O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 4
Capítulo 4 – O caçador




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“Seja implacável e generosa. ” – Costel Iordache

 

 

 

 

Em algum lugar, dois homens estão atracados. Um mais velho, de grande porte, soca na altura do fígado o mais jovem, que revida nas costas de seu oponente. Então, um segundo jovem se aproxima com uma cumbuca de barro com algumas brasas e atinge o rosto do maior. Eles se separam enquanto o grande idoso grita com as mãos no rosto, ainda assim ele pode ouvir quando alguém puxa a faca.

O jovem ataca o rosto do velho, que só pôde se proteger com o antebraço no segundo corte. Ele grita ainda mais e o empurra até a parede. O segundo jovem vem por trás e atinge a vítima com uma pesada cadeira de madeira. O velho, já cego, solta o outro. Vira-se para seu algoz e o soca violentamente no rosto; o jovem cai ao chão, cuspindo uma densa porção de sangue e um de seus dentes.

O jovem encurralado na parede, atinge com os punhos as costas do cansado homem, que se vira, curvando-se e levantando o magro rapaz com os ombros. Então o atira em cima de seu amigo.

— SAIAM DA MINHA CASA! — berra o velho vitorioso, enquanto fica agora curvado, sentindo muita dor por seus ferimentos.

Abre a porta, deixando a brisa fria da noite entrar. Eles se levantam, mas empurram juntos o grande idoso contra a parede, um deles leva uma cabeçada. O outro pega uma adaga presa à cintura e atinge o peito do guerreiro resistente, tira a lâmina e o esfaqueia novamente. Ele cai no chão e é chutado violentamente pelos dois jovens.

 

 

 

Valahia, 1456

 

Já faz semanas que vou aos jantares do Conde Vlad, sempre gentil e amoroso, é difícil não gostar cada vez mais de sua feição e companhia. Sinto claramente que ele também aprecia a minha presença.

Hoje, ele me aperta o braço ao anunciar um presente para mim. Entrega-me uma caixa forrada em veludo vermelho. Assim que abro, vejo uma linda pedra verde escura atada a uma larga fita de veludo negro, nunca vi uma peça tão bonita. Eu sorrio quase sem acreditar que aquilo seja realmente para mim, ele a pega pela fita e pede que eu me vire, empurra o meu cabelo e o coloca na lateral do ombro. Ele ata a gargantilha e sinto um arrepio quando seus dedos passam na minha nuca. Ele se aproximou e parecia estar cheirando onde nascem meus cabelos, mas isso me deu uma sensação boa, eu queria ficar mais perto dele. Ele murmura alguma coisa que não entendo.

— É linda essa pedra verde. — falo um pouco constrangida.

— É uma esmeralda.

— Obrigada, Conde.

— Vamos nos casar, Lucy. Prefiro que chame de Vlad.

Eu paro pensativa, então noto que a cozinheira não estava na porta, será que hoje vai acontecer algo ruim? É melhor eu o fazer falar.

— Não sei muito sobre sua família... Vlad.

— Meu pai era de mesmo nome...

— Isso eu sei...

— Disse agora há pouco que não. O que sabe afinal?

— Sei que seu avô era o Príncipe da Valahia, o primeiro do nome, por isso você é Vlad III.

— Continue. — Ele sussurra em meu ouvido.

— Então você e seu pai foram a guerra contra os islâmicos, mas apenas você retornou.

— Bizantinos.

— Isso mesmo, desculpe, eu tenho dificuldade de gravar esses nomes.

— Não tem problema.

— Verdade que eles creem em outro Deus?

— Que Deus? — fala ele, com um estranho sorriso.

Eu fico um pouco sem entender sua pergunta, então noto que ele está passando levemente os dedos em meu braço, só então ele interrompe o silêncio.

— É assim que contam?

— É assim que meu pai me contou. É por isso que quer uma mulher que não tenha medo da guerra? Você pode ter que voltar para guerra?

— Sim. E eu quero que você me acompanhe, Lucy. Não posso me dar ao luxo de ter uma recatada ao meu lado.

— Não se dar ao luxo? — falo enquanto toco a pedra fria em meu colo. — Eu não sei lutar.

— Você aprenderá, já tem muitas habilidades interessantes.

— Como caçar?

Ele passa seu rosto em meu pescoço, em um sorriso debochado.

— Sim... — Seu nariz toca minha nuca subindo até meus cabelos. — Você será uma ótima caçadora.

Com esse elogio sinto-me à vontade e sorrio. De repente esqueço da falta da cozinheira.

 

 

 

*********

 

Enquanto isso, Costel está no mercado, comprando mantimentos. Ao entrar na mercearia, percebe o murmurar de alguns homens, claramente zombando do que não devem. Todos sabem do corte no seu ombro, mesmo que forte, não é mais tão imponente como antes. Os tolos se tornaram mais corajosos com sua limitação.

— Saco de centeio. — fala o caçador para o vendedor.

O homem coloca o saco de juta em cima do balcão e fala.

— Uma moeda.

— Quero o saco maior. Para as ovelhas também.

O homem se vira para pegar o cereal enquanto os bêbados ao lado do balcão voltam a murmurar risonhos.

— Algum problema? — questiona com seu ombro arqueado pela dor.

— Não é nada, apenas comentando que está comprando bem mais ultimamente.

— Sim, o trabalho me permite isso.

— Trabalho? Ahhh, sim! O mais antigo de todos não é mesmo? — O outro completa.

— Quanto o Conde paga pela sua bruxa? Ela deve ter algum talento especial para ter encantado o nobre! — Ele dá leves tapas na virilha enquanto ri para o outro.

Costel fita os dois em seus gestos vulgares, pega a caneca de cerveja de um deles e bate com força no queixo de um, no joelho do segundo. Os homens urram de dor e pulam em meu pai covardemente, um o segura pelo pescoço enquanto o outro esmurra seu rosto. O mercante precisa dar a volta no balcão para apartar a briga com mais alguns homens.

— Cometeu um grande erro, Costel! — Os homens ameaçam enquanto são contidos por outros mais sóbrios. O velho e robusto caçador, paga o mercante, sai com o rosto sangrando e o saco rasgado de centeio.

 

 

 

*********

 

Quando eu voltei para casa, não sabia do ocorrido. Meu pai não me explicou os machucados, apenas senti o cheiro de cerveja em sua camisa e notei que ele estava cansado. Quando lhe perguntei, ele mudou de assunto, perguntando de como o Conde estava planejando o casamento.

Eu encontrava Vlad quase todas as noites e as vezes ele aparecia no mercado, mas quase que eu não vendia mais caça lá. Vlad normalmente comprava quase tudo. Pouco tempo depois, tivemos um jantar. Era cordeiro, mas fiquei com pena do animal, pois minha mãe adorava cordeiros. Naquela noite, quando eu retornei para casa com o cocheiro, rapidamente senti o cheiro de queimado. Foi uma dor que nunca poderei esquecer.

O vermelho e amarelo do fogo iluminava a densa noite, queimando minha casa. Reinfild observava da carruagem os agressores saindo a cavalo pelo breu. Eu saltei da carruagem ao encontro de meu pai

— Lady Lucy, espere! — grita Reinfild saindo da carruagem atrás de mim.

— PAI! — grito no meio das chamas na entrada da casa.

Logo posso vê-lo caído, tentando se arrastar pelo chão de madeira com uma viga em suas costas. Suas pernas estão paralisadas e ele mal consegue se mover. Atravesso o fogo e tento empurrar a viga que é toda um braseiro, acaba queimando as palmas de minhas mãos.

Eu não consigo movê-la, então vejo que Reinfild entra pela porta rapidamente, se ajoelha ao meu lado e me ajuda a empurrar pela outra ponta da viga. Ela cai no meio das chamas. O servo de Vlad me ajuda a carregar meu pai para fora da casa, que murmura algo para mim e eu não entendo. O som do fogo devorando minha casa é muito mais alto.

— Nós podemos te levar a um... — Meu pai me interrompe segurando com força a minha mão, o colocamos no chão. Estamos à frente da casa, Reinfild traz água do poço, mas meu pai recusa, enche os pulmões para falar.

— Não precisa.

Ele puxa a minha mão até uma adaga cravada em seu peito, muito da lâmina está para fora, próxima do coração, mas não profunda o suficiente.

— Não, não me peça isso, pai.

— Por favor. Estou sofrendo, filha.

Ele leva sua mão para meu rosto. Sorri para mim quando segura minha nuca com os dedos me aproximando.

— Eu estou muito feliz, de verdade. Sua mãe ficaria feliz. Ele vai cuidar de você, eu acredito.

Ele fala com dificuldade, seu cabelo queimado deixa à mostra muitos cortes no rosto e lábios. Seus olhos se foram e sua mão tateia o meu rosto. Roupas rasgadas e os dedos em carne viva mostram que ele lutara, muito. Eu choro, não querendo aceitar enquanto ele faz meus dedos envolverem o cabo com toda sua força que ainda lhe resta.

— Sej... seja...

— Sim pai, eu serei. — Eu o abraço me despedindo e empurro a adaga até seu coração.

Reinfild fala alguma coisa para mim. Ele toca meu ombro e me balança gritando, eu não escuto. Estou apenas vendo o rosto paralisado do caçador em meus braços, sua boca cortada entreaberta ainda sussurra em minha mente: “Seja implacável e generosa”. É a única fala que ouço naquele momento. Ao fundo, apenas o ranger de tábuas, o movimento selvagem e o rosnado do fogo demoníaco devorando a minha história.

 

 

 

*********

 

Eu limpo o corpo de meu pai no quarto cedido pelo conde. Reinfild nos levara às pressas com a carruagem. Ele sussurra algo para Vlad atrás de mim, que logo depois se curva tocando meu ombro e me avisa.

— Não se preocupe, Lucy. Faremos os preparativos para um enterro adequado aqui no cemitério de minha família. Afinal, logo ele seria a minha família oficialmente também.

— Obrigada, Vlad.

— Eu terei que sair agora, mas retorno logo. — Ele se despede e sai apressadamente enquanto Reinfild me traz uma nova bacia d’água.

Ele se senta ao lado da cama e me entrega mais faixas e um pote de gordura.

— Lady Lucy, me escute. Coloque algumas faixas úmidas e gordura em suas mãos.

— Nas minhas mãos?

— Suas queimaduras, para que não fique muito marcado.

— Ah sim. — Eu me viro para ele e olho para as suas mãos.

— Você não se queimou?

— Na outra ponta não estava em brasa.

— Entendo. — Eu pego a gordura e começo a passar nas palmas, elas ardem inicialmente depois me aliviando. Reinfild pega uma das faixas e começa a cobrir a minha mão, dando voltas do pulso a até os dedos. — Reinfild, obrigada por me ajudar a tirá-lo de lá, eu não teria conseguido sozinha.

— Lady Lucy, eu só fiz o que devia, espero que isso não a desanime para o casamento. Mestre Vlad ficaria seriamente entristecido.

— Nada muda, Reinfild. Eu também sei fazer o que devo.

Ele termina de enfaixar, prendendo a ponta da tira de tecido entre os meus dedos. Levanta-se e avisa.

— Ótimo. Eu irei agora preparar a suíte para a senhora, Vlad ordenou que fosse conforme desejar.

— Eu não me importo com o quarto, Reinfild.

— Eu sei.

 

 

 

*********

 

No dia seguinte, vou ao costureiro. Estou indo buscar o vestido do enterro e encomendar outro para o casamento, ambos pagos por Vlad. Ontem ele retornou tarde da noite, o vi passar rapidamente pelo corredor, parecia animado e cansado. Reparei que suas botas estavam sujas com algo escuro e pegajoso, seu cabelo estava molhado, desgranhado e cheirando à cerveja. Preferia que ele tivesse me contado com sinceridade que apenas iria beber, isso é normal para um homem. Para um nobre, é claro. Só vi meu pai beber uma vez, dias depois da morte de minha mãe, mas não acho que era cerveja, e ele não estava feliz.

Eu caminho apressada para lá, seguro com as mãos enfaixadas as saias do vestido para não sujar de poeira. Então passo próximo a taverna e vejo que há um grande tumulto na entrada, me aproximo e ouço os comentários dos que estão em volta.

Aparentemente, um lobo atacou os homens do estabelecimento. Esgueirando-me entre curiosos vejo quatro ou cinco homens mortos no salão. Nem sei quantos são, pois estão desmembrados. Uma grande bagunça de canecas, facas e moscas. O cheiro de sangue seco misturado à cerveja quente paira no ar é enjoativo e perturbador. Mas então, tenho um alívio. Vejo que dois dos mortos são os homens que haviam ameaçado meu pai dias antes. Foram eles que trouxeram a desgraça a mim, agora a justiça veio para eles. Eu fico satisfeita e vou para o costureiro.


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