O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 3
Capítulo 3 – O encontro




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“Sendo caçadora, eu estava sempre alimentando os nobres.” – Lucy Iordache

 

 

 

Valahia, 1456

 

O mercante observa as lebres e serpentes que trouxe hoje. Sente o peso, a pelagem, toca nas escamas brilhantes e coloridas da enorme cobra.

— 20 moedas.

— Pelos coelhos?

— Por tudo. — Percebo homens me olharem da barraca ao lado, eles falam de mim.

Eu puxo uma mexa de cabelo da trança e a coloco na frente da cicatriz.

— Olha o tamanho desta serpente, somente ela já pode fazer um par de botas! — insisto, tentando convencê-lo a pagar mais.

— Espere aqui.

Ele se vira para pegar as moedas enquanto ouço aproximar-se o relinchar de um cavalo atrás de mim. Percebo os outros homens se afastarem, abrindo passagem ao nobre que se aproxima. Eu permaneço em pé, parada, só quero pegar as moedas e ir embora. Posso ver alguém com luvas de couro questionando o mercante ao lado. É o Conde Vlad, que esteve em minha casa a dois dias, ele se vira a mim.

— Está vendendo sua caça, Lady Lucy? — Ele fala ao se aproximar.

Lady? Achei que só chamavam assim princesas.

— Sim, senhor. — respondo sem olhar para ele.

Ele observa que os outros homens ainda comentam de mim. Eu mantenho o olhar nas caças da banca, mas consigo perceber lateralmente que ele vira o corpo olhando a nossa volta.

— Aqui está, 30 moedas é o que posso fazer pela melhor caça da bruxa. — Ele fala baixo, eu paro por um momento ao ouvir isso, pego o saco de moedas rapidamente e saio. Ando rapidamente, só quero voltar para casa, fugindo daqueles que me olham. Saio da feira, mas sinto o nobre me alcançar.

— Eu tenho uma proposta, pela sua caça.

— Deve falar com meu pai.

— Ah sim, é por isso que irei acompanhá-la. — Ele para ao lado da carruagem, abre a porta para mim, eu paraliso sem saber o que fazer. — Não se preocupe, eu não mordo. — convida, estendendo a mão para mim.

— Não entrarei em uma carruagem. — Passo por ele apressadamente.

— Vai então no seu cavalo?

— Eu não vim a cavalo hoje.

— Então vai a pé? — Eu aceno com a cabeça já me distanciando.

Ouço ele bater à porta da carruagem, achei que tivesse entrado. Os cavalos são acelerados e então o vejo se segurando do lado de fora da carruagem, quando já está alinhado comigo ele salta no chão me acompanhando. É claro que ele não correria para me alcançar.

Ele sorri discretamente, tentando esconder a irritação. Andando ao meu lado posso ver suas botas escuras se sujarem com a poeira da terra batida, ele se incomoda um pouco com isso.

Ao chegarmos em casa, meu pai está na cozinha esperando pelo jantar. Eles se sentam lado a lado, na frente da casa fumando tabaco. Escuto murmurarem baixinho enquanto faço o ensopado. Agora tenho que cozinhar para quatro, e mais depressa. Rapidamente eu corto raízes para aumentar o caldo; temos pouco sal. Enquanto as raízes cozinham, eu aproveito um momento e olho pela janela à espreita, vendo o perfil do Conde. Sua barba muito bem cortada que une-se aos bigodes longos, seu cabelo levemente ondulado está amarrado em um rabo de cavalo baixo com uma tira de couro. Seu rosto é muito bonito, limpo. Percebo que meu pai espia pela janela para mim também, ele olha para mim e responde alguma coisa ao nobre. Sua expressão é de surpresa e um pouco feliz.

Ao contrário de minha mãe, meu pai insistia em sorrir, ele sempre me falava para não ouvir tudo o que o homem de branco da igreja falava. “Ele nem é casado para saber como lidar com uma mulher”, ele dizia. Minha mãe o chamava de abusado, que as coisas dizia poderia condená-lo. Me aproximo e bato três vezes no batente da porta, alertando minha presença.

— O jantar está pronto, devo servir?

— Sim. — responde meu pai.

Eles entram pela porta e sentam-se na mesa de frente um ao outro. Sirvo duas cuias, o pão, o queijo, a água e o vinho que o servo trouxe. Vou até lá fora e entrego um prato com um naco de pão ao servo, ele se senta na varanda para comer. Eu volto na cozinha, enquanto me sirvo ouço me chamarem.

— Lucy.

— Sim, falta algo?

— Venha aqui, coma conosco.

Coma conosco? Na mesa com o nobre? Eu fico pensativa ainda com a colher na mão. Devo ter entendido algo errado.

— Anda.

Eu me sinto puxada, pego minha colher e vou com o prato para a sala, sento-me ao lado de meu pai, formando um triângulo entre nós na mesa redonda. Sinto-me observada, vigiada... como a lebre que surpreendi pela manhã. Eu olho para a comida, meu pai olha para mim e para o nobre. Já o nobre, apenas me olha de forma furtiva. Mergulho o pão na sopa com as mãos e como da forma mais silenciosa possível. Meu pai avisa.

— A partir de amanhã o servo de Conde Vlad virá buscar a caça, os valores já estão acertados. — Eu balanço a cabeça concordando, ele olha para mim e pergunta ao nobre.

— Quando quer começar com os jantares?

— Amanhã, se for possível.

— Está bem. — Ele se vira para mim novamente e completa. — Amanhã então começará a ir jantar com o Conde Vlad.

Eu paro por um segundo, continuo olhando para o ensopado. Um pânico me sobe a espinha, mas como sempre, balanço a cabeça assentindo e volto a comer.

 

 

 

*********

 

Assim que chego em casa carregando o javali, vejo a carruagem. O servo está na porta e me avisa.

— Vou levar o javali, ao anoitecer eu venho lhe buscar. — Ele entrega o pagamento a meu pai, coloca o animal na carruagem e comanda os cavalos apressadamente. Meu pai na porta de casa me olha de cima a baixo e me manda ir me banhar.

Uso a gordura de ovelha com cinzas, era uma forma primitiva de sabão daquela época; Lavo-me na grande bacia d´água fria na parte de trás da casa. Quando vou a meu quarto, encontro o vestido da minha mãe na cama.

— Só sobrou esse. — avisa meu pai.

— Por que isso? — Meu pai fica em silêncio. — O que está acontecendo?

— O Conde está interessado no momento e se você manter esse interesse, isso pode gerar um casamento. — Levanto a cabeça, estranhando a resposta.

— Ele disse isso?

— Ele disse que queria ter alguns jantares com você.

— Ele disse que quer um casamento?

— Certas coisas não precisam ser explicadas.

Olho atônita para o vestido, eu lembro que ela usava poucas vezes para não gastar. Sinto que meu pai retorna ao quarto, ele se aproxima de mim e me entrega uma pequena faca de desossar.

— Quero que a coloque na parte interna da saia, você sabe se defender, só não vá fazer nenhuma besteira.

— E-eu... mas se é perigoso então por que...

— Ele não vai fazer nada, é para você ir lá, comer e vocês podem conversar. Nunca fique sozinha com ele, ou somente com o servo, se tiver uma cozinheira é melhor, eu o avisei sobre isso.

— O que poderia acontecer? Acha que é como os homens que mataram a mamãe?

Ele me olha em reprovação.

— Não... não... ele não faria isso, ele também acha essas coisas de gente estúpida, ele não é um estúpido, eu não deixaria você ficar perto de um estúpido que reza. Mas ainda assim, ele é um homem e... bom, é melhor se prevenir.

— Se prevenir do que? — pergunto confusa.

Ele parece olhar ao longe.

— Ele só não deve te tocar, só isso. Eu avisei ao Conde, que se ELE fizer alguma coisa que VOCÊ não queira, ou que EU não queira, não me importa ele ser Conde, Padre ou Rei.

Eu não entendi o que era exatamente, mas de alguma forma me senti segura. Meu pai não me deixaria ir na casa de uma pessoa se não fosse bom, deixaria? Eu me visto, tranço o cabelo, puxo uma mecha na frente do rosto, coloco a faca escondida na bainha da cintura e vou para a sala. Meu pai me espera, olha para mim, estende sua mão para que eu me aproxime e beija a minha testa.

Não se preocupe, vai ficar tudo bem. — disse ele e me libera a ir para a carruagem.

O Servo abre a porta e estende sua mão para eu me apoiar na subida. Em um surto de coragem, pego a mão do servo para me apoiar. Eu já tinha visto uma nobre fazer isso, porém, eu não sou uma nobre. Nunca tinha entrado em uma carruagem antes, bancos de tecido amortecem o balanço que rapidamente me leva a um castelo com imponentes paredes de pedras. Após a entrada, uma grande porta dupla está aberta para o salão e, na frente dela, o Conde me aguarda. Ele abre a porta da carruagem e me recepciona.

— Seja bem-vinda a minha casa, Lady Lucy.

O vestido de minha mãe é de lã e algodão cru, com algumas amarras na cintura e uma costura na barra. Não tem cor, bordados, fitas, estampas, nada do que no mundo moderno de hoje seria comum a uma garota pobre usar. Naquela época nada disso existia, e o que existia, era privilégio dos nobres. O traje de couro negro e vermelho do nobre me impressiona. Naquela época, muita coisa me impressionava. Ele me estende a mão, respeitosamente, dessa vez eu titubeio em tocá-lo. Uma coisa é dar a mão ao servo, outra é ao nobre que meu disse claramente que não deve me tocar. Mas é um gesto de respeito, não é? É por causa da carruagem, então não conta nesse caso. Eu desço e ele me conduz até a sala de jantar e puxa a minha cadeira. Eu me sento e quase me assusto quando ele a empurra de volta para mim.

Na enorme mesa há frutas, o javali que cacei de manhã, pães, queijos, uma porção de pasta de berinjela, pimentões e castanhas. O servo enche as taças de vinho e de água. Eu paro, quase encantada ao vê-las, são de vidro, transparentes. O conde faz um gesto e o servo chama alguém da cozinha, uma mulher sai de lá, para na porta e permanece em pé. Acho que é aquilo que meu pai se referiu, que sempre deve ter uma outra mulher, não devo ficar sozinha. O conde sorri com os lábios pra mim, eu ruborizo finalmente vendo seus olhos castanhos.

Vejo os talheres ao lado do prato e rapidamente o servo retorna colocando figos fatiados com um corte de javali em meu prato. Eu olho tudo atentamente, só tinha visto todas aquelas frutas no mercado, a maioria eu nunca tinha provado. O conde me observa do outro lado da mesa, ouço-o pegar os talheres, eu faço o mesmo, ainda que impressionada o quão pesado e longo é o garfo.

— Fique a vontade, espero que goste. — diz ele enquanto inicia sua refeição.

— Hum-hum.

Ele já provou algo do prato, enquanto repara que eu ainda balanço os talheres sem saber bem o que eu devo fazer.

— Algum problema?

Não sei o que responder. Então não respondo nada.

— Lady Lucy, eu espero que você fale diretamente comigo.

— Eu... eu nunca comi javali.

Ele para por um momento, mastigando a carne.

— Então está na hora de provar, não acha?

Eu suspiro tomando coragem e espeto com dificuldades a carne levando o pedaço inteiro a boca. Eu mastigo uma carne quase adocicada, macia, tão diferente do músculo e do coração.

— E então?

— É delicioso. — respondo colocando a mão à frente da boca, sei que não deveria falar de boca cheia.

— Sim, é sim... — Ele me observa por um instante, não sei se estou agradando em ele me ver comer, não sei como agradar. Quase que com pena e volta a me falar. — se você quiser, pode comer como faz em casa. Você não precisa se portar como o que não é só para me impressionar.

Eu fico aliviada e rapidamente coloco o garfo ao lado do prato e pego a carne com a mão. De canto de olho observo que o nobre faz o mesmo, talvez para me deixar à vontade. Nunca tinha comido tão bem, tentei não comer muito para não ser vergonhoso, mais do que já foi em mostrar que não sei usar o garfo direito. Ao final, o servo me entregou uma toalha úmida para me limpar.

— Você não tocou no vinho. — disse o Conde como se estivesse triste.

Eu olho para a taça transparente de vidro, como usei as mãos para comer a carne, ficaram com gordura e molho, não queria sujar. Mas agora que me deram o pano úmido, com a minha mão menos suja trago a taça para perto. O líquido vermelho tem um cheiro fantástico, eu levo a boca em um pequeno gole e me assusto com o sabor forte. Mas assim que engulo a sensação é de um bem-estar, pareço que estou mais leve.

O conde observa todo o movimento segurando sua própria taça na frente do rosto e sorri furtivamente.

— Também nunca tinha provado?

Balanço a cabeça em negação, ele parece estar se divertindo com minha confusa performance.

— Da próxima vez, tente tomar enquanto come, fica ainda melhor misturando tudo.

— Quando? — digo sem conseguir disfarçar minha ansiedade.

— Talvez amanhã, ou em breve. Não se preocupe.

O nobre vem até o lado de minha cadeira e me estende a mão para eu o acompanhar. Eu coloco a mão em seu braço tal como via a minha mãe fazer com meu pai. Damos alguns passos e vamos até próximo da janela, não tem lua alguma e a noite está densa e negra.

Vejo que o servo rapidamente sai nos deixando sozinhos no salão. Eu me viro um pouco receosa, passo a mão no tecido de minha bainha, sentido a faca escondida embaixo. Mas percebo que a cozinheira ainda está lá, em silêncio e rosto baixo, ela balança o corpo, talvez cansada da posição.

— Não se preocupe, não trouxe você até aqui para te machucar.

Eu fecho os olhos tentando me acalmar, passo a mão por cima da faca, tentando alisar o tecido do vestido um pouco largo em meu corpo. Magra demais para uma nobre, eu não me alimentava muito bem. Fico sem saber o que fazer, ou dizer. Ele percebe meu suor frio, então prefere ele mesmo quebrar o silêncio.

— Reinfild está comigo há anos, é leal e muito perspicaz. Se precisar saber de alguma, coisa não hesite em questionar a ele ou a mim.

Eu penso um pouco.

— Pode perguntar.

— Por que isso?

— Isso o quê?

— Isso. — respondo olhando para a mesa e voltando os olhos ao chão novamente — Por que eu?

— Por que não? — responde ele com convicção.

Eu balanço um pouco a cabeça antes de questionar.

— É isso que é o cortejo? — questiono quase com vergonha das palavras que escapam de minha boca.

— Sim, poderia chamar assim. Isso te incomoda? Não te agrado?

Ele perguntou se eu me agrado? Como assim?

— E-eu me agrado sim, é que eu não sei...

— O que?

— Bom, você é rico e bonito. Tenho certeza que há outras garotas mais jovens e mais...

— Continue... — Eu franzo a testa, ele continua por mim. — Mais bonitas? Mais ricas?

— Sim.

— O que é perfeito Lucy?

— O quê?

— Se você vai caçar um cervo, uma adaga é perfeita?

— Não, um cervo corre muito, não é possível abater com uma adaga.

— Mesmo sendo uma boa adaga?

— Sim.

— Olhe para mim. — Eu levanto o olhar até o ombro dele. Ele coloca sua mão em meu queixo e levanta meu rosto, tremo e seguro a faca escondida em minha cintura com força.

— Eu não quero uma garota jovem e de rosto perfeito, eu quero uma mulher. Quero alguém forte e caçadora, alguém que me acompanhe em uma guerra, alguém que eu possa confiar a minha vida.

Ele passa a minha mecha de cabelo para trás de minha orelha e expõe a minha cicatriz

— E isso me faz ter outras necessidades e outro conceito do que é perfeito para mim. — Mergulha profundamente em meu solitário olho direito e eu finalmente posso ver que os seus castanhos são claros como mel. Ele me olha. Ele vê todo o meu rosto e sorri, não um sorriso discreto com os lábios, mas largo, mostrando os dentes, meio... estranho.

Quase fico aliviada quando o som o vento se acentua fazendo com que alguma folhagem bata no vidro da janela e eu desvie o olhar. O conte olha para meus cabelos e murmura.

— Então, você acha que sou bonito?

Eu ruborizo, uma rizada é abafada por ambos. Após essa noite de descobertas ele me conduz novamente a carruagem onde Reinfild abre a porta. Vlad me oferece a mão a subir e ao fechar segura a porta por um instante.

— Estou deveras contente com nossa noite, Lady Lucy. Espero que você também tenha apreciado.

Eu olho um pouco atônita.

— Você gostou da noite?

— Ah, sim. É claro.

— Que bom. Então amanhã Reinfild irá buscá-la novamente.

Ele faz um gesto e o servo conduz para minha casa, a noite silenciosa faz com que cada passo pesado dos animais fique destacada, em uma bela música de percussão. Ao chegar em casa tiro os sapatos de minha mãe, não sei como ela podia usá-los com tanta facilidade. Ando pelo corredor e vejo a porta do quarto de meu pai, está entreaberta e escuro lá dentro. Vou para o meu quarto e quando abro o vejo sentado em minha cama, apoiado na cabeceira com os braços cruzados. Ele abre os olhos sonolentos e me pergunta.

— Ele tocou você de alguma forma?

— Ele me deu a mão para descer da carruagem e depois para subir novamente. Mas estava de luvas.

Acho que não devo contar que ele tocou no meu cabelo. Era somente a pele que não deve ser tocada, eu acho. Meu pai olha para mim insatisfeito com a resposta.

— Ele a tocou de alguma maneira que a deixou desconfortável?

— Não. — respondo com confiança dessa vez, eu sei que não serei condenada ao inferno por ele ter tocado meu queixo.

— Ótimo. O que comeram?

— O javali. — divo com as sobrancelhas arqueadas.

Ele fica impressionado, aperta os lábios como se estivesse orgulhoso.

— É gostoso?

— Sim! — digo um pouco mais empolgada do que deveria.

Meu pai sorri, se levanta da cadeira e me avisa antes de sair.

— Espero que tudo dê certo.

Normalmente falar com meu pai é um alívio, mas agora de alguma maneira me sinto errada.


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