O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 2
Capítulo 2 – Apenas Lucy




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“Minha mãe tirava o leite mas sempre deixava um pouco para o novilho. Porém, um dia ele apareceu morto, nós precisávamos de mais leite e o pequeno estava gordo demais.” – Lucy Iordache

 

 

 

Valahia, 1456

 

Eu lembro do silêncio. Depois o barulho horrível do meu pai respirando ofegante, ele engatinhou no chão até a minha mãe, puxando-a para o seu colo. As duas mão foram para os olhos dela, ele gritava, ela não. Ele agarrou seus cabelos atrás fazendo com que ela o abraçasse, ele a apertava com força contra o peito, ela não. Suas mãos estavam balançando, soltas, dedos finos, unhas manchadas de cenoura e beterraba. Eu ainda na mesa olho com meu olho direito em silêncio, sinto algo estranho como se repuxasse meu rosto, levo minha mão para o lado esquerdo e só sinto o líquido quente e pegajoso.

Meu pai teve de unir o resto de minha pele como pôde. Ele alinhou as tiras de carne, passou a gordura com ervas e cobriu com faixas de tecido cru. Fiquei com o rosto enfaixado por dias, o cheiro ácido e gorduroso mal me deixava dormir, as vezes eu esquecia e tocava o tecido úmido sentindo um líquido viscoso em minha face. Doía muito, ás vezes eu ficava sentindo muito frio e meu pai colocava pano molhado na minha cabeça durante a noite.

Lembro de quando ele abriu as faixas a primeira vez, ele olhava triste para mim. Não falou nada, estranhamente ele passou a ficar cada vez mais parecido com mamãe, mais silencioso. Teve uma noite que ouvi ele xingar na cozinha, nunca tinha ouvido ele gritar daquele jeito. Quando era de manhã ele estava sentado no chão da cozinha, cheirava muito mal, sua mão tinha uma garrafa que eu não tinha visto ele trazer antes. E depois também não, nunca mais o vi xingar e quebrar coisas a noite, nem aquele tipo de garrafa.

Só muito tempo depois, tive a coragem de tocar essa parte da lateral do meu rosto. Senti texturas estranhas formando um vale, da testa até o fim do maxilar, passando pelo olho ausente. Eu usei as águas de um lago para me ver no reflexo, eu olhei. Observei atentamente. E decidi que não ia olhar mais, não gostei.

Tempos depois, meu pai sabia que não havia mais sentido em eu aprender o que “mulheres deveriam saber”. Afinal, podíamos não estar mais na Idade Média, mas ainda haviam muitos costumes residuais daquela época. Hoje, sabe-se que o que minha mãe fazia, se tratava de uma forma primitiva de medicina, mas naquela época, era considerado bruxaria. Minha família pagou um alto preço por isso.

Assim, já que a filha da bruxa estava com o rosto marcado, ela não precisava mais se preocupar com um casamento. Com 25 anos eu já era considerada velha demais para isso e, provavelmente, isso nunca aconteceria. Não só pela idade, não só pela cara rasgada, não só por ser uma possível bruxa, mas por que... enfim, deviam ter mais motivos ainda que agora sinceramente não me importo.

— Lucy, você está me contando tudo isso, mas você sabe que não era sua culpa, não é?

Ele me questiona com preocupação. Acho que deixo escapar o quando toda essa história me dói.

— Eu sei. Mas é como me sinto. Quer que eu pare? Podemos fazer outra coisa.

— Não... eu, só estou preocupado com você. Eu te amo, você é perfeita, sabe disso.

Você é perfeita. Essa fala... ele ainda não sabe o quanto...

— Devo continuar?

— Por favor, me conta mais de você.

— Tá...

 

Eu poderia não servir mais para um casamento, por todos os motivos que... mas era forte e com muita boa pontaria. Eu levei muito tempo, para conseguir puxar o arco com decência, na primeira vez eu acertei em cheio! Na galinha, o alvo de palha ficara vazio. Mas foi certeiro de alguma forma, disse o meu pai.

Agora, calmamente eu respiro. Olho ao longo da flecha muito próxima ao meu rosto, vejo a vara lisa e homogênea até a ponteira de ferro. Solto. A flecha atinge a segunda costela do cervo. Droga! Ele dispara e eu corro atrás dele. Meu pai caminha atrás de mim.

O cervo não correu muito, mas o suficiente para eu ter pena dele. Caído e ofegante, ele sangra na relva. O vermelho escorre pelo furo da flecha e percorre seu dorso castanho. Assim que eu seguro a flecha para tirá-la, ele se mexe em agonia. Eu viro o rosto, pois não quero ver seus olhos negros me encarando, me questionando por minha incopetência. Meu pai toca em meu ombro, e me alerta.

— Dessa forma irá fazê-lo sofrer sem necessidade.

Eu entendo, solto a flecha e pego a faca. Passo a mão no dorso do animal tão bonito em sofrimento, tento acalmá-lo.

— Não o deixe ver a faca. Esse erro foi seu, ele está sofrendo porque você não acertou na terceira costela.

— Me desculpe, pai.

— Não peça desculpas a mim, não foi a mim que fez sofrer.

Ele fala e me dá as costas, indicando que eu devo terminar isso sozinha. Eu passo a faca por detrás de meu corpo.

— Me desculpe por isso. — falo ao cervo e cravo a faca de uma vez na sua terceira costela, minha vítima faz um único movimento e logo depois acalma.

Odeio quando isso acontece, me odeio por ver tão de perto, a dor de um animal assim. É por isso que prefiro o arco, estou distante para ver a dor. E se eu fizer corretamente, isso não ocorre.

— Implacável e generosa sempre, Lucy. — completa o meu pai, de longe.

Eu não respondo, apenas puxo a flecha do corpo quente do animal. Seguro em suas pernas, apoio seu dorso em minhas costas, firmo minhas coxa e o levanto devagar para me equilibrar. Eu sou forte, para uma mulher.

Quando chegamos em casa, precisamos pendurar e abrir o cervo. Separar as vísceras, lavar e secar a carcaça. Tirar o couro, secar a carne externa, cozinhar o fígado e o coração. É preciso limpar os intestinos e deixá-los de molho no vinagre para usar nas cordas e arco, limpar as flechas e facas. Tudo isso antes de colocar o couro e carne no cavalo para levar ao mercado.

Quando vou trabalhar eu prendo os cabelos em um rabo baixo usando uma faixa de tecido cru. O coloco de lado no ombro e puxo uma mecha de cabelo a frente do rosto, cobrindo minha lateral marcada. Faço a secagem na frente da casa, o cervo está pendurado pelas patas traseiras no galho mais grosso da figueira.

Meu pai descansa seu braço, que antes era tão forte. Agora, sente dores por uma faca que foi enfiada em seu no ombro, feito por um dos homens que mataram minha mãe. Ele não move mais esse braço corretamente, não consegue levantar mais do que a altura do peito. Ele come algumas maçãs e me observa trabalhar. Sempre que trabalho na carne ou cozinho penso em minha mãe, penso naquela tarde, no homem que me jogara na mesa. Em como meu pai cortou sua garganta me cobrindo do seu sangue.

Era um dia tão bom, tão silencioso. Minha vida é silenciosa, minha mãe me educara assim, o certo é ser assim como fala o homem de vestes brancas da igreja. Todo aquele sangue quente que cobria o meu rosto, e agora olho para as vísceras do cervo. Porque fizeram isso? Eu sei porque, mas era realmente necessário? Será que minha mãe era mesmo uma bruxa? Será que eu sou uma bruxa?

Olho para o rosto do cervo pendurado e vejo minha mãe, caída no chão com os lábios azulados, silenciosos. É final de tarde, quando ouvimos o relinchar de cavalos desesperados, na estrada da frente.

— Fique aqui. — Meu pai caminha com dificuldade e vai até estrada da frente da casa, fico passando o sal na parte interna do animal. Vejo ele retornar com dois cavalos e mais dois homens nobres.

Um deles é magro, mas veste roupas finas, tem até um bordado no peito. O mais alto caminha atrás, devagar, sua roupa tem mais cores e usa uma capa curta. Ele tira o chapéu grande e o usa para se abanar refrescando os longos cabelos pretos do calor. Ele levanta os olhos pra mim notando que estou encarando. Eu desvio o olhar, voltando para o cervo.

— A roda da carruagem quebrou na estrada, traga as ferramentas de madeira para o servo e termine o jantar. — Meu pai fala ofegante.

— Mas, e a carne?

— Termine depois. — Eu abandono o cervo aberto no galho da figueira. Uso um pano preso a minha cintura para limpar as mãos enquanto atravesso o quintal para pegar a marreta e nichos de madeira. O servo me acompanha e pega as peças de minhas mãos, de forma vagarosa.

— Agradeço. — diz ele, eu respondo balançando a cabeça.

Então o primeiro retorna rapidamente para a estrada carregando as ferramentas, eu entro na casa, para terminar o cosido. E vejo o nobre sentado à mesa, junto de meu pai. Ele tirou sua capa e a colocou sobre a mesa, então reparo que tem vários bordados coloridos entre os tecidos. De repente o servo volta, ele trouxe uma trouxa de tecido cheia de coisas, eu estou virada para as panelas e escuto colocarem muitas coisas na mesa. O servo sai novamente, ele corre de volta para a estrada. Quando consigo me virar um pouco para pegar uma colher de pau vejo que tem uma garrafa longa de barro, copos de ferro e o nobre tira as luvas negras de couro antes de servir. Ele oferece um copo a meu pai que sorri com os lábios em aceite.

Ambos bebem enquanto eu mecho o cosido de miúdos, minha mãe dizia que mulheres nunca devem falar com estranhos. Muito menos sorrir, afinal, mostrar os dentes são coisas de feras, é a marca da besta. Sempre tenho muito medo do que aconteceria se eu falasse assim ou sorrisse, será que mandam ursas por causa de sorrisos também? Só fazia isso quando meu pai assim permitia. O nobre toma uma proza com meu pai.

— Então, Costel, tenha certeza que não vim abusar de sua generosidade. — O nobre coloca um pequeno saco de tecido na mesa, as moedas dentro da pequena bolsa ressoam.

Eu me viro tentando olhar para ele, vejo sua mão, seu rosto torneado com bigodes e barba aparados. Ele flagra o meu olhar, rapidamente me viro para a panela de cosido.

— Seu servo deve consertar rapidamente a roda, pelo que vi, apenas um reforço e estará bom para seguir viagem.

— Na verdade estou retornando a minha terra, Costel. É bom retornar para casa. — Ele se vira e olha pela porta o cervo pendurado na figueira e os coelhos em cima do forno a lenha.

— Vejo que é um caçador produtivo.

— Somos, Conde.

— Se importaria, de eu olhar um pouco de sua caça? — Meu pai faz o gesto com a mão para que ele fique à vontade. Ele se levanta, dando passos macios em suas botas, os saltos fazem um som marcado no piso de pedra e começa a ver os coelhos ao meu lado. — Quanto costumam lhe pagar pelos coelhos e cervo?

— Eu não costumo mais ir ao mercado. — fala meu pai apontando para o braço inerte. — Mas Lucy é quem vai aos mercantes escolhidos. Lucy, quanto foi o acertado mesmo?

Com a permissão dele eu olho de lado para os coelhos nas mãos do nobre e para o cervo ao longe.

— Cinco moedas pelos coelhos grandes, três pelos pequenos. No cervo, ele provavelmente pagará 40 moedas.

— Daquele tamanho?

— Ele tem dois furos na pele, errei a flecha. Dois cortes no couro diminuem o valor.

— Entendo. — Ele fala, enquanto tenta encontrar o meu olhar, eu olho para a panela.

— O cosido está pronto. — digo, o homem sorri. Coloca os coelhos em cima da mesa e se senta ao lado de meu pai novamente.

Sirvo dois pratos, coloco os talheres, o pão, o jarro de água e sirvo mais do vinho do nobre nos copos. O nobre parte o pão, mergulha no cosido e prova. Pende a cabeça lateralmente, aprovando e fala para meu pai enquanto engole a comida.

— Costel, vou levar sua carne também.

— Ótimo, o que quer levar?

— Tudo. — Meu pai para, balança a cabeça e olha para mim.

— Vá terminar a secagem.

Saio rapidamente levando um pedaço de pão na boca. Pouco depois vejo meu pai e o nobre saírem pela frente de casa. Eu estou terminando enquanto vejo o nobre tirar do bolso um saco de tecido, eles separam o tabaco, montam na palha e fumam sentados na frente da casa. Estou um pouco cansada e com o rosado do sangue do animal cobrindo até meus cotovelos, quando ouço a voz do nobre próximo de minha nuca.

— Você é talentosa.

Ele me assustou, não ouvi seus passos se aproximando. Estranho.

— Agradeço. — falo enquanto termino de salgar as costelas internas, ele toca na parte externa do animal, sua mão passa nos furo da flecha e depois no da faca.

— É um lindo animal. — Ele fala com certo prazer macabro enquanto sua mão desliza na carne, chega próximo das minhas. Percebo e rapidamente eu recolho minha mão.

— Está pronto. — Vejo o servo voltar, com as ferramentas nas mãos, acenando para o nobre.

— Bem a tempo. — fala ele sorrindo.

O nobre fala com o servo rapidamente, ele tira mais alguns saquinhos de tecido do longo casaco e entrega ao meu pai. O servo carrega minha grande caça do dia enquanto o nobre os coelhos. Ele se curva cumprimentando com o chapéu para o meu pai e a mim. Se vira e caminha no fim da tarde em direção a estrada.

— Venha comer, filha.

— Quem era ele, pai?

— Conde Vlad.


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