O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 6
Capítulo 6 – Antes de nascer, é preciso morrer




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“Todos nós iremos devorar e sermos devorados. É só uma questão de quando e por quem.” – James Franklin Clinton

 

 

 

Valahia, 1456

 

 

Quando acordo ainda estou atordoada, presa a cama ouço Vlad falando baixo com alguém. Esse outro homem está afastado e sua forma parece uma penumbra que não fica estável.

— Achei que tivesse falado com ela antes de transforma-la.

— Isso não importa. Ela me deu, eu faço o que quiser com o que me pertence.

— Não é assim que funciona na nossa visão, Vlad. Regras morais dos mortais não são sempre válidas no meu reino, no meu registro. Se você falar com calma, talvez ela aceite.

— Ela não tem que aceitar, tem que obedecer a minhas ordens.

A figura responde com um murmuro.

— Estranho, achei que tivesse escolhido por um motivo diferente. Eu mesmo sugeri por...

— Ela aguenta. Eu não quero pegar leve!

A figura parece não gostar muito da resposta. Eu movo meus braços na cama percebendo que estou acorrentada em meus pulsos que firmam contra a cabeceira de madeira. Ao fazer o ruído a figura vira seus olhos para mim e rapidamente desaparece em um vulto esverdeado. Vlad também vira para mim, bufando.

— Vamos recomeçar. — fala levando as mãos à cabeça enquanto se aproxima de mim —, você saiu sem que eu pudesse dizer tudo. Desculpe, eu estava ansioso por nós, eu queria ser romântico, acho que entende isso.

— Você mentiu pra mim, Vlad.

— EU FIZ TUDO POR VOCÊ! — Ele grita enquanto arremessa a taça de vinho na parede — Eu me aproximei como cavaleiro cortês, ignorei a sua miséria, a sua burrice. Tua cicatriz, Lucy era o menor dos problemas, você era uma xucra que mal sabia usar talheres! Era um animal! E agora, você é elegante, bem vestida, sabe andar e caminhar. É uma lince no meio da relva, linda e poderosa. MAS AINDA É UM ANIMAL!

Eu arranco a cabeceira da cama que me imobilizava, saio da cama, vou até o meio do quarto de pé a ele.

— Se sou um animal foi você quem criou, você quem escolheu!

Ele sorri ao me ver em pé.

— Está ficando mais forte... não sente isso? Aposto que já vê o pulsar deles, os outros são as nossas presas agora, você já os olha diferente... Reinfild a encontrou desmaiada do lado de fora, está consumindo rápido. Talvez seja melhor você se alimentar logo.

— Me alimentar?

— De sangue, Lucy. Sangue fresco.

— Não vou ser um monstro como você, Vlad.

— Tarde demais para isso.

— Isso não está certo... isso...

— Quem você acha que vingou seu pai, Lucy? — dispara ele.

Eu recuo e miro os olhos dele.

— Os homens da taverna? Foi você? — Fico andando de um lado a outro, não quero aceitar. — Você é um assassino, Vlad.

— Não seja tola, somos todos assassinos, desde o momento que nascemos. Nós matamos para comer, para viver, matamos em nome da Cruz... — Ele se aproxima de mim —, eu apenas sou mais franco e me alimento do que mato também.

Bato com toda força com as correntes em seu rosto, ele permanece em pé, volta o rosto a mim e vejo tua face quebrada se regenerar. Ele me dá um tapa com as costas da mão, eu caio no chão com o nariz em sangue.

— O bom de você regenerar, Lucy, é que não vou precisar pegar leve com você. — Ele fala se abaixando para mim, eu cuspo em seu rosto. Ele me fuzila com o olhar. — Vamos dar um tempo a você, então. Parece que eu me precipitei.

Reinfild entra rapidamente, ele me levanta pelos braços, eu solto uma das mãos e arranho seu rosto, mas ele se regenera de forma diferente. Dos três cortes em sua face cai um pó fino como areia, rapidamente fechando a abertura, ele me carrega me jogando em seu ombro. Vlad ordena que me leve ao cômodo, onde eu possa pensar.

 

 

 

*********

 

A pedra úmida e fria não me incomoda, posso ouvir o pingar de uma infiltração ao fundo ecoar no cômodo escuro. O local em breu deixa um único feixe de luz atravessar vindo por debaixo da porta que dá na cozinha. Ela fica no alto após uma longa escadaria, eu estou na parte baixa, em minha cama de pedras cinzas. Ao me mexer as correntes de meus pulsos fazem estrondoso barulho, me incomoda, então não me mexo, permaneço deitada sobre o lado esquerdo.

Na minha frente, a parede de pedras tem uma pequena mancha verde de musgo, são poucos centímetros de vida além de mim no local. Fico pensando nas caçadas com meu pai, tenho poucas lembranças de minha mãe, passo os dedos em meu rosto lembrando como era a grande cicatriz que tanto me envergonhava. Fico lembrando meu pai assustado quando me viu a primeira vez, ele tentou juntar meus pedaços como pôde, fisicamente também.

A porta se abre, Reinfild desce as escadas, chega próximo aonde estou deitada, se abaixa colocando no chão a tigela de comida. Cordeiro com arroz e frutas, um copo de água ao lado, levanta-se e vai embora. Eu permaneço deitada, fecho os olhos sentindo o cheiro da comida, fico lá. Tempos depois, a porta se abre novamente e Reinfild desce e recolhe a comida e água intocados. Isso acontece novamente, e de novo, e de novo.

 

 

 

 

— Seja implacável e generosa. — fala meu pai.

Olho para o cervo em agonia, o acalmo e aprofundo a adaga em seu coração. Vejo eu matando meu pai, a grande parede de fogo ao fundo da noite densa e negra, o rugido do fogo consumindo minha casa, minha história, não me restava nada. Nada além de Vlad, ele era tudo o que me sobrara.

Acordo, a porta se abre, Reinfild desce as escadas, deixa água, comida e vai embora.

 

 

 

 

 Vlad me entrega uma caixa forrada em veludo vermelho, uma linda pedra verde escura atada a uma larga fita de veludo negro. Sinto um arrepio na pele quando ele ata a gargantilha atrás de meu pescoço. Ele se aproxima sorrateiramente muito próximo a minha pele, me farejando. Ele me beija e sinto suas presas passarem em minha pele, eu estou entorpecida de prazer, seu toque, eu o amo. Ele puxa o meu rosto e me beija os lábios, sinto um filete de sangue quente descer entre nossas bocas, ele escorre até entre meus seios.

Acordo com a porta sendo aberta, passos descem as escadas e Vlad senta-se ao meu lado na pedra. Eu permaneço parada e de costas para ele, fico olhando a parede úmida a minha frente.

— Não precisa ser desse jeito, Lucy. Nós somos casados, era para sermos parceiros, cúmplices um do outro. Acha que se eu tivesse lhe contado tudo você teria aceitado? Teria ficado? A muito tempo sinto falta de uma companhia.

Eu permaneço em silêncio. O musgo a minha frente crescera cobrindo três tijolos, ele tem as beiradas mais claras e o centro mais escuro. Todo ele tem textura macia e felpuda.

— Lucy, por favor, fale alguma coisa. Qualquer coisa...

Com o meu silêncio ele tira o lenço que recobre uma taça que trouxe consigo. O cheiro de sangue levanta e me desperta ainda mais os sentidos.

— Você precisa se alimentar, completar o ritual. Eu lhe trarei dessa forma, não precisa morder alguém, eu lhe trago assim você pode... Lucy. Está me ouvindo?

Ele deixa a taça macabra no chão, passa a mão nos meus cabelos, se levanta e vai embora. Eu não me movo, continuo observando o musgo, tempos depois Reinfild abre a porta, pega a taça intocada e vai embora.

 

 

 

 

O pingar da infiltração é constante, eu permaneço deitada quase que o tempo todo voltada para a parede. Assim fico contando quantos tijolos o musgo já cobriu, agora são oito. É bonito ver a variação de suas cores, mas meu braço está dormente então me viro, e suspiro concentrando meu olhar para o pequeno feixe de luz da escadaria. Aos poucos meus olhos se ajustam a escuridão e noto na base da escada os dois pontos amarelos brilhantes.

— É você! O que está fazendo aqui? Não percebi quando entrou.

Os olhos parecem surpresos de terem sido flagrados, ele olha para o lado antes de responder.

— Eu não queria incomodar. Se você preferir que te deixe sozinha...

— Não, tudo bem. — respondo, sem me mexer de minha cama de pedras. — Então, você é amigo de Vlad?

Os olhos parecem franzir o cenho em desaprovação.

— Eu não chamaria assim.

— E do que chamaria então?

— Temos negócios. Apenas isso, trabalho.

— Acho que não fomos apresentados na festa.

— Não, realmente não. — A figura olha em torno pensativa, mal consigo notar algum contorno no escuro. — Você se importaria se eu me aproximasse?

— Não, é claro que não. — digo fazendo menção que posso me levantar. — A não ser que você se importe de eu não estar exatamente em um traje de gala.

— Não me importo, é claro.

A figura dá um passo para o ambiente mais iluminado, mas para por um instante, parece pensar em algo. Então um som vem, uma neblina esverdeada aparece e os olhos parecem ter diminuído pelo menos meio metro de altura, surgindo da escuridão um homem em trajes nobres. Seus cabelos cacheados são desenhados pela pouca luz, sua pele amendoada define um rosto bem torneado. Alto e esguio, noto que apesar dos trajes bem cortados não há luxo, brocados ou couro. É muito mais tecido em verde e preto, e para minha surpresa suas calças estão poídas e seus pés descalços andam despretensioso no chão úmido de pedra.

Ele anda devagar, puxa a cadeira que em alguns momentos Vlad ou mesmo Reinfild se sentaram. Eu me ajeitei sentada na minha cama gélida e primitiva, confesso que fiquei um pouco constrangida ao notar que ainda visto a mesma camisola manchada de semanas atrás.

— É um prazer conhece-la finalmente, Lucy. — ele diz curvando-se como um cavalheiro.

— Obrigada...

— Mefistófeles.

Olho confusa por um segundo.

— O diabo?

Ele ri por um instante, como se tivesse ouvido alguém falando um palavrão.

— Isso é uma forma rude... diabo é apenas o apelido para um de meus irmãos. Somos muitos, cada um cuida de sua função. Mas claro, também serve me chamar de diabo, se assim preferir.

— Mefistófeles então.

— Mefisto está bom. As formalidades são desnecessárias.

— E qual é a sua função? Disse que cada um cuida...

Ele suspira antes de se sentar e cruzar as pernas.

— Negócios. Como eu disse. Eu sou quem cuida da compra e venda de almas, registros. Bom... alguém tem que cuidar da papelada. — diz ele em tom aborrecido enquanto balança o pé sujo a frente.

— Entendo. Então tem negócios com Vlad, trabalha para ele?

Ele olha como se eu o tivesse ofendido.

— Não, definitivamente. Está mais para a situação contrária... mas, eu não devo expor cada contrato... se não se importa...

— Ah, claro. Me desculpe. Na verdade, eu queria saber por que estava aqui.

Ele me fita com seus grandes olhos amarelos e finalmente percebo que eles são com as pupilas fendadas tal como a de uma serpente. A fenda se abre se ajustando a minha visão.

— Estava curioso. Queria saber por que não aceitou a transformação, estou intrigado que até agora não tenha tomado nenhuma taça de... não tenha completado sua transformação.

— Eu deveria?

— Claro, você já tem os poderes, já está condenada. O que mais poderia fazer?

— E se eu não quiser?

— Não tome. Mas uma hora ou outra terá que fazer isso. Ou morrerá e está condenada de qualquer maneira.

— Por que estou condenada?

Ele suspira, olha de lado como se tivesse que dizer que é óbvio que o céu é azul.

— Você vendeu sua alma. Ganhou os poderes. Não aceitamos devoluções. — ele gesticula com as mãos abrindo seus longos dedos e deixando exibir as garras curtas.

— Eu vendi?

Ele se vira para mim, sorrindo.

— Perdão, seu marido vendeu em seu nome. — ele fala passando a mão nos cachos, moldando-os para trás e deixando a mostra seus pequenos cornos que saem da testa.

— Estranho.

— O que?

— Nós não consumamos o casamento.

Vejo o sorriso dele se desfazendo e seu rosto ganhando uma sutil preocupação.

— Você está tentando...

— Eu? Eu não fiz nada, quem fez isso é Vlad e você. — falo apontando a ele.

Seu rosto perde totalmente a gentileza anterior, parece irritado ainda que tente conter. Ele se levanta da cadeira balançando a cabeça como se lembrasse de algo.

— Quando ele me pediu para ajudar a escolher uma que não fosse estúpida, não esperava isso.

— Do que está falando?

Ele se vira para mim novamente.

— Não é nada. Espero que aprecie sua estadia aqui, mas eu preciso ir.

Ele se curva como um cavalheiro, mas seu olhar é de desdém quando desaparece em uma neblina esverdeada.

 

 

 

 

Seja bem-vinda a minha casa, lady Lucy. — fala o Conde com ternura, me estendendo a mão.

Ele me tira da carruagem e me conduz pelo salão, a mesa farta me encanta com tantas frutas. Ele puxa a cadeira para que eu me sente em uma das pontas. O cervo que eu cacei pela manhã me observa, ele pisca na mesa e cospe a maçã assada de sua boca, ele está rodeado de cebolas e batatas. Eu me curvo para ouvi-lo:

 Você devia ter fugido, nada disso é para você, nada disso era real.

Acordo quando a porta se abre, Reinfild desce e recolhe do chão a comida e água intocados.

— Você deveria comer, Milady. — Ele fala com tom preocupado. Eu não respondo, permaneço deitada sobre o lado esquerdo voltada para a parede de pedras.

Ele vai embora dando um suspiro tenso, eu fico tentando lembrar quanto tempo estou lá, acho que perdi a conta de quantas vezes ele desceu... bom, isso não importa muito.

 

 

 

 

Mais alguns dias se passam, o musgo cresce cada vez mais na parede úmida, o verde recobre a pedra a minha frente enquanto sinto uma pessoa diferente se aproximar.

— É você, não é? Lucy? — fala a mulher ao pé da escadaria.

Eu viro o rosto para observar sua pele morena, olhos castanhos, longos cabelos ondulados caídos pelos ombros. Ela termina de descer as escadas e se aproxima de mim, ela fede a sangue fresco, parece que acabou de se alimentar, aparentemente Vlad tem uma nova vampira para acompanhá-lo.

— Eu precisava ver com meus próprios olhos, quem é o nome que ele chama a noite. Eu serei a sua rainha nem que para isso eu precise te mat... — Eu ouço tuas ameaças, apenas algumas, a essa altura eu preferia morrer. Mas ao mesmo tempo tenho medo, o que acontecerá comigo? Irei para o inferno como minha mãe dizia? Caos e penitência eterna? Deixo-a falando e viro o rosto de volta para a minha parede esverdeada.

Ouço-a gritar alguma coisa, deve ter ficado irada por eu não lhe dar toda essa importância. Então uma voz grave a interrompe.

— SHIVA! — impele Vlad na porta. — Não devia estar aqui.

— Ele não estará sempre aqui para proteger o animal de estimação. — Ela fala rapidamente, sussurrando ao meu ouvido antes de se distanciar. Estranho, eu mal percebi quando ela se aproximara, como se eu não pudesse ouvir os teus passos.

— AGORA! — Vlad grita nervoso enquanto segura a porta.

Ela sobe as escadas, passa por ele e vai embora. Ele a espera se distanciar, passa pela porta, mas antes de fechá-la, ele volta e fala comigo.

— Está satisfeita?

Não respondo.

— Não precisava ser assim.

— Pelo jeito sim, acho que ela combina com você na verdade.

Ele rosna se aproximando.

— Era para VOCÊ me acompanhar!

— O que você busca, é alguém tão cruel quanto você.

— Quem é você para falar de crueldade, você se negou a mim!

— Eu entraria em uma guerra por você, eu mataria por você, mas em seu nome, sua honra. Não por luxo e poder.

— Ela não deseja o meu poder.

— Ah! Vlad, está tão cego em seu desejo, que não pode ver a desgraça que se aproxima e se deitara ao seu lado.

Ele fica irritado com o que ouve, sai e bate à porta.

 

 

 

 

A relva é macia, o sol morno aquece minha pele, Vlad está deitado ao meu lado. Ele ri ao me ver tentando apontar para nuvens no céu, se vira de lado para mim e me questiona.

— Eu já tenho a bênção de Costel, mas e você, Lucy. Me aceita oficialmente como seu esposo?

— Achei que já tivesse deixado claro isso, Vlad.

Ele sorri, se levanta e pega minhas mãos com ternura, beija entre os dedos e uma de suas mãos sobe um pouco demais em meu braço. Eu fico ruborizada, ele percebe e me empurra para o gramado, sobe seu corpo no meu passando sua língua em meu pescoço como um animal. Seu rosto se transforma, suas presas aparecem e me avisam.

— Então vamos começar logo com isso!

Ele me morde no seio, a dor me corta e sinto minha pele sendo rasgada, suas unhas cravam em minhas costelas enquanto grito em desespero.

Reinfild me acorda balançando meu ombro, eu me viro de frente antes de sentar na cama de pedra.

— Milady, você precisa se alimentar. — Ele me mostra a taça de sangue em suas mãos, seu rosto passa preocupação. A sede que tenho clama pela taça, mas não posso, sinto o cheiro de uma das cozinheiras saindo dela.

— Você também é um, Reinfild?

— Vampiro? Não senhora, Mestre Drácula não me deu essa honraria.

— Eu vi você cicatrizar naquele dia, e no dia que me ajudou com meu pai, você não queimou suas mãos...

— É diferente. Mestre Drácula furou o dedo e me deu uma única gota de seu sangue, ele não me mordeu, eu não sofri a transformação. Eu estou em constante morte senhora, sou um servo a ele.

— Servo?

— Sou totalmente preso ao Mestre, se ele morrer, eu também morrerei. Sou uma continuação de sua maldição.

— Você sabia quando ele o tornou seu servo?

— Sim, eu estava doente, à beira da morte pela peste. Eu trabalhei para ele antes da guerra. Eu sabia no que ele tinha se transformado, e o ajudava trazendo mulheres da noite para ele se alimentar. Ele me avisou o que eu me tornaria, foi uma escolha minha.

— Escolha essa que ele não me ofereceu.

— Ele sabia que você não aceitaria se soubesse a verdade. Não é mesmo?

Fico sem responder.

— Ele a ama Milady, hoje pode ser a união dele com Lady Shiva, mas o rancor dela é saber que ele ainda a ama.

— Se me amasse não teria me enganado.

— E então teria perdido. Cada pessoa mostra o seu amor de formas diferentes, se não fosse verdade, já a teria matado a meses atrás, quando o recusou.

— Reinfild, isso não é amor. É posse.

— Tem realmente diferença?

Fico pensativa, ele titubeia um pouco antes de continuar.

— Eu lhe imploro, beba. Suba as escadas, eu posso segurar Shiva em um cômodo, eu lhe ajudo a matá-la.

— Não, Reinfild!

— Você não sabe o que ela faz, acha que ele é um monstro? — Seu rosto se contorce em nojo. — Ela é muito pior, eu te ajudo com felicidade no coração, nem ele a quer de verdade!

— Não — Eu afasto a taça de meu corpo —, não farei nada por alguém que me chama de animal.

— Ele também é um, somos todos animais, Lucy, a diferença é que ele sabe disso. — Ele me estende novamente a taça e a coloca em minhas mãos. — Mestre Vlad me proibiu de subir com essa taça cheia, por favor.

Olho para o vermelho líquido contido no cálice metálico, o rubro reflete na beirada cor de cobre. Seu cheiro toma os meus sentidos, quase posso senti-la em minha boca, um arrepio percorre desde meus pés até a base de minha espinha. Minhas presas rasgam minhas gengivas em desejo, sinto o cheiro muito próximo a minha boca sedenta, mas viro o pulso e atiro o sangue no chão.

— Pronto, pode subir agora, Reinfild, desejo felicidades aos noivos.

Ele olha para mim atônito, se levanta e sobe as escadas, enquanto isso eu me viro de lado novamente. A parede verde me acalma, fico contando as gotículas de água presas as pequenas ramas esmeraldas.

 

 

 

 

Naquela mesma noite, sinto passos ofegantes descendo as escadas. Um cheiro forte de vinho, sangue, suor, cerveja, carnes, frutas e um toque ácido que não consigo definir. Me viro ainda sentada e apoiada na parede e vejo Vlad em pé na minha frente. Ele cambaleia, bebe dois grandes goles de vinho da garrafa e fala irritado.

— Está satisfeita? Lady Lucy... — Ele fala em tom de desdém, eu não respondo, fico apenas olhando para aquela figura vulnerável e confusa a minha frente. — Agora, oficialmente, não é mais minha esposa, afinal, não se pode ter dois casamentos, nunca tivemos nossa noite, então foi OFICIALMENTE ANULADO! — Ele atira a garrafa na parede, agora identifico o cheiro ácido, é Shiva, sinto o cheiro da mulher emanando de seu corpo.

— Espero que ela o faça feliz.

— Você rogou uma praga, não foi? — Ele fala com o horror estampado em seu rosto. — Shiva é... nós já estávamos acostumados a nos alimentar juntos, mas hoje... ela me trouxe o presente de casamento... um bebê... ela se alimen... ele gritava enquanto ela ria...

Ele fala com repugnância no olhar.

— Fico triste por sua noite de núpcias, não era o que você esperava? — Quando eu falo ele vira seu rosto para mim, com ira e ao mesmo tempo, com alguma ternura.

— Eu errei, eu deveria ter lhe contado, eu só... — Ele se aproxima cambaleante para mim, se senta na cama de pedra junto a mim. — eu sinto sua falta.

— Eu sinto falta do Conde pelo qual me apaixonei, mas ele nunca existiu, foi apenas uma miragem.

— Nós podemos consertar isso ainda. — Ele segura o meu rosto e me beija, estou fraca demais para ter qualquer reação. Ele interrompe o beijo roubado subindo em mim e sussurrando. — Fique aqui comigo, deixa eu resolver isso, eu mato o padre, queimo o maldito livro e esviscero aquela bruxa que está no quarto, Lucy. Por favor. É isso que queria ouvir?

— Não, não é...

— Queria ouvir que te quero, te quero e te desejo como mulher, com cicatriz, suja, magra do jeito que te vi... ah, você tinha até medo de falar comigo, eu gosto disso...

Ele percorre meu corpo com suas mãos sujas em sangue. Me sinto imunda, não só por ter tido poucos banhos nesse calabouço, mas pelo cheiro de suor que emana dele em minha pele.

— Para, eu não quero.

Imploro já que não tenho força alguma para lutar agora. Rapidamente ele desliza lábios e dentes em meu pescoço, minha mão mal faz pressão em seu peito que fica sobre mim e fracassa ao desejo de um homem embriagado. Ele beija ruidosamente minha pele, mas aos poucos percebe meu rosto virado para a parede. Em silêncio.

— Eu pensei que...

— Não.

— Não é assim que eu lhe quero.

— Então por favor, não.

Ele recua, tira o seu corpo sobre o meu, se levanta e vai até as escadas. Para, olha para baixo e suspira refletindo. Então, retorna, segura as correntes e as arranca da parede.

— Vá embora. — ordena enquanto derruba as correntes no chão.

Eu me levanto, percebo que mal posso andar e tenho de me apoiar na parede para subir as escadas. Eu subo, sozinha, ele permanece sentado em minha cama de pedra. Na porta, Reinfild se assusta com minha figura, acho que estou mais magra e branca do que o normal. Rapidamente ele agarra um grande rato no chão da cozinha, o corta e derrama seu conteúdo em uma taça de barro e me entrega. Eu olho para ele ainda sem dizer nada.

— Isso não completa o rito, apenas lhe dará força.

Lentamente aceito, bebo, solto a taça em sua mão e agradeço. Quero ir embora, quero sair desse castelo de horrores. A bebida em meu estômago realmente me ajuda, eu caminho com meus pés insensíveis, atravesso o salão decorado para a festividade. Restos de alimentos estão caídos no chão, vejo dois cadáveres de crianças em um canto próximo a janela e uma empregada desmembrada em outro local. Quando chego à porta, me sinto observada, antes de fechá-la vejo Shiva no alto da varanda, ela me observa insatisfeita. Está com um lindo vestido branco e minha gargantilha de esmeralda.

 

 


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