Meus Olhos Enxergam escrita por phmmoura


Capítulo 1
Capítulo 1




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— Olha lá — alguém sussurrou. — Ela voltou mesmo? Depois daquilo tudo?

— Ela foi presa ou algo assim, né? — perguntou outra voz.

— Não, besta — falou um terceiro. — Ela estava na clínica de reabilitação.

— Ah, foi mesmo. Fiquei sabendo que ela quase teve uma overdose na véspera de ano novo.

Apesar de sussurrarem, a garota conseguia ouvir tudo. Estou surpresa que se deem ao trabalho de sussurrar, pensou Eliza enquanto caminhava até a última fileira, os olhos abaixados para evitar contato visual. Quando sentou na cadeira próxima à janela, ela descansou a cabeça nos braços e fechou os olhos.

Faz uma semana desde que fui liberada, pensou ela. Achei que vocês já teriam cansado desse assunto agora. A primeira aula nem começara e já estava cansada. A garota tinha uma forte impressão de que muitos alunos a encaravam. Mas, quando abriu os olhos e olhou ao redor da sala, ninguém olhava em sua direção.

Eliza fechou os olhos de novo e moveu os braços para cobrir o rosto. Respirando fundo, a garota relaxou e abriu os olhos de novo. Depois de encarar seu braço por alguns segundos, a pele começou a ficar transparente. Um segundo depois, os músculos, veias, sangue e ossos também desapareceram, então Eliza confirmou que os alunos olhavam para ela.

Controlando a vontade de zombar, ela piscou e sua visão voltou ao normal. Seus olhos começaram a formigar e ela os fechou para aliviar a sensação. Vocês já não deviam ter enjoado de mim? Sei que é o primeiro dia que voltei e pá, mas não sou nada interessante, pensou, suspirando. Se quiserem fofocar tanto assim, que tal escolherem alguém com uma vida mais fascinante?

Eliza ouviu a porta e moveu seu braço um pouco. Tipo ela. A vida dessa garota é bem mais legal que a minha. Uma de seus colegas caminhava até sua carteira naquele momento. A garota jogou seus longos cabelos castanhos pra trás com uma das mãos enquanto sentava. Não demorou nem um segundo até duas amigas sentarem perto dela e começarem a conversar.

É, falem dela, não de mim. Sério, ela tem uma vida bem mais interessante. Eliza observava de esguelha. As amigas da garota riam, brincavam com as mãos e refaziam suas maquiagens.

Sei que dá a entender que ela não consegue manter uma conversa além dessas desgraçadas, como se a vida dependesse disso, mas é tudo fachada. Se suas amigas soubessem que você tem um trabalho pra juntar dinheiro e estudar fora do país enquanto ainda cuida da casa, já que sua mãe deixou você e seus dois irmãos…

A porta abriu de novo e Eliza deu uma espiada. Ele também é assunto pra dar e vender. Sabiam que ele está tentando ser um artista e, para tal, está procurando por novas experiências para aprofundar seu trabalho? Até beijou um cara após tomar uma droga aí, embora não sei se deu certo com o outro cara, pensou ela, lembrando-se de como seus olhos fecharam quando os dois começaram a se despir. Não curto essas coisas.

Aquela lá é outra legal. Vai pro cemitério e tenta invocar os mortos. Pode ser só loucura, mas é bem mais emocionante do que a chata aqui. Ou quem sabe aquele ali, com um pau tão pequeno que usou esteróides feito louco e treinou pra compensar. Pensando bem, ele ainda não falou com uma garota… Pode ser engraçadinho, mas tenho certeza de que é bem mais interessante do que eu. Ou quem sabe… ela. Duvido que ela tenha uma vida interessante…

Eliza desviou o olhar quando viu Bianca. É… acho que a vidinha perfeita dessa daí que parece tirada da TV seria chata demais para se fofocar, pensou, com a mente lembrando de tudo que ouvira da garota. Será que alguma coisa legal acontece na vida dela pra variar?

Bianca, dona de uma pele de porcelana e um longo e macio cabelo ruivo que fazia Eliza se perguntar vez ou outra se ela era mesmo brasileira, não tinha nada que atiçasse o interesse dos fofoqueiros de plantão da escola. Na verdade, ela é chata até pra mim, notou Eliza quando se lembrou de que sua própria mãe falava da garota. Entre o pai de Bianca, o chefe da polícia, e a mãe, uma respeitável empreendedora dona de uma das maiores lojas de moda na região metropolitana, a garota mal tinha qualquer problema de vida, mas as pessoas ainda a admiravam. Aposto que a única preocupação da vida dela é o que vestir.

— Viram quem voltou? — perguntou alguém. — Melhor pedir uma proteção extra pro seu pai. Ela pode tá precisando de uma graninha pra você sabem o quê. — Quem quer que falasse fez um som forte de inalação, seguido de uma risada.

Agora virei viciada em cocaína, pensou Eliza, fungando e revirando os olhos. Pode deixar, se eu tivesse dinheiro pra isso, preferiria gastar em outra coisa. Pra começo de conversa, um fone de ouvido bom o suficiente para deixar de escutar essa sua voz de gato brigando com um sem teto.

— Para, vai. Ela passou por muita coisa — sussurrou uma voz em resposta. Apesar de serem só colegas de classe, Eliza reconheceu a dona da voz e voltou sua atenção à ruiva. — Não sabemos quais as circunstâncias dela para sair por aí a julgando.

Como você saberia? pensou Eliza enquanto Bianca mudava de assunto. Meu pai trabalha pro seu… será que ele fala de mim na delegacia? O pai dela nunca falava das partes ruins do serviço em casa, só contava histórias engraçadas. Ou pelo menos costumava… faz quanto tempo desde que escutei uma história dele?

Apesar dos amigos continuarem trazendo o assunto Eliza de volta, Bianca se recusava a falar sobre a garota e pegou o celular. Ela é realmente legal ou é tudo fingimento pra parecer estar acima de fofocas? Eliza se perguntou enquanto observava as duas garotas que queriam falar sobre ela alto o bastante para a ruiva e todo mundo ouvir. Uma delas notou que Eliza olhava e cutucou a outra com um sorriso. A outra garota olhou na direção de Eliza, sussurrou algo e ambas riram no instante seguinte.

Ah, caramba, por favor, sem mais rumores. Não sei o que farei se minha popularidade cair ainda mais. Mas pensando bem, o fundo do poço é… bom, o fundo do poço. Eliza riu de seus pensamentos.

Bianca continuou ignorando as garotas, olhando seu celular como se fosse a coisa mais interessante do mundo. A ruiva levantou a cabeça e virou-se para Eliza, fazendo contato visual. Nossa… cabelos ruivos e olhos verdes? Pode isso? A ruiva voltou sua atenção para o celular, mas Eliza conseguiu ver o sorriso dela.

A garota ficou olhando a ruiva e, antes que notasse, cobrira o rosto com o braço novamente e limpou a mente. Acabei de usar alguns instantes atrás… melhor não abusar, senão posso acabar… As memórias dos últimos meses voltaram. A respiração dela ficou rápida e irregular. O suor descia pela testa e as pernas tremiam. Mas a vontade de olhar por trás do que todos viam foi maior.

Não vai ser como antes… Eu consigo controlar, disse Eliza para si mesma, fechando os olhos. É o meu poder… Posso controlá-lo. Voltando a respirar normalmente, ela olhou na direção em que Bianca estaria e relaxou por completo, focando-se apenas em seus olhos. Primeiro, ela viu seu braço… mas, que nem antes, os cantos de sua visão embaçou e seu braço desapareceu aos poucos.

Por um segundo, Eliza viu a ruiva como as outras pessoas viam. Enquanto focava em Bianca, as roupas ficaram transparentes e depois desapareceram. Puta merda! Eliza arfou e engasgou. Ela perdeu o controle de seus poderes. A visão ficou embaçada e tudo girou. Ela fechou os olhos com força, esperando que as coisas voltassem ao normal.

— Ela tá fazendo o quê?

— Aposto que engasgou com as drogas.

— No meio da sala? Aqui tem coragem.

Mesmo sem ver, ela conseguia sentir o olhar de todos nela.

Enquanto Eliza esperava sua cabeça parar de doer e a vontade de vomitar desaparecer, todos voltavam aos sussurros nem tão baixos. Calem a boca. A culpa é dela, pensou, esfregando os olhos. Com a respiração fraca e estável, Eliza voltou seus olhos para Bianca. Ela se concentrou de novo e pôde ver por baixo das roupas da garota de novo. Ainda que já soubesse o que veria, Eliza ficou vermelha de todo jeito.

Quem diabos vem pra aula com uma lingerie de seda preta? Você encontrou com seu namorado ou algo do tipo antes de vir pra aula? Vai ver ele depois? Eliza não conseguia tirar os olhos da garota, ela é tão… linda, a ideia veio até sua mente enquanto olhava a pele macia da ruiva. Ela olhou para suas pernas, sua barriga, suas costas… Aposto que você fica horas e horas, e deve gastar horrores, só cuidando dessa pele bonita sua, não é mesmo?

Enquanto Bianca falava com um garoto, Eliza viu a marca na coxa interna da ruiva. Espera, o que é aquilo? Marca de nascimento? Vira aí, Bianca. Me deixa ver. Eliza esperou até que o garoto terminasse de falar e fosse embora. Finalmente! Vamos lá, Vermelha, vira e me mostre.

A ruiva voltou-se para suas amigas e voltaram a conversar, mas Eliza ainda não conseguia ver a marca. Apenas levante sua perna direita um pouquinho, Vermelha. Não é tão difícil, pensou, levantando o queixo um pouco e tentando ver. Hum… Então não é marca de nascimento, hein? pensou Eliza quando Bianca colocou um pé no eixo da cadeira e deixou a marca visível para a outra.

Por que você tem um machucado aí, Ruiva? Embora não fosse grande, era bem visível para Eliza. Vermelho e um pouco inchado, o hematoma destruía a beleza da pele de Bianca. Após olhar por tanto tempo, a garota notou que era quase do tamanho de uma mão.

Então você e seu namorado curtem essas coisas, hein? Falando sério, sinto muito por ter chamado você de chata, pensou Eliza, fechando os olhos e esperando pela sensação de formigamento nos olhos passar. Sumiu bem mais rápido agora, percebeu ela. Graças a Deus.

Quando a dor sumiu, Eliza sorriu. Quem sabe eu deva revelar isso para a turma. Eles esqueceriam de mim e me deixariam no meu cantinho, para variar. Que tipo de boatos sairia sobre a filha do chefe da polícia? A garota se entreteve imaginando, controlando a vontade de rir enquanto os boatos ficavam mais loucos em sua mente…

Quando o sino tocou e o professor terminou a aula, Eliza enfiou o livro na bolsa. Estou faminta, pensou, correndo para a porta. Mas não foi rápida o bastante para evitar o sussurro dos colegas.

— Pra onde ela vai com tanta pressa? — disse alguém.

— Aposto que é pra aliviar a cheirada — outro respondeu, seguido de risadas.

Eliza suspirou. Eles ainda estão falando de mim… acho que é a única coisa que seus cerebrozinhos conseguem fazer, pensou, revirando os olhos. Ela tirou o fone de ouvido da bolsa e o desembaraçou, mas a mão parou antes de levá-los ao ouvido. Amanda…

Ainda que Eliza pudesse ver só a nuca dela, reconheceria aquele longo cabelo preto a qualquer dia. Amanda, pensou de novo, olhando sua amiga indo em direção às escadas. A garota respirou fundo e pressionou os lábios. Após um instante de hesitação, ela deu uma pequena corrida. Apenas um pouco mais e sua amiga estaria ao alcance.

Amanda já estava no último degrau, mas quando Eliza viu sua amiga falando com o namorado e o sorriso estampado no rosto da mesma, ela parou. Não posso… Não posso só ir lá e falar com ela… Não depois de tudo que fiz a ela, pensou, fechando o punho de sua trêmula mão. Ela observou enquanto Amanda se afastava mais e mais dela. Vendo o sorriso da amiga a deixava feliz, mas também a machucava. Todas as memórias apenas a lembraram do que fizera e o que perdera.

Sou muito covarde, pensou, depois de esperar alguns minutos antes de ir para casa. Tudo que precisava era pedir desculpas. Não faria diferença… E duvido que ela vá me perdoar… mas é o mínimo que eu devo fazer. Ela parou para imaginar o rosto de Amanda. Quanto tempo passou desde que ela conversou comigo com aquele sorriso despreocupado? Droga… Droga… Tudo por causa desse poder idiota…

— Mãe? — perguntou Eliza no instante em que abriu a porta.

Ela está trabalhando, percebeu assim que não recebeu resposta. Eliza mordeu a unha e fechou os olhos. Sua mãe sempre estivera em casa desde o dia em que Eliza fora liberada da reabilitação. Mas acho que as férias dela acabaram… Embora não gostasse de admitir, foi a primeira vez que Eliza notou o quão confortante era a presença de sua mãe.

Respirando fundo para controlar a ansiedade, a garota foi para a cozinha e encontrou um papel no micro-ondas. Aqueça isso por um minutos. Fique em casa. Seu irmão está na casa de um amigo. Seu pai e eu voltamos para o jantar. Com amor, mãe.

Nem o pai ou o Fábio vão voltar pra casa, pensou Eliza enquanto ligava o micro-ondas, as borboletas em seu estômago indo a loucura. Ela tirou o prato da mesa e pegou um garfo e faca, então se sentou à mesa. Mas, enquanto olhava a comida, a garota notou que sua fome se fora. Ainda assim, ela se forçou a comer o máximo que aguentasse.

Depois que guardou as sobras e limpou os talheres, ela sentou no sofá. Após um minuto parada, ela levantou e pegou os materiais de limpeza. Depois da reabilitação, Eliza começou a ajudar sua mãe com as tarefas domésticas. Foi só uma atividade para ficar ocupada por um tempo. Mais pra evitar deixar a mente vazia, né, Padre? pensou, sorrindo. Como ele disse? A mente vazia é a oficina do diabo, Eliza escutara o padre contar a sua mãe.

A garota mal fizera qualquer tarefa doméstica a vida toda. Na verdade, toda vez que a mãe a pedia alguma ajuda, ela fingia ignorar. Porém, não reclamou nem foi contra ajudar quando a mãe sugerira depois de tudo. E, sem perceber, limpar a casa e escutar sua mãe falar sobre o serviço acalmara a garota mais do que ela gostaria de admitir.

Mas, depois que terminou de varrer e esfregar o chão, limpar os quartos e banheiros, fora a roupa suja, viu-se novamente no sofá. Ela pensou em tirar uma soneca, ou ver um filme, ou quem sabe estudar. Mas nenhuma opção parecia boa o bastante para chamar seu interesse. O que… O que eu fazia antes da reabilitação?

Ela olhou para o seu reflexo na TV. Aposto que só passa porcaria a essa hora, pensou, ligando o aparelho. Em vez dos programas regulares, estava passando o noticiário nacional. A essa hora? Depois de um momento, Eliza notou que mostravam a cidade vizinha.

— As autoridades ainda não tem informação do que causou a explosão no laboratório. O incêndio ainda não foi controlado e os bombeiros pediram ajuda das cidades próximas — disse o repórter, antes da imagem mudar. O laboratório que Eliza visitara uma vez como excursão escolar queimava. Já tinha três caminhões de bombeiro, mas mais vinham. — O número de vítimas é desconhecido, mas as estimativas são de mil. Estão movendo os pacientes para cidades próximas…

Eliza desligou a TV e enterrou o rosto na almofada. Então mãe e pai não vem pra casa hoje, ela entendeu. Se trouxessem os pacientes, mãe vai ter hora extra no hospital. E o pai deve ajudar com os resgates. Não era raro o pai chegar atrasado. A papelada da polícia levava tempo, mas desde a reabilitação, ele se certificava de voltar a tempo do jantar.

Um som acordou Eliza. Ainda de olhos fechados, ela alcançou o telefone.

— Alô? — disse, com voz rouca.

— Eliza? Graças aos céus você está em casa — disse a mãe, o alívio na voz evidente. — Fiquei preocupada. Liguei algumas vezes, mas não teve resposta.

— Foi mal, mãe. Tirei uma soneca. — A garota sentou e tirou o telefone do bolso. Nossa… Nove chamadas não é algumas vezes, ela pensou, rindo. — O que foi?

— Eu e seu pai… erh… — A mãe não terminou.

— Não vão voltar pro jantar, certo? — Eliza terminou a frase de sua mãe. Ainda que eu não esteja 100%, não precisa me tratar como criança, pensou. — Vocês estão ajudando com o acidente, né?

— Sim. E seu irmão vai ficar na casa do amigo — disse ela, depois ficou quieta. Eliza conseguia sentir o que se passava na cabeça da mãe. — Se quiser, posso ir para ca…

— Não precisa se preocupar comigo, mãe. — Eliza tentou manter o tom casual para esconder a ansiedade. Tecnicamente sou uma adulta. Não posso continuar assim só porque minha mamãe não está em casa, ela disse para si.

— Tudo bem… — A voz de sua mãe não soava convencida. Ela me conhece muito bem. — O que você vai fazer pro jantar?

Ela considerou um pouco, mas não estava com vontade de cozinhar. E preciso sair um pouco.

— Acho que vou sair.

— Eliza… — A garota imaginou o rosto da mãe cheio de preocupação do outro lado.

— Prometo que não farei nada idiota — disse Eliza. Espero conseguir manter essa promessa.

Ela ouviu alguém chamando o nome de sua mãe a distância.

— Tá, mas tome cuidado. E, por favor, volte para casa o mais rápido possível. Não ande sozinha. É muito perigoso. Preciso ir. Te amo.

A mãe terminou a ligação antes que ela pudesse se despedir. Acho que ela está muito ocupada, pensou Eliza enquanto devolvia o telefone.

Depois de um minuto respirando fundo no sofá, Eliza foi para o quarto, trocou de roupas e saiu para comer fora pela primeira vez após semanas.

Não foi tão ruim, pensou enquanto saía do fast food. Embora o atendente a conhecesse, ele não fez nenhuma piada dessa vez. Não podia, senão eu poderia arrumar confusão e dar uma linda demissão pra ele. A ideia pareceu convidativa por um momento, mas ela balançou a cabeça para dispensar a ideia. Minha vida é curta demais pra perder tempo pensando em um cara daqueles.

Eliza pegou o celular e releu as mensagens de sua mãe de novo. Precisarei fazer hora extra. Não acho que eu e seu pai voltamos hoje. Por favor, tome cuidado e vá para casa logo. Se ela não conseguiu me ligar, significa que o hospital deve estar uma loucura, pensou, guardando o celular de volta no bolso da jaqueta e deixando as mãos lá.

A garota caminhou sem rumo pelas ruas. Não quero ir para casa agora. Não posso ficar lá dentro sozinha sem ficar louca, pensou. Antes dos poderes, ela adorava ter privacidade. Quando estava em casa, Eliza ficava no quarto. Mas apenas perdia tempo na internet ou conversando com o pessoal…

Amanda… Eliza olhou em volta. Ela vive um quarteirão daqui, notou, virando a cabeça na direção da casa da amiga. Acho que está dentro do meu poder. A garota mordeu os lábios, fechou os olhos e respirou devagar. Quando a respiração se acalmou, ela abriu os olhos e relaxou o corpo, concentrando-se nas árvores em volta dela.

Depois de alguns segundos, o caminhão e as folhas sumiram. Um momento depois, Eliza conseguia ver as árvores, mas sua visão não parou. A casa atrás delas se aproximou e então a parede também ficou transparente. Os habitantes estavam a vista, mas só por um segundo. Ela forçou seus poderes a passar por eles logo. Não quero espiar pessoas que nem conheço sem motivo… Será que estou virando uma expiadora pervertida?

Eliza deixou o pensamento de lado enquanto sua visão se movia pela casa. Meus olhos estão ficando mais rápidos, pensou, aliviada que não sentia qualquer dor. Isso era o bastante pra fazer eles arderem no começo… especialmente quando eu precisava controlá-los. As memórias daqueles dias surgiram em sua mente. Não… não pense nisso… não pense nisso. Não vou deixar que isso me arruíne mais, disse para si mesma, fechando os olhos por um segundo.

Para sua surpresa, seus poderes continuaram funcionando. Acho que estou controlando eles melhor, entendeu, um tanto feliz pelo fato. A falta de concentração fez sua visão voltar à casa, então Eliza limpou a mente e se focou.

Finalmente, ela conseguiu ver a casa de dois andares que de tanto visitar, era quase sua segunda casa. O salão de cabeleireiro no primeiro andar continuava agitado como sempre. Embora Amanda não trabalhasse lá oficialmente, de vez em quando, sua amiga ajudava os pais com a manicure. Mas, naquele instante, ela estava no quarto no segundo andar, aos beijos com o namorado. Foi mal, Amanda, pensou Eliza, fechando os olhos.

Levou alguns segundos, mas sua visão finalmente voltou ao normal. Com um sorriso e bochechas vermelhas, Eliza levantou a mão e olhou para suas unhas mal cuidadas. Embora não ligasse muito, Amanda insistia em fazer suas unhas. Eliza nunca admitiu, mas gostava do esmalte roxo que sua amiga insistiu que ela usasse. Queria poder fazer as coisas voltarem ao jeito que eram, ela pensou, colocando as mãos no bolso.

A necessidade repentina de ver o rosto da amiga aumentou. Não… Não posso… Não posso invadir a privacidade dela assim, pensou. Além do mais… Não posso abusar mais desse poder… a dor…

Antes das memórias saltarem dentro de sua mente, Eliza suspirou ruidosamente e virou-se, indo para casa. A mãe e o pai provavelmente não voltaram ainda… e não estou cansada… Ela parou no parquinho a dois quarteirões de casa. Ah é… Eu costumava vir aqui o tempo todo com o Fábio, pensou, rindo do nada. Quanto tempo faz que brinquei aqui?

Embora o parque estivesse vazio àquela hora, ela ainda conferiu o arredor antes de sentar-se nos balanços. Colocando o pé no chão, Eliza se empurrou até começar a balançar, indo mais alto a cada volta. Caramba! Nunca fui tão alto antes, pensou, sorrindo e jogando seu peso para ir mais alto. Lembrou-se de quando era pequena e chorou porque o pai a empurrou alto demais. Por que eu estava com tanto medo disso? É quase como voar.

Quando alcançou o ponto mais alto, algo na cerca do parque pegou seu interesse. Enterrando os pés no chão, Eliza parou o momento e focou os olhos. Ela sabia que não deveria usar seus poderes muito, mas a curiosidade a venceu.

Dessa vez, as árvores, plantas, os brinquedos e a cerca ficaram transparentes em um piscar de olhos. Ela ficou tão excitada que foi difícil controlar os poderes, então sua visão foi muito além. Merda. Eliza fechou os olhos e respirou fundo. Quando os abriu de novo, sua visão continuou no beco em vez de avançar.

Droga! Por que está tão escuro? Eliza aprendera que seu poder podia usar quase toda fonte de luz para iluminar sua visão. Mas se a luz fosse muito fraca, mal serviria para que visse. Esse poder não poderia funcionar tipo um óculos de visão noturna?

Concentrando-se, ela conseguia dizer que havia quatro pessoas no beco. Uma estava de costas para a cerca, por isso Eliza não conseguiu ver seu rosto. Ela só podia ver que usava um capuz preto. Os outros três se aproximaram dele.

O Encapuzado era menor que o resto, mas isso não o impediu de chutar o mais próximo bem no pescoço. Eita! Só vi isso em filmes, pensou Eliza, tão surpresa que sua visão avançou um pouco. Droga. Ela respirou fundo e focou-se. O beco retornou e o Encapuzado lutava com os outros dois agora. Tá mais pra limpar o chão com eles. Havia um sorriso em seus lábios antes que Eliza notasse.

Vamos lá… vire-se, vire-se, Eliza se encontrou torcendo que o Encapuzado vira-se para que ela visse o rosto. Não quero ficar só vendo suas costas, reclamou mentalmente. No final do beco, outra pessoa apareceu. Ele ficou nas sombras, esperando por um momento em que Encapuzado não estivesse olhando naquela direção. Eliza focou-se no Encapuzado e só notou o bastão no último instante antes dele atacar Encapuzado.

— Ele tem um taco! — gritou ela, de repente. Encapuzado desviou do taco e chutou o recém-chegado na barriga. Ele caiu no chão com o resto.

Encapuzado se virou para o parquinho. Na escuridão, Eliza não conseguiu ver suas feições direito. Mas, graças a seu entusiasmo, as roupas do Encapuzado ficaram transparentes do nada. Puta merda… eu… não consigo acreditar, pensou, mal contendo o sorriso. A garota olhou, perplexa, para o machucado na parte interior da coxa. Ela já vira aquela marca antes, e reconhecia a roupa íntima do ganhador.

Pode não ser a Bianca, disse para si mesma. Eliza olhou para o rosto, focando seus olhos e esperando que a luz ficasse mais forte. E ela finalmente viu uma mecha de cabelo vermelho. Então não era seu namorado, hum?

Fechando os olhos para impedir que a sensação de queimadura ao redor deles aumentasse. Eliza sorriu por algum motivo. O que mais ela esconde? perguntou-se enquanto as pontadas diminuíam. Sinto muito mesmo por chamar sua vida de chata.


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