Sem Glória Para Você escrita por phmmoura


Capítulo 4
Capítulo 4




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Sam tinha os olhos fechados. Era um dos raros momentos em que quase podia descansar; sua mente não era assombrada pelas visões. Mas no instante em que escutou o rangido fraco da porta, ficou em alerta. No escuro, ele assistiu o rosto familiar entrar na sala e relaxou o punho.

— Nada — disse Sam antes que Nate pudesse perguntar.

— Maldição — murmurou o Padre, cobrindo o rosto.

Sam não pôde conter o riso. Acho que é o mais perto de um xingamento que ele consegue… mesmo depois de tudo, o jovem pensou.

— Acho que alguém pegou.

O Padre franziu o cenho e passou uma mão pelo rosto exausto.

— Quem… seria louco o bastante para querer aquela… aquela blasfêmia?

Sam zombou.

— Nós — respondeu de forma seca. O Padre o encarou enquanto o silêncio entre os dois se tornava mais desconfortável. — Eu vou encontrar.

Nate abriu a boca, mas logo em seguida a fechou junto com os olhos. Ele respirou fundo e passou a costumeira sacola de plástico com leite e um pão antes de deixar Sam sozinho no quarto.

Sam descansou as costas na parede de frente para a porta de novo e deu uma mordida no pão. Por mais que fosse fresco, o gosto era pior que pão velho; não conseguia sentir nada o comendo. Todos os meus outros sentidos foram aprimorados, mas meu paladar se foi agora… É aquela coisa dos filmes, né? Você perde um sentido e os outros ficam mais fortes, pensou e soltou uma risada fraca.

Se só tivesse precisado sacrificar meu paladar por esse poder… Se não tivesse que perder meus pais… Se a Mirela ainda estivesse viva… Antes que notasse, lágrimas quentes caíam pelo rosto de Sam. Ele trouxe uma mão até o rosto e sentiu-as com um dedo. Se ainda posso chorar, significa que ainda sou humano… nem que um pouco. A ideia o fez chorar mais.

Por que tinha que ser eu? Sam perguntou para si mesmo enquanto abraçava a cabeça. Por que eu tive de perder tudo? Por que virei esse monstro? Pra salvar esta cidade? Salvar os filhos da puta que me querem morto? Eu devia tê-los deixado morrer!

Imagens do que aconteceu no parque repetindo-se na cidade toda encheram sua cabeça. Ele se divertiu enquanto o mar de fogo se espalhava pela cidade e os gritos enchiam suas orelhas. Mas, então, as imagens mudaram. Agora, a mente de Sam mostrava pessoas que ele conheceu durante a vida toda cobertas de sangue. Ele viu seus amigos da academia e escola mortos; viu o casal de velhinhos que mantinha o mercado que sua mãe frequentava olharem para ele com expressões vazias; viu Thiago estendendo uma mão para ele antes da luz branca o decepar a cabeça; viu sua irmã; viu sua irmã chorando sobre o cadáver dos pais.

Não! Sam gritou em seu coração e balançou a cabeça para que as imagens sumissem. Elas se foram, mas seu corpo tremia. Por que tinha que ser eu? De repente, o rosto do Padre apareceu em sua mente. Foi ele quem me deu o sangue. Foi ele quem me deixou assim. É tudo culpa dele… Sam sentiu o sangue ferver, seu estômago se revirava conforme a raiva o preenchia. Mas ela se foi quase no momento em que chegou. Não… Fui eu quem fiz isso comigo mesmo… eu bebi o sangue porque queria vingança…

Nate o contara como conseguiu o sangue. Uma versão branca de mim apareceu do nada e disse muita bosta sobre o escolhido capaz de ver aqueles caras… Essa merda toda. Qualquer um que acreditasse seria idiota. Mas, mesmo assim, Sam não sentia necessidade em duvidar do Padre. Thiago também não podia vê-los. Ninguém lá podia… exceto eu…

Então, por que eu? Por que só eu podia vê-los? Sou o escolhido? Sempre odiei essa merda nos filmes. Quem a porra vai escolhendo os outros aleatoriamente? Deus? A ideia fez uma risada vazia e baixa sair de seus lábios. Se foi, ele vai ter que implorar pelo meu perdão.

— Sam? — Uma voz baixa e familiar alcançou seus ouvidos.

O jovem olhou pra cima. Nate encarou ele. Nem o ouvi. A ideia o deixou cauteloso. Algo está errado. Ainda no escuro, Sam sabia que o Padre prendia o fôlego e suava. Ele olhou para baixo e percebeu a razão para tal. Minha mão… Em vez de dedos, ele tinha garras cobertas de pelo. Embora não esteja usando o sangue… eu não tenho muito tempo, entendeu, fechando as mãos lentamente. Preciso encontrar aquilo hoje.

— É… é hora — disse Nate com a mesma voz fraca.

Sam riu. Então até ele está com medo de mim agora, pensou, levantando-se de repente. Ele pensou que o Padre iria tremer e recuar, mas Nate nem se tremeu. Ele tem mais coragem do que demonstra. Sam virou-se para a janela, vendo o brilho laranja diminuir cada vez mais.

Quando o sol finalmente se pôs, Sam se moveu, mais rápido do que nunca. Ficou de pé no prédio mais alto e observou a cidade. Metade da cidade estava em completa escuridão; a outra metade tinha pequenas órbitas de luz aqui e acolá.

Sam fechou os olhos e respirou fundo, deixando seus sentidos expandirem. Podia sentir o ódio, tristeza e desespero das pessoas. Mas não o que queria. Sam fechou o punho esquerdo com força e agarrou o cotovelo esquerdo com a mão direita.

Não tem como voltar depois dessa vez. Olhou para o braço, para o punho. Nunca quis socar alguém. Sempre odiei isso. Ah, é… é por isso que prefiro a arte suave, notou, com um sorriso nos lábios. Thiago sempre tirou uma comigo por causa disso…

Com outra respiração profunda, ele fechou os olhos e soltou seu controle sobre o sangue.

As veias se encheram com o sangue negro e apareciam contra sua pele cinza. Em um piscar de olhos, ele não tinha mais dedos na mão esquerda, só garras de fera. Para sempre.

Enquanto sua respiração ficava mais errática e irregular, a dor ameaçava dominar sua mente. Sam agarrou o cotovelo esquerdo com toda sua força. Vamos… vamos! Você vai tomar tudo depois, então me deixe fazer isso agora! Ele gritou para o sangue. Sam não fazia ideia se seus pensamentos alcançavam o sangue, mas ele conseguiu manter a transformação limitada para seu antebraço.

O braço pulsava e queimava, tão pesado que Sam precisava da outra mão para apoiá-lo. Só respirar já o machucava. Ainda assim, havia um sorriso em seus lábios. Te dei meu braço, então faça isso por mim, pensou, ordenando o sangue. Ele levantou o braço o mais alto que podia e se concentrou. Enquanto virava para todas as direções, Sam finalmente sentiu o sangue pulsando, a mesma sensação que sentia quando encontrava algo para matar. A reação que buscava.

A alegria fez Sam perder o controle e a fera dentro dele tentou tomar posse de tudo. Ele teve de cerrar o maxilar para manter o grito preso na garganta. A dor persistia, mas ao menos ele conseguia se mover. Naquela direção, pensou, sorrindo e arfando, sua mente quase via a última peça que precisava para terminar tudo aquilo.

Sam pulou e correu entre os prédios e casas, sempre escondido nas sombras. A pulsação ficou mais forte e para impedir o sangue de dominá-lo, ele não podia mais correr. Com quase toda sua concentração suprimindo a fera, Sam olhou em volta. Quando seus olhos pousaram no velho depósito, soube que os ossos estavam lá. Quem foi o puto que trouxe essa merda pra cá? Perguntou-se enquanto se arrastava para mais perto.

Pela porta aberta, Sam escutou barulhos e, quando espiou lá dentro, pôde ver uma luz fraca no fundo do depósito. Enquanto as sombras feitas por ela dançavam, ele soube que a fonte era uma chama. Enquanto se aproximava da luz, os barulhos aumentavam.

Eu estava certo, pensou, em chacota. Só doido feito eu ia querer aquilo. Sam sabia no momento em que viu o grupo próximo da única vela. Dos cinco, três tinham tatuagens cobrindo seus braços; o outro tinha tatuagens no rosto também e um até afiara seus dentes como um animal. Quem faria esse tipo de modificação corporal?

Enquanto fitava o grupo, uma velha memória surgiu. Ah, sim, conheço aquele idiota. Ele é o dado do estúdio de tatuagem no shopping. Do nada, Sam riu. Mãe gritou comigo só porque falei que pensava em arrumar uma tatuagem com ele. E ela até me levou para o Nate, só pra ouvir algo sobre deus condenar alterações na carne e tal.

Deixando a memória de lado, Sam encarou a quinta pessoa. Aquela mina tem uma porra de uma espada Kung Fu! Ele teve dificuldade em conter a risada. Quando a ânsia parou, suspirou. Em outra vida, eu acharia eles bem legais.

A dor repentina em seu braço trouxe a razão de volta. Mordendo os lábios, Sam procurou com um olho aberto até finalmente encontrar os ossos. Ainda que a caveira não tivesse pele, ele a reconheceu. Com o sangue fervendo, demorou um instante para Sam notar que a caveira estava no topo de um altar. Estão reverenciando ela? Idiotas… idiotas de merda! HAHAHAH!

Com uma explosão de dor, Sam mordeu seus lábios e bufou para conter o sangue, mas não bastou. Não mais. Estou perdendo minha mente humana, soube logo de cara. Ele soltou um grito, um bestial, que sobrepôs todos os outros sons e fez as paredes tremerem. Enquanto corria atrás da caveira com sangue manchando a visão, Sam viu o grupo tremendo de medo.

A única que não tremia era a garota com a espada. Ela o encarou nos olhos, mas até quando desembainhou a espada e o atacou, foi lenta demais para ele. Sam evitou o golpe enquanto fechava as garras em volta da caveira e corria atravessando a parede.

A igreja, disse para si mesmo repetidas vezes, tudo para manter sua sanidade por mais algumas horas. Nate… preciso que ele… acabe com… tudo…

— Aqui… — disse Sam, por meio de um grunhido áspero enquanto entregava a caveira ao Padre. Sam levou a mão à garganta; ainda que se sentisse normal, também podia sentir que algo mudara; sua voz mal soava humana. — Vai… demorar…?

Nate pegou a caveira com ambas as mãos, mas nunca direcionou um olhar a ela. Tudo que fez foi olhar nos olhos de Sam e permanecer onde estava. Antes que o Padre dissesse qualquer coisa, Sam não podia mais ficar de pé.

Usando o Padre de apoio, Sam se arrastou até o quarto.

— Espere aqui — disse Nate, e então se fora, deixando a caveira em uma mesinha no meio do quarto.

Enquanto a respiração desacelerava, Sam olhava a caveira, todas as memórias retornavam. O sangue enfureceu-se dentro dele, mas ele já não sentia a dor. Frio… Nunca pensei que pudesse sentir frio nesta cidade, pensou, vagamente, com os olhos se fechando.

Não… Não posso dormir… ainda não… Ele se forçou a olhar para a caveira. Ainda dormente, precisava da dor para se manter acordado, manter-se humano por mais um pouco. Não posso morrer… ainda não… não tão perto…

O Padre voltou com um livro em mãos. Ele o descansou na mesa ao lado da caveira. Enquanto Nate pegava a pedra vermelho escuro e o coração do esconderijo, Sam olhou para o livro. Eu conheço isso… Nate disse que era uma bíblia… mas depois que foi manchada em sangue, ela mudou… é uma bíblia do demônio agora, pensou, rindo. Sou um idiota por pensar nessas coisas agora…

— Padre… Não consigo… — Sam agarrou a manga de Nate.

O Padre engoliu em seco e assentiu. Nada disse enquanto empurrava a mesa e fazia um círculo com giz no chão. Enquanto olhava o livro, ele desenhou outro círculo, então uma estrela e depois padrões complexos que Sam não compreendia.

De repente, Sam escutou algo. Foi fraco no começo, mas logo o som ficou mais alto. Ele atentou os ouvidos, mas sentiu raiva antes de compreender qualquer palavra.

— Me encontraram — murmurou.

Nate parou de desenhar e olhou para ele. Depois olhou para a porta. Ele mordeu seus lábios e continuou o desenho, com o rosto tão pálido quanto o de Sam.

Sam olhou para a caveira e riu. Pessoas loucas, realmente, pensou enquanto olhava para a fraca luz vermelha presa na mandíbula entre os dentes. Sam alcançou, pegou-a e a ergueu contra a luz na janela.

Nate olhou para ela, mas voltou sua atenção ao livro sem perguntar nada.

Um rastreador, disse Sam, quebrando-o com os dedos. Melhor se apressar. Não temos tempo, quis dizer, mas apenas um grunhido baixo saiu de seus lábios. Com uma sensação indiferente, Sam notou que não conseguia mais falar.

As vozes ficavam mais altas enquanto sons de coisas se quebrando alcançavam o quarto. Conforme os gritos preenchiam a igreja no segundo seguinte, Nate tentou desenhar, mas seu braço tremia tanto que ele derrubou o giz e então Sam viu.

Seu braço… Não era como o de Sam, mas era cinza e com veias negras pulsando contra a pele. Que nem o meu…

O padre puxou a manga para baixo e notou que Sam vira. Ele não precisava perguntar mais, nem podia. Nate está morrendo por causa do sangue.

— Está… feito… — disse Nate, de voz rouca. Ele está com dor, notou Sam. — Você sabe… o que precisa… fazer…

Sam se arrastou até o centro da sala. Com a consciência sumindo, ele colocou o sangue endurecido, o coração ainda pulsante e a caveira no círculo. Com seu braço bestial, os esmagou até reduzi-los a polpa.

Enquanto usava o que restava de sua mente humana para se levantar, alguém abriu a porta com força.

Enquanto sentia o ar em volta de si mudar, Sam virou-se para a porta. A mina da espada… ei… conheço ela…

Mas antes que pudesse pensar, Sam viu uma arma apontada para ele. Escutou o tiro, mas Nate pulou na frente da bala mirada para ele.

O Padre se virou para Sam com sua mão no peito. Enquanto a vida se esvaia de si, a mão de Nate soltava a roupa.

Sam olhou para o Padre enquanto a luz de seus olhos sumia. Sam respirou fundo e, antes que notasse, lágrimas caíam de seu olho bom. Então ainda há algo humano em mim… Nate, eu não tenho ideia se deveria agradecê-lo ou não, mas, ao menos, me faça um favor. Diga a minha mãe, pai e Mirela o que aconteceu quando os encontrar lá em cima.

A ideia o fez rir enquanto sentia seu corpo desaparecer. Então ainda acredito em coisas como o paraíso, hein? Se não fosse pro inferno, gostaria de encontrar deus e perguntar por que isso teve que acontecer, pensou, enquanto o sangue finalmente corrompia sua mente humana.


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