O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 7
Capítulo 7 – Novo estilo de caçada




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“Então Deus pediu um sacrifício de Abraão... – disse minha mãe.”

 

 

 

Valahia, 1456

 

 

— Vá embora — disse Vlad, jogando as correntes no chão.

Essas palavras ressoaram em minha mente por muito tempo. Por todo o momento em que fiquei caminhando saindo da catacumba, estava fraca, suja e machucada. Não restava muito de Lucy ali, apenas alguns pedaços que tive que carregar comigo. Nada como o tempo para recuperar as forças.

Assim que saí do castelo, caminhei pelo jardim antes da muralha. Lá encontrei dois vampiros próximos à fonte. Olhei para o lado esquerdo e mais cinco me olhavam curiosos. Eles sussurravam alguma coisa sobre mim, falavam sem tirar os olhos, como se já soubessem quem eu era. Parece que Shiva e Vlad não perderam tempo em começar a criar o Clã, sua família de predadores. Eu sigo pelo portão e caminho para a noite. Vou para a mata, preciso me alimentar de alguma forma. Não da forma que desejo, mas apenas o que preciso.

O pio da coruja corta os meus ouvidos, posso sentir o vento em minha orelha quando ela passa perto e ataca um pequeno roedor mais à minha frente. Ela destroça o pequeno animal ali mesmo, o devora sem nenhum pudor. Era assim que Vlad me queria? Eu percebo que não vou conseguir nada dessa forma, então me agacho e vou para onde a relva é mais alta. Começo a andar abaixada, cada vez mais silenciosa, ouvindo cada detalhe a minha volta. Sentindo o cheiro dos vivos e dos mortos, o apodrecer e a digestão da ave de rapina cada vez mais longe.

Então uma respiração me chama a atenção. Olho ao longe e vejo uma gazela, comendo a grama de forma atenta e devagar. Olho melhor para suas pernas e vejo mais um filhote pequeno, de olhos grandes e negros. Ele está desatento, come o gramado e depois pula ao lado da mãe, dando pequenos coices no ar. Encosto levemente meus dedos do pé, para então apoiar a sola e por fim o calcanhar. Cada passo é uma carícia no solo, o som abafado pelas folhas úmidas me permite me aproximar.

Ela pega um ramo de folhas verdes do chão, suas orelhas arredondadas estão baixas. Eu dou um passo. Seu dorso castanho com barriga branca se arrepia e sacode lateralmente até o rabo curto. Eu dou mais um passo. Ela pisca e lambe a cria que salta mais uma vez, o filhote lambe as próprias patas. Eu dou mais um passo. Ela mordisca a parte superior da perna até sua articulação e de repente, me olha.

Paramos ambas por um instante, se olhando, acho que ela não acredita no que vou fazer. Eu salto e a agarro pelo pescoço. Caímos ambas no chão, o filhote corre para o meio da relva enquanto eu cravo minhas garras nas costelas de sua mãe, ela se debate. Um gemido escapa de sua boca, suas patas tentam me atingir, acertando o meu joelho. Ele se quebra facilmente. Sinto grande dor, mas finalmente eu mordo sua jugular muito forte e arranco um naco de sua carne.

Uma abertura muito grande faz o sangue jorrar por todo o meu corpo, eu colo meus lábios na sua pelagem e bebo sua vida. Meu rosto está muito próximo dela, sei que ela pode me ouvir engolindo, tal como em minha noite de núpcias eu pude ouvir. Levanto os olhos e vejo o pequeno cervo me olhando a alguns metros de distância. Ele me assiste devorar sua mãe, em pensamento eu lhe peço desculpas. Mas apenas em pensamento. Agora, eu estou com sede.

No dia seguinte, chego na estrada, o sol bate em meu rosto e o cheiro do sangue no que resta de minha camisola se torna insuportável. Rapidamente meus pés ficam feridos, regenerarem e depois formam novos machucados com as pedras do chão. Dor e alívio; dor e alívio. Será assim para sempre?

Após algum tempo, finalmente uma carroça se aproxima. Nela, um homem conduz um cavalo cansado que leva consigo cereais, trouxas de roupas, uma mulher e sua criança. Ele para, chocado diante de minha figura.

— A Senhora está bem? Você foi atacada?

Eu levanto meus olhos e vejo que eles não me conhecem, não sentem medo de mim, mas horror pelo sofrimento que acham que me aconteceu.

— Sim... Vou até a casa de meus tios na próxima parada.

— Tem certeza que eles ainda estão lá? Todos recuaram pela peste.

— Peste?

— Muitos morreram, a vila está sendo abandonada. — Ele responde, sua mulher me olha com tristeza.

A criança esconde o rosto nos braços maternais. Uma vila abandonada me parece ótimo, não acho que eu vá ficar doente.

— Eu preciso ir até lá.

A mulher me entrega uma maçã de sua cesta.

— Aqui senhora, pelo menos tenha isso. O Senhor irá lhe recompensar por seu sofrimento.

— Obrigada, senhora.

Eles partem rapidamente, enquanto eu sigo por minha caminhada, comendo a saborosa e doce maçã. Ando por muitas horas, até depois do anoitecer, chegar em uma choupana. Bato na porta e não ouço nenhum movimento; não há fogo ou animais, tudo é um mórbido silêncio. Então eu entro e encontro um homem caído sobre a mesa da cozinha. Ele cortara os pulsos e o sangue seco no chão já é quase pó. Isso não incomoda o corvo que devora o seu ouvido, vermes também festejam, não os vejo, mas sei que estão presentes dentro de seu estômago. Posso ouvi-los.

Ando pela casa e encontro um jarro d’água, bebo diretamente na boca, sedenta pela caminhada.  Então sinto um outro cheiro. ando e encontro o quarto, uma cama de casal muito modesta é coberta pelo mosquiteiro. Estendo minha mão e afasto o tecido fino para encontrar uma mulher abraçada a uma criança. Morreram dormindo, suas pústulas negras mostram o terror dos últimos dias de vida. Eu fecho novamente o mosquiteiro e deixo o quarto.

Foi nessa choupana que me banhei e vesti o único vestido da mulher que encontrei. Acredito que só tinha aquele, além do que vestia quando faleceu. Cobri com lençóis cada membro da família e os enterrei na parte de trás da casa. Me alimentei e descansei por mais dois dias. Então, alguém bateu à porta. Logo pensei serem parentes dos mortos, mas uma voz familiar me clama.

— Lucy, eu sei que está aí.

Abro a porta devagar e vejo o rosto de Reinfild.

— Como me encontrou?

— Não sou um vampiro, mas sei rastrear um.

— O que você quer?

— Eu? Nada. Posso entrar?

­Olho ao longe conferindo se não há outras pessoas, mas, sinto apenas seu cavalo mastigando a parca relva. Então permito a sua entrada. Ele, repara no vestido um pouco curto demais que estou usando, a mulher da casa era mais baixa que eu. Ele vai até a cadeira e se senta à mesa.

— Vlad está sempre de olho.

— Deu pra notar. Mas foi ele mesmo quem me deixou partir.

— Exatamente. Ele deixou naquela hora, mas as coisas estão... mudando agora.

— O que quer dizer?

— Shiva está controlando algumas coisas e construindo um exército.

— O Clã.

— Exatamente.

— Era o que ele queria mesmo, pois que fique com sua família macabra.

— Não está entendendo, Shiva a quer morta.

— Tudo isso é ciúmes? Sequer casada sou mais com Vlad, sequer aconteceu... você deve saber.

— Acredito que ela também saiba. Mas mesmo assim, é uma questão de poder e de honra. Mesmo com ela sendo a esposa, ela não é uma Drácula.

— Do que está falando?

— Ela nunca terá o mesmo poder que você, força, agilidade, regeneração. Tu tens poderes que acredito que ainda nem mesmo conheça.

— Reinfild, eu nem sei o que acontecerá com minha alma. Eu nem sei como eu posso morrer com essa regeneração.

— Ainda não bebeu sangue humano, não é.

— E nem irei.

— Irá sim, uma hora você irá.

Fico desconfortável com suas afirmações, não quero mais esse homem na minha frente.

— Será que pode ir direto ao assunto? Porque está aqui?

— O Mestre Vlad me mandou aqui, me ordenou que eu lhe trouxesse algum dinheiro.

— Por acaso pareço interessada em dinheiro? Acha que alguma vez foi por isso que me interessei por ele?

— Ele sabe que não. Mas ele a quer longe de Shiva, ou ela irá encontrá-la, assim como eu.

— Eu não quero nada dele.

— Lady Lucy, eu peço que...

— NÃO ME CHAME ASSIM! — grito batendo na mesa. — Da última vez que me chamou assim, me entregou a ele como um animal para o abate!

Ele eleva as mãos pedindo calma, sabe que não sou mais a mesma que foi presa nas catacumbas, sabe que agora não aceito mais de cabeça baixa o que me dizem.

— Apenas aceite o dinheiro e vá para longe.

— Eu aceito o seu cavalo, e dinheiro o suficiente para um arco.

— Mas isso é...

— É o que me basta.

Ele percebe que não terá nada melhor de mim, sabe que eu também quero distância de todos eles. Ele balança a cabeça, tira um pequeno saco de moedas do bolso e coloca na mesa. Se levanta e passa por mim antes de sair pela porta. Lá ele massageia mais uma vez o dorso do animal de pelagem negra, muito belo e bem alimentado. Pega as bolsas de couro que estavam atadas á sela e vai embora em silêncio.

 

 

 

Botosani, 1458

 

Em dois anos, eu pude entender todas as minhas novas habilidades. A caça nunca fora tão fácil. Rapidamente, vi que podia ser mais que isso e fui para um vilarejo mais ao longe do reino da Moldávia. Pelo menos lá eu não chamaria a atenção pela falta da cicatriz.

Eu vivia como antes, caçava de manhã, tirava a pele, secava a carne, cozinhava a vísceras e levava os produtos para a feira todos os dias. Agora era sozinha, mas conseguia caçar dois cervos em um dia, frequentemente trazia javalis e não me preocupava mais com lebres e serpentes. O mercante estranhava, eu não dava muitas respostas como conseguira tanta carne, eles desconfiavam que eu tinha alguma ajuda. Eu chamava atenção, e era algo que eu não queria, naquela época todos eram muito ignorantes nesse aspecto. Mais ainda por um rosto bonito que fazia com que me olhassem diferente, algo que eu não estava acostumada.

Certa vez, retornando de mais um dia de vendas estava colocando as compras em minha carroça, cevada, aveia, queijo e frutas. Quando dois mercantes se aproximaram, eles fediam a cerveja de trigo e batatas cozidas.

— É verdade que mora sozinha, caçadora? — Um deles me questiona, eu não respondo, continuo de costas.

— É muito calada para uma Lady e muito bonita para uma mulher de caça. — fala o outro já se aproximando.

— Acha que é retardada? Aquelas amaldiçoadas?

— Deve ser, só o demônio faria alguma coisa tão bonita para nos tentar. — Ele se aproxima e passa a mão em minhas ancas, outro tenta me cercar lateralmente.

Me viro dando uma cotovelada no rosto do primeiro. O segundo me soca o rosto, mas eu mal sinto o peso de sua mão. Eu o soco de volta, ele se desequilibra para trás, mais dois socos e ele cai no chão. O primeiro retorna batendo em minha cabeça com um pedaço de pau, que se quebra em pedaços na sua mão. Eu seguro seu pescoço e o levanto, o carrego até a lateral da carroça apertando sua garganta. Sinto o outro me esfaquear, eu continuo apertando. Seu rosto está vermelho e sinto outra facada em minhas costas.

— Para, vagabunda! — grita desesperado o homem atrás de mim.

Eu continuo apertando o pescoço do homem, ele fica azulado e lábios entreabertos, muito parecido com o de minha mãe. Penso no rosto dela abandonado no chão da cozinha, no que fizeram comigo quando criança, sempre malditos ignorantes que julgam uma mulher com alguma independência ou conhecimento. Sei que o outro homem está me golpeando, mas eu mal sinto os cortes. Algo em mim muda ao ver o rosto muito pálido do homem a minha frente, seus olhos virados me indicam que eu posso parar de apertar.

Solto o pescoço dele, deixando-o cair no chão. O outro tenta se afastar gritando profanações, eu me viro de uma vez, cortando sua garganta com minhas unhas. Ele ainda balbucia alguma coisa indecifrável antes de cair de joelhos e depois no chão. Reparo que minhas unhas na verdade projetaram garras, fortes, curvadas e afiadas. Me concentro e consigo recuá-las na minha mão novamente, estava distraída quando percebo que estou sendo observada por um nobre de cabelos negros em seu cavalo. Ele não fala nada e apenas assiste tudo ao longe, eu me viro, subo em minha carroça e vou embora.

No dia seguinte no mercado, o nobre que me observara me encontra entre as barracas. Apesar de eu me afastar ele indica com suas mãos que quer conversar.

— Se acalme, mulher. Não quero te fazer nenhuma mal.

Avalio o senhor de baixo acima, reparo agora em duas entradas no alto de sua cabeleira enegrecida, queixo proeminente e olhos grandes e negros. Sua túnica longa vai até o pé, um traje de cor única em verde e azul, uma saliência indica uma barriga proeminente, detalhes laterais em prata, segura uma argola de contas em sua mão direita. São roupas estranhas para um romeno.

— Eu fiquei impressionado com o que vi. Quero te fazer uma proposta.

— Eu não faço isso.

Ele arregala os olhos e gesticula.

— Não, espera. Não era isso que eu estou... é de segurança. Preciso de alguém que possa me defender quando eu precisar, e assustar outros também quando eu quiser.

— Não sei se sou o tipo de pessoa que procura.

— É exatamente o tipo que preciso. Da última vez contratei um homem muito robusto, ele assustava os negociantes. Prefiro que isso ocorra de forma mais controlada, discreta. Garanto que pagarei bem por isso.

Ele fala estranho, seu sotaque o entrega como estrangeiro.

— De onde você é?

— Desculpe-me, permita eu me apresentar. Sou Perseu, comerciante e agiota, vim do Oriente.

— Da Pérsia, você quer dizer.

Ele se aproxima de meu rosto, e sussurra.

— Então sabe porque preciso de um bom guarda-costas. Infelizmente nem todos gostam de meus negócios, ou de minhas raízes.

— Entendo. Não seria mais fácil voltar a sua terra natal, onde pode ficar com maior tranquilidade?

— Sabe que a guerra continua avançando, vitoriosos ou perdedores, sempre sobra para os vilarejos de fronteira.

E realmente era um bom valor para intimidar aqueles que não pagassem os empréstimos, as vezes matava os animais, as vezes as pessoas. Em um ano ele nunca atrasara o pagamento e eu nunca falhava com seus pedidos. Ele não sabia o que eu era, ele nunca perguntou, mas acho que isso não o preocupava, se interessava apenas nas minhas habilidades, ou pelo menos no início. Foi em uma das noites que eu salvara a sua vida de um assassino em que ele me pagou generosamente. Mesmo sendo um pecado na sua religião, ele bebeu muito para comemorar e me ofereceu vinho para que eu aproveitasse a noite também. Timidamente ele se aproximou de mim, me deu um beijo em meus lábios e logo depois recuou.

— Me desculpe, eu não queria ofendê-la...

Eu segurei o seu rosto e o beijei de volta. Aquela noite fria foi a primeira vez que me deitei com um homem. Um que me desejava por minha força e não por minha fraqueza, ele apagou as velas do quarto para nós, afinal, seu corpo não era jovem como o meu. Isso não me preocupou, na verdade, eu aceitei sua barriga, sua falta de cabelos e presença de rugas. Em troca, ele aceitou a minha monstruosidade. Ele foi doce, me tocava com a suavidade que agora vejo que Vlad nunca teve, percebi que isso era algo que eu poderia chamar de amor. Acredito que ele me amava e, quando fiquei com ele, passei a amá-lo também.

 

 

 

Londres, 1459

 

Após a morte de Perseu, que não deixara filhos, herdei uma considerável fortuna. Viajei para a Inglaterra, em Londres nunca me faltava trabalho, é claro que tentaram me envenenar, cortar, enforcar, mas tudo apenas me causava uma breve sonolência. Eu me alimentava apenas de animais, era o suficiente, o que bastava, eu somente matei quando era paga para isso.

Foi então que tudo mudou, em uma tarde no Museu de Londres. Eu estava observando um quadro, parece que agora era aceitável ver uma obra contando uma religião diferente. Uma com diversos deuses andando nus e fornicando uns com os outros. Algo tão profano para mim, era ao mesmo tempo encantador. Os tecidos foram desenhados de tal forma que era possível ver cada flor, cada nuance adornando o corpo dos magníficos seres. Enquanto estava hipnotizada no quadro sinto um homem muito bonito se aproximar.

— “A Primavera”, de Sandro Botticelli. É mesmo encantador não acha?

— Sim, é mesmo muito bonito. — respondo olhando para o homem ao meu lado.

Seu rosto alongado de pele alva, olhos grandes e azuis acinzentados, cabelos pretos levemente ondulados, me prende a atenção agora. Eu sorrio.

— Há mais destes se quiser conhecer.

— Desculpe, trabalha aqui no Museu?

— Ah sim, trabalho. Permita-me lhe acompanhar nessa rota Lady...

— Lucy Iordache.

— Que nome exótico. Não é daqui.

— Não, sou da Romênia.

— Isso tão intrigante. — fala ele sorrindo. De repente sinto um leve enjoo e levo minha mão a boca.

— Nossa, que estranho.

— O que foi?

— Um mal-estar.

­— Ahhh sim, deve ser o cheiro de formol de minhas mãos, me desculpe. Hoje de manhã estava na ala de antiguidades.

Ele fala sorrindo, quase que lamentando pela situação. Então me estende o braço para que eu o acompanhe.

— Por favor, eu lhe conto mais do artista italiano se me contar de sua terra.

— Adoraria, senhor...

— Dorian Gregory. Mas pode me chamar de Dorian Gray.


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