Réglisse escrita por Ana Barbieri


Capítulo 4
Something's cooking


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!



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O primeiro dia de sua vida dupla havia lhe custado muito da confiança depositada em suas palavras pelas pessoas que lhe eram mais próximas. Tina indagara sobre onde passara sua hora de almoço e a loira pegou-se inventando uma grande lorota a respeito de despistar um novato que tentava arrastá-la para um encontro. Em seguida, também fez inquisições acerca do avental e Queenie não soube como responder, permitindo que um silêncio constrangedor pairasse sobre elas. Até que sua irmã percebera que deveria estar relacionado à perda de Jacob, talvez um objeto de estimação para que mantivesse viva a memória do tempo que passaram juntos e dividiram seu amor pela culinária. Assim, não insistiu. A legilimente agradeceu-lhe em silêncio, ao ler sua mente.

Aquela, por outro lado, era uma nova manhã. A perspectiva de não precisar preocupar-se com sua ida ao Macusa, vez que era seu outro dia de folga, encheu-a de revigorada felicidade. Poderia passar o dia todo na padaria, concentrando-se apenas em fazer com que Jacob se lembrasse dela. A maneira como a tratava não diferia muito do tempo em que se conheceram, mas o momento em que estavam agora a impedia de dar prosseguimento ao que haviam começado e era isso o que mais ansiava. Continuar de onde pararam. Sabia que ele havia se apaixonado por ela e, embora Queenie não correspondesse com o mesmo ardor à princípio, ao fim daquela aventura, encontrava-se mais disposta do que nunca para tentar um relacionado. Para finalmente confiar em um homem com seu coração...

O modo como ele se surpreendera com o fato de que ela não possuía alguém especial fora bastante típico. As pessoas costumavam achar que um rosto bonito facilitava as coisas, porém, o amor era muito mais complexo do que isso. Na verdade, ao invés de facilitar, apenas complicava, pois era capaz de atrair muitas pessoas erradas. Com sorte, seu dom de legilimência ajudava para que selecionasse melhor os rapazes que entravam em sua vida; outras garotas de rostinhos bonitos não detinham o mesmo trunfo. Viam-se obrigadas a experimentar aquelas sensações e ter seus corações partidos sem mais nem menos. A beleza convidava, mas o que se achava em seguida muitas vezes não era o esperado ou simplesmente faziam daquela caçada um jogo... um vício difícil de perder, o jogo.

— Ei, Goldy. – cumprimentou Henry, passando por ela com uma enorme caixa de madeira. “Quem consegue usar tanto rosa?” Queenie leu sua mente e não pôde deixar de rir. O jovem assistente de Jacob era um grande mistério para a loira. Ao mesmo tempo em que parecia desaprovar sua presença, também demonstrava apreço por ela.

— Bom dia, senhor Talbot. – cumprimentou. – Precisa de ajuda? Parece pesado... – observou aproximando-se para dividir o peso com ele.

— Vá entrando, moça. Eu me viro com isso aqui... nem está tão pesado. – recusou ele, erguendo a caixa para o outro lado, parecendo negar um brinquedo a uma criança. Aquilo ofendeu Queenie, que cruzou os braços e arqueou as sobrancelhas em descrédito.

— Deve ser por isso que você está tão vermelho e suando como um bobo. – desdenhou brandamente, deixando-o para trás e adentrando a cozinha. Jacob estava sentado em sua mesa, analisando alguns pequenos cartões e sorriu para ela quando a viu. Queenie retribuiu o sorriso,  radiante, vestindo seu avental e deixando sua bolsa de lado. Ia aproximando-se dele, mas, a sineta da porta a impediu. E assim começava o dia.

Jacob deixou os cartões com as receitas anotadas de lado e seguiu-a, parando ao vão da porta e recostando-se ali. Ela se movimentava e sorria com tanta leveza e graça, tal qual a visão de um sonho; por vezes, ele realmente chegava a acreditar que estava sonhando aqueles pequenos momentos em sua companhia. Quando ele notava sua presença e os olhos dela se iluminavam, como se ele fosse a pessoa mais importante do mundo, a única que desejasse realmente ver; não conseguia acreditar que aquela garota estivesse de fato tão contente por vê-lo. Sua respiração faltava, um batimento pulava o outro e soava-lhe completamente inapropriado sentir-se assim por uma funcionária... mas achava-se aquém de resistir... existia uma força superior, algo que o impelia a encará-la como uma criatura boa demais para ser verdade... por mais clichê que soasse até mesmo aos ouvidos dele. Como conseguira que uma garota assim trabalhasse para ele?

Aliás, a notícia de que contratara uma deusa como ajudante de cozinha parecia ter se espalhado pelo East Side, pois em menos de vinte e quatro horas, a população masculina, antes rara, agora tornara-se assídua. O horário de almoço, antes mais lento, ganhara um movimento especial de jovens rapazes, até mesmo cavalheiros, ansiosos por comprar algo da senhorita vestida de rosa. Queenie não demonstrava qualquer sinal de desgosto com tanta atenção inapropriada, sorrindo a todos igualmente e tratando-os com a mesma gentileza e Jacob não sabia o que sentir com relação a isso. “Nada, oras. Você não está em situação de sentir alguma coisa. Lembre-se, é sua funcionária.” Mesmo assim, acreditava ser extremamente errado permitir que aquele assédio continuasse. Um bom patrão preza pelo bem-estar de seus funcionários, não? Talvez, ela fosse apenas educada demais para dizer qualquer coisa...

— Muito bem, um bom dia aos senhores. – disse a um grupo de rapazes com mercadoria em mãos, mas que insistiam em atazanar a legilimente com perguntas e comentários. “A que horas você sai, doçura?” “Precisa de alguém para acompanhá-la de volta para casa, boneca?” Mirou-os com advertência, colocando-se entre Queenie e o balcão.

— Está querendo mantê-la só para ele... – ouviram um deles murmurar enquanto deixava a loja. O rosto de Jacob escureceu e ele se preparou para sair atrás dos jovens imbecis.

— Não, Jacob. – a loira disse, impedindo-o, segurando-o pelo ombro. Ele se virou na direção dela. Sua expressão estava serena, mas não conseguiria acalmá-lo. – A maioria pensa isso de mim quando me conhece... não é grande coisa, estou acostumada...

— Acostumada?! – retumbou o padeiro, irretratável. Ela tentou sorrir, soltando um leve muxoxo que deveria ser um risinho.

— Uma garota tem mais com o que se preocupar para se deixar abalar pela opinião tola de um rapaz. – ponderou brandamente, seus olhos baixando na direção das mãos dele, fechadas em punhos. Com carinho, tomou uma entre as suas. – Mas fico lisonjeada com seu gesto, senhor Kowalski. Qualquer garota ficaria mais do que feliz em ter um chefe tão atencioso quanto o senhor. – acrescentou dando a discussão por encerrada, retomando o caminho para os fundos.

Contudo, ele não deixaria que passasse em branco aquela observação. Tão irado como estava, sequer percebera que a loira, em seu desespero, o tratara por seu primeiro nome e ignorara completamente o efeito que isso tivera em seu subconsciente. À entrada da padaria, virou o anúncio de aberto para fechado e retomou a direção da saleta aos fundos, junto à cozinha. Queenie havia se sentado em uma das mesas e comia alguma coisa de uma pequena marmita; seu almoço. A cena não alterara em nada seus nervos e aquilo desarmou um pouco os do padeiro.

— Senhorita Goldstein... – começou passando a mão pelo alto da cabeça, incerto. “Não é aceitável, aceitando ou não, a forma como eles se comportam...”

— Oh, você é muito gentil, mas de verdade, senhor Kowalski, eu estou bem. – cortou Queenie sem conter o impulso de ler a mente dele. A resposta deixou-o estático, de fato, o assunto estava encerrado para ela; ao menos enquanto tentasse abordá-lo daquela forma? Ou naquele momento? – O senhor não vai comer? – indagou a loira retirando-o de seus devaneios. Jacob suspirou.

— Não posso... quero dizer, recebi uma grande encomenda. Uma das filhas de um membro do alto escalão vai se casar... e fui o escolhido para fazer o bolo de casamento. – explicou retornando aos seus cartões. Queenie ergueu-se em um pulo empolgado.

— Isso é fantástico! – exclamou, fazendo-o sorrir de lado consigo mesmo.

— Pois é... – concordou em um murmúrio – Ao que parece, uma das madrinhas acha meus bolos fantásticos e disse que só concordaria em comparecer se eu fizesse o bolo do casamento... – disse dando de ombros. Erguendo o olhar, deparou-se com a moça ao seu lado, analisando também os cartões.

— Eu sempre quis confeitar um bolo de casamento! – falou a legilimente, animada, gentilmente pegando um dos cartões das mãos deles, analisando a receita de um bolo com morangos e creme. – Este parece delicioso! – exclamou mirando-o matreira. Seu chefe a analisou por um segundo, chegando a única conclusão possível...

— A senhorita gostaria de me ajudar a fazer este? – indagou, inocentemente. Contudo, em seus olhos havia um brilho deveras característico de cumplicidade, como se ali, naquela situação, fosse o mais natural que algum dia conseguiria estar com alguém. Os olhos de sua ajudante de cozinha se iluminaram com o mesmo brilho; em resposta, ela mordeu o lábio inferior, assentindo. O padeiro riu, extasiado. – Ei, Henry!

— Sim...? – o rapaz acabava de retornar do seu horário de almoço, de bom humor. Jacob pediu o cartão com a receita para Queenie e entregou-o a ele.

— Como estamos para fazer essa receita? Os morangos que compramos...?

— Continuam bons e temos tudo para o creme belga, coberturas, leite condensado... é, estamos bem! – assegurou Henry virando-se para buscar aqueles ingredientes da dispensa. Jacob seguiu-o. Queenie logo atrás.

— Que tal flores? Quantas camadas ela vai querer...? – indagava em voz alta, segurando uma pequena caixa de morangos nas mãos.

— Nesses casos, senhorita Goldstein, primeiro é preciso decidir os sabores e apresentá-los ao cliente, depois, trabalhamos nos detalhes da apresentação... como a senhorita escolheu o morango com creme belga antes, vamos começar por ele. – explicou Jacob calmamente, andando de um lado para o outro alcançando colheres, vasilhas, medidores, tudo o que fossem precisar. A legilimente apenas observava agora, ansiosa e... assustada. Primeiramente parecera uma excelente ideia, mas, esquecera-se de que não poderia usar a varinha... mas não deveria ser tão difícil... ou será que...? – Henry vou precisar de você na frente.

— Sem problemas... – assentiu, parando um segundo para fitar a loira com suspeita – tente não queimar tudo, Goldy. – advertiu, brincalhão, afastando um pouco da tensão dela. Ao passar, fechou a porta que dividia a padaria dos fundos. Eles estavam completamente sozinhos.

— Bem, senhorita Goldstein, o que pode me dizer sobre o seu histórico com bolos...? – indagou Jacob, com ar profissional. No entanto, a bem da verdade, acabara de perceber que estava sozinho com ela; precisava controlar o suor indesejado.

— Ah... gosto muito de comê-los, senhor Kowalski, - brincou tentando controlar sua hesitação – e também já fiz muitos deles em casa...

— Para sua irmã.

— Sim! – concordou, feliz. – Mas sou eu o dentinho doce da família... herdei de mamãe...

— Entendo. – se odiava por ter trazido à tona um assunto que a lembrava de seus falecidos pais. – Sinto muito por fazê-la...

— Senhor Kowalski, precisa deixar de acreditar que suas palavras apenas me magoam. – cortou a loira, risonha. – Eu sei que jamais machucaria alguém por despeito. – acrescentou meigamente, desarmando o padeiro por completo.

— Só trabalha para mim há um dia. – riu Jacob.

— Sempre tive um dom especial para ler as pessoas. – ela respondeu simplesmente, alcançando os ovos e pondo-se a quebrá-los... rezando para a moda no-maj dar certo. Fazia-o graciosamente e seu companheiro resumia-se a observar seus movimentos por vezes incertos para quem afirmava já ter feito aquilo milhões de vezes.

— Por isso disse que já está... acostumada? Com as maneiras dos rapazes... – indagou, tomando a vez para bater as claras. Aquilo fez com que ela bufasse em frustração.

— Jaco... Senhor Kowalski, eu já disse que... – falar sobre aquilo sempre a irritava, todavia, não precisava ler a mente dele para saber que não abandonaria aquele assunto com tanta facilidade. – Em parte, sim. Na escola... bem, eu sempre fui... bonita; e os rapazes sempre me tratavam com deferência... até o momento em que percebiam que eu não era exatamente o que eles esperavam... a boa Queenie... digamos que eu aprendi a não deixar que as opiniões deles me afetassem. Se eu sou alegre ou solícita demais e eles interpretam isso de forma errada, é problema deles, não meu... do contrário, seria como se apenas fizéssemos algo esperando receber outra coisa em troca. – tentou resumir. Não precisava aprofundar-se em seus anos pré-adolescentes em Ilvermorny. Jacob assentiu e ela lhe passou as gemas e o açúcar para que continuasse a bater. Em seguida, pôs-se a trabalhar no creme belga, juntando o leite condensado, o amido e os outros ingredientes na panela, levando-a ao fogo com a ajuda de um pano de prato... a experiência com a chaleira havia lhe ensinado.

Permaneceram em silêncio por alguns minutos, com o padeiro desconfortável por tê-la pressionado a falar sobre algo que notadamente a desconcertava mais do que a morte de seus pais, e também ela abatida pelas lembranças. Todavia, logo se recompôs, ao recordar-se de como Tina costumava defendê-la e ameaçar os garotos... ensinara-lhe uma azaração no quarto ano, pois sempre fora promissora com feitiços e, a partir dali, vez ou outra também se virava muito bem sozinha. Com tais memórias em mente, iniciou o cantarolar do hino de Ilvermorny sem que se desse conta, fazendo com que o padeiro estanca-se... a melodia soava familiar... estranhamente familiar... inconsciente, levou mais uma vez a mão ao local onde havia sido picado meses antes. Tão rápido, porém, quanto veio, a sensação deixou-o... só poderia ser coincidência.

— Eu sinto muito, senhorita Goldstein. – desculpou-se, quebrando o silêncio. Ela não respondeu, mas ouvia-o atentamente. – Só acho que se acostumar... bem... deveria dar uma lição em todos eles... – acrescentou incerto, mas com fervor, o que serviu para levá-la mais uma vez a sorrir. E rir gostosamente.

— Oh, não se preocupe, honey... vez ou outra eles descobrem que não sou tão boazinha... – retrucou com uma piscadela alegre, retornando aos seus trejeitos incertos, mas determinados; fazia-lhe perguntas sobre o uso disso ou aquilo, a respeito da receita, sugerindo esta ou aquela alteração. Pelo primeiro minuto, Jacob apenas ficou parado lá. Com os olhos presos naquela fada que soltava pequenos murmúrios consigo mesma, ao passo que executava os passos da receita. No fim, retornou a si e tornou a ajuda-la. Henry às vezes passava por eles, levando novos artigos para a padaria, e suas suspeitas só aumentavam com as risadinhas e os pequenos flertes. Contudo, não conseguia desgostar de nenhum dos dois ou questionar seus caráteres... havia alguma coisa cozinhando ali; superando todo seu ceticismo, chegava a crer que seria algo glorioso.


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