, intrigado com a ligação que recebera duas semanas antes e tratando de seguir a pista encontrada com afinco.  

Lisa instalou-se na casa de Gloria, disposta a acompanhar a adaptação de Lucca por algumas semanas antes de voltar para Doubleville. Gloria, no entanto, ficaria essas mesmas primeiras semanas na casa dos Walker, com Lucca, para auxiliá-los. Estava receosa com relação à família, visto que fora necessário quase um mês para que Lucca se adaptasse à Gloria e ao apartamento alugado da mesma em Doubleville. Tanto a assistente quanto a doutora não tinham certeza se, apesar de conectado aos Walker, o garoto se sentiria à vontade vivendo na casa dos mesmos.  

Lucca chegara na residência dos Walker alguns minutos antes de Abigail levá-lo até o segundo andar, abrindo a porta do antigo quarto de Nathaniel para que ele entrasse. O garoto, com o rosto desconfiado, enfiara primeiramente a cabeça para dentro do cômodo antes de entrar completamente, com o incentivo de Gloria. A assistente social segurava a mochila de cores militares que encontrara para o garoto, guardando tantas roupas quanto pudera comprar para ele com seu salário e o de Lisa.  

— Se quiser, é claro — continuou Abigail, ao lado do marido, Nigel. — Há mais dois quartos desocupados na casa, mas imaginei que você gostaria de ficar com o de Nathaniel.  

Lucca, caminhando em sua maneira peculiar, embora mais ereto do que alguns meses antes, locomoveu-se até o canto do quarto de Nathan, observando ao redor. Ficou parado entre uma estante cheia de livros e retratos, e o roupeiro da parede contrária. Os demais mantiveram-se no corredor, evitando entrar no cômodo e esperando alguma reação. Dois minutos se passaram antes que os outros quatro presentes se dessem conta de que o garoto ficaria encolhido ali por algum tempo, como era de se esperar por Gloria e Lisa. As mesmas se entreolharam antes de mirar o casal Walker, curiosos com relação ao ainda estranho comportamento de Lucca.  

— Não se preocupem com isto — pronunciou-se Lisa, chamando a atenção dos dois pares de olhos azuis. — Lucca não gosta muito da atenção voltada a ele.  

— Não quer dizer que ele não goste do local — emendou Gloria, sorrindo. — Ele ficou bastante tempo investigando meu apartamento antes de se adaptar também.  

— Devemos deixá-lo sozinho durante um tempo então? — Nigel perguntou, as rugas se intensificando em seu rosto. Era um homem relativamente forte, alto e robusto. Parecia mais novo do que seus sessenta anos indicavam.  

A psicóloga e a assistente social trocaram mais um olhar antes de negar de forma rápida.  

— Por enquanto, é melhor mantê-lo em seu campo de visão — disse Lisa, relanceando a porta aberta do quarto.  

— Lucca tem a tendência de tentar escapar — falou Gloria, divertida. — É um menino livre, como vocês podem imaginar.  

Abigail assentiu antes de colocar o rosto para dentro do quarto do filho, de forma semelhante à que Lucca fizera poucos minutos antes, procurando pelo mesmo. Verificou que o garoto ainda estava no vão entre as duas paredes, uma das mãos segurando a barra da camiseta de lã solta que usava. Os olhos escuros, antes presos em um retrato de Nathaniel na estante de cor cinza, voltaram-se para a mãe do médico com o cenho franzido.  

Ele realmente não queria a atenção nele, Abigail chegou à conclusão antes de voltar à sua posição anterior.  

— Bom — pigarreou a mulher mais velha, soltando um riso discreto —, vejo que ele continua silencioso como antes.  

— Não se preocupe, Sra. Walker — Lisa colocou uma das mãos no braço de Abigail. — Não vai demorar muito para vocês ouvirem a voz dele. Está claro que Lucca é quieto, mas ele têm se comunicado mais com o tempo.  

Gloria aproximou-se do casal, afastando-se um pouco da porta do quarto com eles para que Lucca não ouvisse. Lisa permaneceu parada ao lado da porta do antigo quarto de Nathan.  

— Não tem muito mistério — Gloria continuou, vendo a diversão no rosto do casal ao pronunciar a última palavra. — Lucca é muito simples — riu ela, explicando. — Se parecer que ele está com fome, por exemplo, é porque está. Se parecer impaciente, é porque está. Se parecer que está planejando escapar do apartamento pela janela — riu ela da lembrança —, é porque está.  

A Sra. Jones arqueou as sobrancelhas, dando-se conta que alguns segundos antes pudera comprovar ela mesma da teoria de Gloria. Sorriu com afeição, lembrando do rostinho agora limpo de Lucca.  

— Imagino que esteja correta, Srta. Jensen — disse ela, relanceando Lisa que ficara para trás com os olhos fixos dentro do quarto de Nathan. — Podia saber que ele não queria minha presença ali quando espiei um pouco. — Riu, relanceando o marido. — Podemos fazer isso, não é? — Perguntou a ele, vendo o arquear das sobrancelhas grossas. — Conseguiremos lidar com ele, não?  

— Não sei — respondeu Nigel de forma honesta, com um sorriso. — O que sei é que não deixaremos de tentar — concluiu, mirando Gloria também.  

O resto da tarde passou de forma rápida, ao passo que Lucca ainda investigava a casa com desconfiança e o casal Walker ouvia dicas e histórias a respeito do garoto. Planejaram o horário da consulta diária de Lisa, bem como a visita diária da professora encarregada da educação de Lucca.  

Fora descoberto, durante os meses em Doubleville, que Lucca não tinha noção alguma de escrita ou leitura. Não sabia o ano em que estavam nem nada do que acontecia pelo mundo. Seu próprio nome fora a única palavra que Lucca reconhecera na escrita, embora não pudesse escrevê-la sozinho. Sabia dizer a palavra "não" em mais de seis línguas. Curiosamente, a palavra "internet" causara um franzir profundo no meio de sua testa.   

Lisa tratava de contar os detalhes durante a janta, chamando a atenção dos olhos azuis do casal presos na irritação do garoto com os talheres.  

— Mesmo assim, Lucca têm uma grande facilidade em aprender coisas novas — continuava Lisa, entusiasmada —, o que nos deixa a concluir que sua dificuldade é normal. Cabe a mim chegar à conclusão de que, se Lucca não sabe ler ou escrever, é porque não lhe foi ensinado, simples assim. Falei com a professora encarregada dele para que pudesse começar com a leitura e focar nisto. Achei impressionante ele reconhecer o próprio nome, mesmo se ele já o tivesse visto antes... — Sua voz foi diminuindo aos poucos na última frase, também se distraindo com Lucca. Tomou uma pausa para focar os olhos claros no arroz espalhado ao lado do prato do garoto ao invés de estar dentro do mesmo.  

— Lucca — chamou Gloria ao perceber o silêncio da mesa, sorrindo. — Não precisa usar os talheres se não quiser, querido.  

O garoto ergueu o rosto rapidamente, franzindo mais ainda as sobrancelhas escuras. Fez um som parecido com um grunhido e juntou com os dedos todos os grãos de arroz que encontravam-se na mesa, colocando-os no prato novamente. Em seguida, juntou com irritação a colher mais uma vez e voltou a tentar comer com convicção. Desta vez, com mais cuidado, o fez de forma perfeita, embora irritado. 

Ao passo que Gloria reprimia o riso, ambos os queixos de Abigail e Nigel caíram.

Não é como se Lucca não soubesse usar os talheres, eles apenas o irritavam. Era verdade que sim, ele tivera alguma dificuldade com a ação durante as primeiras semanas em sociedade. No entanto, não demorou muito para que os usasse quase que perfeitamente. O dilema maior é que ele tinha de se concentrar para usá-los sem derrubar a comida para fora do prato e ele não costumava se concentrar para comer. Tampouco gostava. 

— Ele é teimoso — explicou Gloria em um sussurro. Havia descoberto da maneira mais prática que Lucca não gostava que duvidassem dele, muito menos que o dessem ordens. 

— Ele é persistente — corrigiu Lisa, rindo, também em um sussurro. Gloria ergueu uma das sobrancelhas com humor antes que Lisa suspirasse. Encarou os Walker antes de falar baixinho: — E também gosta de ser um pouco desobediente.  

Abigail riu, em junção do marido antes de pousar os olhos em Lucca, que agora comia normalmente.  

— Ele é inteligente — murmurou Abigail, impressionada. Apesar de saber que nenhum dos exames mostrara atraso mental em Lucca, era difícil acreditar que um garoto tão recluso e repleto de falhas educacionais pudesse ser funções neurológicas completamente normais.  

Assim que todos terminaram de jantar, Lucca desceu da cadeira e encolheu-se em um dos cantos da cozinha, os olhos perdidos. Os demais trataram de arrumar a mesa e organizar a cozinha, conversando tranquilamente a respeito de como seriam as próximas semanas.  

O som da campainha sobressaltara Lucca quase que imperceptivelmente, não fossem os olhos treinados de Gloria e Lisa. Simultaneamente, um sorriso se abrira no rosto de Abigail, que tratou de locomover-se até a sala com um murmúrio, de forma agilizada.

Abriu a porta com um sorriso de ponta a ponta, sabendo que encontraria os olhos cor de avelã do filho. Assim que deparou-se com as olheiras do mesmo, provindas das horas mal dormidas, jogou os braços dificultosamente ao redor do filho, como sempre fazia.  

— Nathan, está atrasado — tentou xingar ela, falhando miseravelmente devido ao sorriso. Considerava como uma das melhores sensações do mundo ter o filho nos braços depois de algum tempo longe. Afastou-se com o riso do filho, olhando para a rua rapidamente. — Seu irmão não veio com você?  

Nathan inclinou a cabeça levemente para olhar pela sala, procurando o garoto magricela, antes de voltá-los à mãe.  

— Não, ele disse que veio na semana passada — contou o médico, sorrindo. Entrou na casa, tirando a mochila das costas e pendurando a mesma na área dos casacos. Esfregou as mãos uma na outra antes de erguer as sobrancelhas com um entusiasmo que contrastava violentamente com as olheiras escuras. — E então, onde está meu paciente preferido?  

A mãe balançou a cabeça ao observar Nathan, sorrindo. Nunca o vira tão envolvido com ninguém desde que Gus chegara ao mundo. Levava o irmão mais novo para toda parte, não deixando ninguém encostar nele sem sua permissão. Se desesperava toda vez que o irmão caía e ralava o joelho e o observava dormir para se certificar de que tudo estava em ordem.  

Ed e Gabe riam de toda a atenção que Nathan dava para Gus, mas mal lembravam eles de que faziam o mesmo com Nathan quando pequenos. Nigel dizia que era um efeito dominó da família protetora por natureza.  

Assim que Gus chegou aos cinco anos, mais ou menos, Nathan baixou a guarda. O menor já não precisava de sua supervisão, já que podia muito bem aprontar alguma todo santo dia sem ajuda. Nathan deu-se conta de que não havia proteção no mundo fornecida ao irmão caçula que o impedisse de ralar os joelhos. Gus, talvez por ser mais novo, fora o mais arteiro dos quatro filhos homens.  

Observando Nathaniel agora, Abigail ponderava que a atenção e cuidado do filho para com Lucca eram o mesmo que dava a Gus, embora não completamente. A mulher de cabelos brancos sentia em seu âmago que isso não acabaria em alguns anos. Por Lucca não ser obrigação de seu filho como Gus era, ou por Lucca saber se virar sozinho - talvez desde antes de seus cinco anos de idade -, Abigail não sabia. No entanto, tinha a certeza de que a conexão dos dois era mais forte do que a simples ligação de um médico com seu paciente. 

Suspirou, indicando a sala com a mão, para onde Nathaniel prontamente se dirigiu depois de deixar um beijo no rosto da mulher mais uma vez.

As pernas longas percorreram o caminho rapidamente, parando na sala de estar ao se dar conta de que os quatro presentes já haviam se locomovido da cozinha até ali. Nathan abriu um sorriso enorme ao observar os olhos escuros de Lucca, alargados após enxergar o médico. 

— Lucca! — Nathan pronunciou-se, com entusiasmo. — Não achou que fosse se livrar de mim tão fácil, achou? 

Lisa arqueou as sobrancelhas ao ver o indício de sorriso no rosto do mais novo, surpresa. Sorrisos por parte de Lucca eram muito raros. Relanceou Gloria apenas para perceber que ela portava uma expressão semelhante à sua. Riu, levantando-se para cumprimentar um Nathan sorridente que vinha em sua direção. 

Após ser apresentado à Gloria e cumprimentar o pai, Nathaniel parou, com as mãos nos quadris, em frente à poltrona onde Lucca estava sentado. Sorriu ao perceber que ele estava sentado sobre as pernas no estofado, provavelmente descalço. Ao observar a calça de moletom e camisa de lã no garoto, percebeu que nunca o tinha visto com tanta roupa antes. 

— E então, Lucca? Abraços ainda não são permitidos? — Perguntou, sabendo que obteria uma negação não-verbal como resposta.

Lisa despediu-se logo após, partindo em direção à residência de Gloria. Os demais continuaram a conversa animada, sobretudo a respeito de Lucca, ao passo que Nathaniel mantinha uma conversa unilateral com o garoto. 

Não eram dez horas ainda quando Nathaniel prontificou-se de levar Lucca até seu antigo quarto para que ele pudesse dormir. Em uma conversa sussurrada e ligeira, Abigail avisou o filho a respeito das escapadas do garoto antes que eles pudessem subir as escadas. 

O casal e a assistente social foram deixados na sala sem um peso nas costas. Abigail e Nigel por estarem tensos e nervosos o dia inteiro referente à presença de Lucca e tudo o que o garoto implicava. Já Gloria, escorada no sofá com um suspiro, por estar encarregada do garoto cerca de vinte horas por dia durante os últimos meses. Como assistente social durante cerca de dez anos, nunca havia dado assistência à um garoto tão imprevisível e dificultoso quanto Lucca. Era um alívio para os três que Nathaniel pudesse estar a cargo do garoto durante todo o fim de semana, auxiliando-os na transição. 

— O que você achou do meu quarto? — Nathaniel perguntou depois de um tempo em silêncio no cômodo. 

Lucca já havia trocado de roupa e, dificultosamente, escovado os dentes. Parecia não ter muita prática com a segunda tarefa. Recusou-se a subir na antiga cama de Nathaniel, ficando de cócoras entre a mesma e o criado mudo, as mãos brincando com a meia dos pés. Nathaniel sentou-se na cadeira de balanço ao lado da janela, desistindo de conversar antes de abrir a boca novamente. 

— Se não gostar de ficar aqui, pode ficar com o quarto de algum dos meus irmãos — continuou Nathan, erguendo os ombros. — Já te contaram que tenho três deles? — Lucca manteve-se em silêncio. — Gus ainda vem pra cá e dorme em seu quarto, mas Ed e Gabe já são casados e moram longe — murmurou, lembrando dos irmãos que não via há quase um ano. — Ed tem uma filha de seis anos. Ou seria sete agora? — Perguntou a si mesmo antes de suspirar. — Não faço ideia, Lucca. Não faço ideia — concluiu ao encarar as órbitas escuras, rindo. 

Os olhos negros do jovem franzino mantiveram-se em Nathaniel o tempo todo, fazendo-o pensar que Lucca nem sequer piscava. Não tinha o cenho franzido, tampouco estava grudado na parede. O médico, então, achou seguro concluir de que ele estava confortável. Tinha o semblante tranquilo, da mesma forma que o tinha ao observar Nathan discursar sobre sua casa da árvore. 

— Minha casa da árvore foi destruída — contou ele, observando um leve arquear das sobrancelhas de Lucca. Sorriu em seguida, continuando a contar: — Eu cresci, fui para a faculdade e não a usei mais. A madeira ficou ruim devido à chuva, então para não causar nenhum acidente com visitas ou minha sobrinha, por exemplo, a casinha foi desmontada — falou, com um suspiro. 

Lucca desviou os olhos de Nathaniel para a janela ao seu lado. Em seguida, fez algo que não teria feito alguns meses antes: interação partida de si. Apontou com o dedo a árvore que podia ver da janela antes de abrir a boca pela primeira vez do dia. 

— Aquela? 

O sorriso que abriu no rosto de Nathan, iluminando os olhos amendoados, não foi reprimido. Ele balançou a cabeça negativamente antes de responder. 

— Não, não é aquela — respondeu, sorrindo. — Tem uma enorme lá nos fundos, te mostro amanhã. Era um pouco menor até, quando meu pai construiu a casinha — contou, lembrando do fatídico evento. Em seguida, arqueou as sobrancelhas ao focar os olhos, mais uma vez, em Lucca. — Eu poderia construir de novo, com a ajuda do meu pai. Claro — acrescentou, fazendo uma careta —, se você gostar de viver aqui e quiser ficar. Sei que você não é mais tão criança, mas acho que iria gostar de um esconderijo especial, não? — Perguntou, animado com a ideia. — A gente poderia construir e seria toda sua.

Nathan tentou decifrar por alguns minutos a expressão de Lucca. O menor manteve-se do mesmo jeito, alterando o olhar entre Nathan e a árvore que podia ver da janela. O topo da árvore, já que estava agachado. Um segundo mais e Nathan suspirou, rindo, derrotado. 

— Bom, poderemos decidir isso amanhã, depois que você ver minha árvore — falou, escorando as costas na poltrona. — Quer que eu saia agora para você dormir? 

O moreno balançou a cabeça, respondendo pela primeira vez sem hesitação. Não queria que Nathaniel saísse. 

— Não quer dormir? 

Mais uma vez, Lucca negou veemente com a cabeça. Nathan estreitou os olhos com certo humor. 

— Então o que você quer? — Perguntou Nathan, divertido. — Quer que eu continue a conversa unilateral? 

Lucca pareceu levemente confuso com a última palavra usada por Nathan, mas assentiu com a cabeça. Deixou escapar a palavra estrangeira, mesmo que nunca deixasse escapar nada, antes que se desse conta: 

Sí. 

 Nathaniel arqueou as sobrancelhas com surpresa. Sabia o que a simples palavra significava, porque aprendera um pouco do espanhol no colégio e nos artigos medicinais que tinha de ler, mas a surpresa demorou a passar. Sabia que Lucca falava outras línguas, já que a mãe lhe contara, seguida de Lisa, alguns dias depois. No entanto, ouví-lo pronunciá-las era diferente do que saber que ele tinha essa capacidade. 

— Se quer que eu continue a conversa, vai ter que me deixar ouvir sua voz mais vezes — falou, depois de se recuperar do choque inicial. — Sua voz é bonita, Lucca, devia usá-la. Sem falar que estou ficando cansado de falar tanto. Não acha justo que me responda com palavras também? 

Lucca franziu os lábios, dando de ombros, como se tivesse emburrado. A risada saiu da boca de Nathan antes que ele pudesse controlar. 

— Está bem. — Nathan riu, balançando a cabeça. — Tudo no seu tempo. Mas agora você tem que dormir — falou, levantando-se da poltrona e alongando os braços. Em seguida, ergueu uma das sobrancelhas ao perceber que Lucca estava da mesma forma. — Dormir na cama, é claro. 

Nathan esperou mais alguns instantes para ver se Lucca dava algum sinal de que subiria na cama. Suspirou ao perceber que não.

Pensando que não podia deixá-lo dormir no chão, Nathan caminhou até a porta com o intuito de chamar Gloria. Espiou o corredor, estreitando os olhos ao olhar ao redor. Fez uma careta, franzindo o cenho ao tentar ouvir se a conversa lá embaixo houvera cessado ou não. 

— Não quero — murmurou Lucca ao lado de Nathan, fazendo-o dar um pulo. Girou nos calcanhares para ver que o garoto estava há meio metro de si com o corpo quase ereto. — Sair. Você. Não quero. 

O médico franziu o cenho, recordando-se do que Lisa havia dito a respeito da concordância verbal e nominal das frases de Lucca. Entretanto, o intrigou o fato do menor não falar a frase inteira, usando palavras-chave. Ou ele não queria usar tanto a própria voz ou ele presumiu antecipadamente que erraria a sentença e preferiu abreviá-la. 

— Mas nós precisamos dormir — murmurou, ainda distraído com as palavras de Lucca. — Quer que eu durma aqui também? — Nathan perguntou, imaginando que era a única solução razoável. Queria muito interagir mais com Lucca, mas estava tão cansado que mal parava em pé. 

— Quero — respondeu o menor, prontamente. 

Nathan piscou algumas vezes, percebendo que quase completamente ereto, a cabeça de Lucca bateria em seu peito. Fechou os olhos com alívio ao perceber que estavam chegando em algum lugar com as palavras, afinal. 

— Então está resolvido — falou, sorrindo.  Ainda bem! Porque estou morto de cansado. — Riu sozinho, virando as costas antes de olhar por cima do ombro. — Venha, Lucca. Você vai me ajudar a trazer o colchão de Gabe. 

Caminhou até o quarto do irmão, seguido de um Lucca hesitante. Apesar de atrapalhado, o garoto o ajudou com o colchão, mesmo que ele não precisasse de ajuda. Chamou o menor com a intenção de não deixá-lo sozinho, como foi instruído a fazer.

Arrumou o colchão ao lado de sua antiga cama antes de tirar os calçados e o moletom. Ergueu a cabeça com o intuito de pedir que Lucca se deitasse na cama, mas o encontrou já debaixo das cobertas. O garoto de cabelos já compridos demais para seu tamanho, estava sentado de uma maneira que não parecia muito confortável para o médico, os olhos atentos em si. 

— Podemos dormir agora? — Nathan perguntou para se certificar, obtendo um aceno de cabeça. — Posso apagar a luz ou você dorme com ela acesa? 

Lucca fez uma careta antes de resmungar algo que ele não entendeu. Em seguida, murmurou: — Apaga. 

Nathan imaginou que a reação de Lucca se justificaria se ele realmente houvesse vivido na floresta. Estaria acostumado com o escuro e talvez ainda, incomodado pelas lâmpadas. 

O médico sorriu antes de arrastar os pés até o interruptor e voltar ao colchão improvisado, atirando-se no mesmo. Riu com alegria ao perceber que poderia finalmente fechar os olhos e dormir. Se Lucca houvera pedido que ele dormisse ali consigo, é porque não tentaria fugir. Pelo menos, tinha quase certeza de que não. Pôde enxergar, pela luz da lua que entrava na janela, a movimentação de sua antiga cama. 

— Boa noite, Lucca — murmurou ele ao perceber que o menor havia deitado. Mal ouviu a resposta antes de cair em um sono profundo, a respiração pesada devido ao extenso cansaço de seu corpo. 

— Boa noite, Nathaniel. — Houvera respondido Lucca em um murmúrio, com os olhos presos no rosto sereno do mais velho, tarde demais para que pudesse ser ouvido. 

O garoto franzino deslocou-se até o máximo que podia da cama, o mais próximo possível de Nathan que podia sem que caísse em cima do mesmo. Observou os traços do rosto do médico ao passo que o mesmo dormia. Tentava entender o homem de cabelos escuros, mas não conseguia. Franziu o cenho com a vulnerabilidade de Nathan, não sendo capaz de compreender o motivo de tamanha confiança em si por parte do médico. Afinal, Lucca não confiava em ninguém. 

Assim o pensava, ao menos. 

E assim o continuou pensando por longos minutos, antes que por fim, caísse no sono também. O rosto sereno e adormecido de Nathan era o que pairava em sua mente quando, por fim, deixou-se descansar pela primeira vez em muito tempo. 


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Notas finais do capítulo

Queria ressaltar que sou toda olhos para os reviews. E a opção de "editar capítulo" continua viável, então nunca é muito tarde para sugestões e/ou críticas.

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! Please? ♥



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