Cidade dos Ossos - Vista por Outros Olhos escrita por Ann Wolf


Capítulo 20
A Verdade


Notas iniciais do capítulo

Depois de tudo, os nossos amigos alcançaram Renwick e preparam-se para recuperar a Taça Mortal e derrotar Valentine, mas serão capazes de o fazer? Que acontecerá com o grupo? E o que os espera?



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— Lauren? Lauren, és tu?

Não respondo a quem quer que me chama, nem me dou ao trabalho de reconhecer a quem pertence tal voz. Em vez disso, gatinho até ao meu pai, em meio de soluços e dores na nunca e no ombro, acariciando-lhe a face áspera e pálida

— Papá… - Murmuro, permanecendo ao lado dele e ensopando a minha roupa com o sangue que ainda escorre abundantemente da chaga onde o perfurei com a espada. Ela, por outro lado, mantém se ereta, como eu sempre deveria ter ficado em relação á minha decisão de libertar os meus pais desta maldição. Se eu tivesse feito isso, então provavelmente, agora, não estaria a passar por tamanho sofrimento.

— Lauren, eu sei que estás aí. – As palavras de quem fala parecem transmitir nervosismo. – Se não me deres uma estela para partir esta porta, eu arranco-a das dobradiças e levas com ela na cabeça!

Os meus sentidos começam a querer despertar do sono em que se colocaram quando eu desferi o golpe no meu pai. Não consigo deixar de olhar para o cadáver dele, de me lembrar das suas últimas palavras antes de começar a perder o controlo de novo. Suponho que nunca, no resto da minha vida irei-me esquecer de tais imagens.

— Lauren! – O grito que se segue é o que finalmente faz com que eu acorde para o mundo real, que não parece tão agradável como aquele em que a minha mente se tinha enfiado.

Levanto-me mas sinto as pernas entorpecidas e a visão embaçada por tanta perda de sangue, embora consiga ir até à porta para traçar a runa do fogo que derrete a fechadura da porta de metal em menos de um segundo, fazendo com que um buraco do tamanho do meu pulso permita à Briana abrir a porta. Ela apenas empurra a porta com alguma brusquidão e entra um pouco aos tropeções antes de se deparar com a minha cara, que deve estar assustadora pelo modo como ela fica chocada.

— Lou…o que aconteceu… - A loira leva uma das suas mãos ao meu pescoço, onde está tudo manchado do líquido espesso que é o meu sangue, mas eu afasto-me, virando-lhe as costas.

Há um pequeno silêncio da parte dela, calculo que a Wayland ainda não está a compreender porque eu estou num estado tão lastimável e com as marcas das lágrimas indisfarçáveis na minha pele, recuando até mesmo ao toque dela com repugnância de mim mesma. Ela coloca-me uma mão no cotovelo e eu fujo de novo, soltando-me da mão dela e procurando, com muita dificuldade, reprimir os soluços que quase me impedem de respirar.

— Não me toques. – As lágrimas voltam-me a embaciar os olhos mas tenho a breve sensação de que não é só culpa delas.

Uma tontura repentina é o suficiente para me fazer fraquejar e bata com os joelhos no chão, levando as minhas mãos ao chão. Tenho pontos de todas as cores a incomodarem-me a visão e depois começo a sentir um leve formigueiro no meu antebraço, o qual reconheço como sendo o de uma estela a queimar-me a pele. O efeito que ela têm é que reprime as poucas dores e o cansaço que tenho, parando também o sangue da minha ferida na cabeça, mas ainda me sinto um traste.

— Pronto, agora Lou conta-me o que aconteceu. – Ela está bastante séria comigo mas não lhe digo nada.

Em vez disso, desvio o olhar e aponto com o braço para o corpo inanimado de forma grotesca que se estende ao comprido do outro lado do pequeno e escuro corredor, o resultado da minha luta. A Briana observa a direção para qual o meu dedo indicador está e então para de respirar por uns segundos, apercebendo-se por fim porque eu estou tão desanimada.

— Oh, Lou. – Espero que ela apenas me esfregue os braços como às vezes faz, nas raras vezes em que estou nervosa, mas desta vez ela abraça-me com força. – Já passou. Ele agora não sofre mais.

O que ela diz é verdade mas custa saber que sou a culpada do que lhe acabou de acontecer, da morte dele, embora saiba que o verdadeiro causador desta confusão estupida e sem sentido é, na realidade, o Valentine. Os meus pais não queriam ser peões nas mãos dele e acabaram sofrendo as consequências por serem imprudentes ao confiarem numa pessoa que não é confiável, e eu acabei de sofrer o meu castigo por desafiar a besta que esse homem é. É me impossível acreditar em tal ato com que terei de viver o resto da minha vida.

Os soluços começam a acumular-se cada vez mais na minha traqueia, agoniando-me de tal forma que me custa a engolir a própria saliva. Um deles escapa-se dos meus lábios, seguido por outro que também não consigo evitar que saia. De um segundo para o outro, encontro-me com a cabeça encostada ao peito da Briana, escondida pelos seus braços enquanto deixo o choro e os soluços desaparecerem pelo ar. Ela aguenta tudo em silencio, esfregando-me o cabelo e as costas até perceber que aos poucos estou a começar a recuperar e acabar o meu pequeno desabafo.

A pressão que tem sido exercida sobre mim nestes últimos dias foi o grande fator para que ainda me sinta insegura ao finalmente para de chorar e coloque uma postura mais confiante e forte, coisa que não sou realmente neste momento. A Briana também se levanta atrás de mim e entrelaça um braço no meio para que me apoie nela caso já não aguente mais.

— Eu vou ficar bem, Bri. – Custa-me a falar pois sinto como se estivessem a esfregar lixa na minha garganta. – Só precisava de uns minutos.

— Tu precisas é de alguém ao teu lado neste momento. – Replica ela. – Eu sei bem o que custa ao perder um pai, então ter que matar um para o salvar…é ainda mais doloroso. Não te vou deixar.

— Mas e o Jace? – Pergunto, com um pouco de adrenalina a reaparecer nas minhas veias. – Não foste procura-lo?

Ela abana negativamente a cabeça antes de passarmos pela porta de ferro para o corredor maior e que me cega com a luz das suas tochas. Mais á frente, á porta do quarto onde estava a Jocelyn, está um outro cadáver humano, com um manto vermelho e cabelo negro rodeado por uma poça enorme de sangue. Ele tem os olhos abertos e os braços dobrados num angulo estranho, parecendo estarem a tentar chegar ao pescoço onde está inserido um bisturi de cirurgia. Reconheço o corpo como sendo o do Pangborn e paro bruscamente.         

— Aquele ali é… - Ouço um uivo vindo do quarto e recuo instintivamente. – Mas o que...

— Deve ser o Luke. – Explica a Briana, pondo-se mais a alerta do nada. – Quando um outro homem entrou, acho que se chama Blackwell, eles começaram a lutar enquanto eu e a Clary saímos disparadas pelo corredor. Mas acho que há mais alguma coisa aqui.

Coloco então os meus instintos mais alerta, devido ao conselho da Briana, e logo agradeço pelo aviso dela pois em menos de um segundo, uma porta desfaz-se há nossa frente e uma criatura monstruosa sai de lá, grunhido e balançando as garras a frente da cara, como se cortasse o ar com elas. Fico arrepiada ao perceber que na verdade, se trata de uma Abandonada, com o cabelo negro solto e oleoso, com as pontas irregulares e mexas a caírem-lhe para os olhos, mesmo que isso não a impeça de nos ver perfeitamente bem.

— Olha Abandonada, nós só queremos fazer uma travessia sossegada, então podes sair da nossa frente tipo AGORA! – A Briana fala alto o suficiente para que o olhos da Abandonada de engelhem e nos fite com pura fúria estampada nos olhos.

Olhos azuis num tom quase igual ao meu. A Abandonada é a minha mãe não parece estar nada animada connosco. Pergunto-me se será porque ela pressente que o meu pai foi assassinado por mim. O sentimento de culpa volta-me a atingir como uma chapada de luva branca e aproveito de a minha mãe ainda estar calma e desembainho da espada de prata restante do meu pai. Ela olha para espada com um certa expressão de surpresa, antes de me fitar novamente com raiva ao mesmo tempo que me coloco á frente da Briana.

— És louca? Queres que ela te mate? – Não lhe dou muito ouvido e fico á frente dela, perante os olhos acusadores da minha mãe desfigurada.

Estendo a espada ao estendido nas minhas mãos e deixo que esta faça um pequeno corte na palma da minha mão direita, pois espero que desse modo ela permaneça calma como tem parecido estar até agora. Mas, se preciso de falar alguma coisa, o melhor é que fale enquanto ainda o posso fazer.

— Mãe, lamento mas não tive escolha. Eu não tenho escolha. – Começo, evitando a agonia que me preenche de sair na minha voz. – Eu amo-vos aos dois mas vocês como estão agora não estão bem. Se quero salvar-vos, esta é a única maneira.

A minha mãe troca olhares entre mim e a espada, como se percebe-se o significado de esta não estar com o seu par gémeo e então solta um urro diferente dos que já havia soltado. Este era mais um grito doloroso que conseguia alcançar o abismo de qualquer pessoa. Ela volta a olhar para mim com tristeza nos olhos e depois desvia-se repentinamente para a Briana, que está atrás de mim e a assistir ao cenário desconfiada e com má cara.

Num instante, a minha mãe ruge e salta na direção da minha melhor amiga, sem sequer ouvir os meus gritos para parar. Felizmente, a loira consegue reunir os seus reflexos o suficiente para desviar-se do ataque com astucia para que a minha mãe acabe por acertar na parede atrás da caçadora.

— Senhora Kira Ashblue, eu não a conheci muito bem mas isso não são modos de tratar alguém. – A Briana está a rir e vejo-lhe o tom alaranjado a espalhar-se pela iris. – Mas se deseja uma luta, é uma luta que vai ter.

A Wayland sorri quando vê que a minha mãe lhe responde ao comentário com um ataque, e faz uma roda para trás, acertando com as botas de cano alto nos queixos as minha mãe que recua um pouco, aturdida pelo golpe certeiro. Observo a minha amiga a sorrir mas percebo que ela não tem armas e logo me arrependo de me encontrar ali parada a observar, enquanto a minha mãe a minha companheira de longa data se matam uma à outra.

— Briana, vamos! – Chamo-a enquanto começo a correr até às escadas serpenteantes por onde subimos até aqui, e por onde ainda pudemos continuar a subir até ao terceiro andar.

Ela vem na minha direção e começamos ambas a correr descontroláveis pelo corredor fora, fugindo de uma criatura assassina, com sede de sangue e ao controlo de um monstro com pele de cordeiro a disfarçar o seu caracter, para que assim, caiam na sua armadilha mortal e perigosa. Estamos já alcançar as escadas quando eu paro subitamente, lembrando-me que não posso simplesmente deixar que a minha mãe nos persiga até já não termos forças para correr ou até aparecer alguém que dê conta do trabalho.

— Lauren, então? – A Briana estava já a começar a subir os degraus quando vê que eu não estou mesmo atrás dela. – Estás à espera de quê?

— Eu tenho de terminar isto. Esqueces-te? Vai andando. Encontra o Jace e a Clary e, se puderes, mata o Valentine. – Giro sob os meus calcanhares e torno a minha atenção para a minha mãe que corre na minha direção como se estivesse a fugir do diabo.

A espada treme-me nas mãos e o cenário da morte do meu pai assalta-me a memória tantas vezes que temo desabar mesmo ali, sem defesas e completamente à mercê de uma pessoa que antes fora a minha adorada mãe e agora se tornou mais uma vítima nas mãos do Valentine. Um arrepio corre-me a espinha e foco-me no corpo em movimento da Abandonada, traçando uma estratégia para a matar rapidamente e tudo me ocorre que nunca o hei-de conseguir fazer pois ela não para se fazer movimentos desajeitados.

Uma sombra passa por cima de mim e aterra mesmo á minha frente, fletindo as pernas com a graça de um anjo. A Briana não seguiu caminho como eu lhe pedi e acaba de ficar ao meu lado para que eu complete mais uma das minhas missões aqui, uma vez que a primeira era encontra-la e tirá-la das mãos do Valentine. Fico aborrecida por ela não me ter ouvido e ter ficado ao meu lado, mas por outro lado, talvez o mais cobarde ou o mais mundano, fico mais confiante por saber que a minha amiga está ao meu lado para me ajudar no que eu mais preciso, e que agora é coragem. Coragem para acabar com tudo de uma vez por todas.

— Lauren. – Desvio-me para ela quando a minha mãe já está a dois metros de nós e andando á velocidade de um camião na autoestrada. – Cobre-me. Eu acabo isto por ti.

— Hã? – Ela tira-me a espada das mãos e solta um grito de guerra enquanto vai na direção da minha mãe com a espada ao lado do corpo e pronta para desferir o primeiro golpe.

Pisco os olhos algumas vezes, e depois deixo que o meu mau-humor comece a transformar-se em adrenalina que em percorre as veias como uma droga na qual estou viciada. O guisarme parece pesar-me cada vez mais no cano da minha bota e levo a minha mão até. O metal ferve e dá a sensação que está a brilhar mesmo desativado, coisa que não dura por muito tempo pois logo que acabo de respirar fundo para me sentir mais leve, ativo a arma e o bastão estende-se, batendo contra o chão e soltando faíscas.

Os olhos da minha mãe, ao que parece um pouco sensíveis á pouca luz que o guisarme lança ao ser ativado por mim, tenta cobrir os olhos com um dos braços ao mesmo tempo que recua. Isso permite que a Briana lhe faça um golpe desde o peito até ao ombro e de onde respinga o sangue encarnado escuro da minha mãe.

— Foi perto. – Comenta a Briana, tentando disfarçar um pouco do descontentamento que sente por não ter conseguido atingir o ponto que ela pretendia e que percebo ser o pescoço.

A minha mãe não é um monstro e se tem que morrer, não será como um! Penso, ao ver a Briana a tentar ataca-la de novo, com uma determinação assustadora nos olhos, agora totalmente alaranjados.

— Briana! – O meu grito faz com que ela recue dois passos para ficar a uma distância segura para não ser atacada enquanto fala comigo. – Se queres mesmo ter a honra de matar a minha mãe, então trespassa-a no coração.

A loira encolhe os ombros e abana a cabeça, como se estivesse a dizer: “Que diferença faz se eu lhe enfiar isto no peito ou cortar-lhe o pescoço? Ela morre na mesma.” Mas a mim faz diferença. Sei que é egoísta que eu, que nem sequer tenho forças para terminar isto sozinha, esteja ainda a pedir favores à Briana como se fosse obrigação dela acabar com isto, mas não iria me sentir nada bem se visse a minha a ser decapitada como fazemos com todo o tipo de demónios e criaturas maléficas, que o são por quererem e não porque foram obrigadas à força a se tornarem em tal.

Vejo a espada a ficar em riste como uma estaca presa ao chão, que supostamente é a Briana, e depois a minha mãe a tentar ataca-la, enquanto esta desvia graciosamente o golpe e faz com que a minha mãe caia com o peito mesmo em cima da ponta afiada da lâmina e também sobre o corpo da loira. Um grito rasga-me a garganta ao ver tal cenário e vou em direção dela.

A espada têm a sua lâmina a brilhar com a luz das tochas, mesmo estando um pouco manchada com o sangue escuro da minha própria mãe, que ainda solta um suspiro antes de finalmente ficar imóvel sobre o corpo da Briana. Esta, debate-se debaixo dela, com a cabeça a salvo do peso monstruoso do corpo da Abandonada mas com o resto debaixo dela.

— Ai, acho que desloquei uma costela. – Resmunga ela, ao mesmo tempo que se esforça para sair debaixo do cadáver, com a minha ajuda. – Lhec, isto é um pouco repugnante.

Viro a minha mãe para o lado e a Briana observa o próprio corpo e roupa, agora tingida de uma cor mais escura. Ela refere-se ao sangue que a lhe cobre o corpo quando diz ser algo repugnante, o que até nem a censuro muito porque compreendo o lado dela, mesmo que ela se esteja a referir aos meus falecidos pais. Aos meus pais que agora, estão definitivamente mortos e sem nenhuma mentir a encobrir a morte deles, como aconteceu ao longo destes anos que passei longe deles, vivendo com uma mentira à qual ainda não percebo o sentido.

Mas agora que acabou, percebo que, de certo modo, foi retirado um peso enorme de cima de mim, para ser acrescentado outro com metade do seu peso mas que ainda permanece a sufocar-me. Agora terei de viver sabendo que sou uma matricida e que fui responsável pelo assassinato do meu pais para que eles pudessem ter a paz que nunca iriam ter se continuassem com a sua maldição aqui e às mãos do Valentine.

— Acabou. – A minha voz sai como um sussurro mas a Briana consegue ouvir-me e gesticula com a cabeça que sim.

— A tua parte nesta missão acabou mas ainda temos uma em equipa e essa é muito importante também. – Não lhe reconheço nenhum sorriso irónico por poder ter agora a sua vingança do Valentine. – Vamos recuperar a Taça e dar uma lição a esta besta.

                Nem acho necessário responder, pois ela tem toda a razão naquilo que diz. Reparo que ela parece estar mais madura, parece que amadureceu mais numas horas do que em anos, e percebo que tudo isso se deve ao facto de ela ter descoberto que até no nosso seio da família e espécie, há segredos bastante sombrios e que causam sofrimento a todos os que se relacionam com eles. Se ela dizia que os mundanos eram falsos por esconderem muitas vezes a verdade por serem, como ela assim os chama, egoístas, então nós, que temos descendência do Anjo Raziel, ao mentirmos somos o quê?

                Estamos prestes a subir as escadas quando aparece o Luke, um pouco impaciente, atrás de nós e com as garras e mandibulas ainda a bem á vista, sinal que a sua transformação já está desaparecer e ele está a recuperar a sua forma humana. O moreno aproxima-se de nós e examina o corpo no corredor, mesmo ao lado da primeira porta á esquerda.

                - Mas o que é isto? – O lobisomem aponta para o cadáver da minha mãe o mesmo nó volta a instalar-se na minha garganta. – Os Abandonados já chegaram até aqui?

                - Não. Pelo menos, que saibamos, não. – Explico. – E “isso” que vê é o que resta da minha mãe, Kira Ashblue.

                - Kira? – Vejo-lhe o choque estampado na face e depois a aproximar-se do cadáver da minha mãe, lentamente.

                Ao princípio, não compreendo como ele espera reconhecer o rosto desfigurado que a minha mãe tinha agora com o de quando ela era jovem, mas logo percebo que a minha família tinha tido uma grande amizade como o Luke e Jocelyn portanto, não é de admirar muito que eles os consigam reconhecer, mesmo depois destes anos todos e as mudanças pelas quais eles passaram nas mãos do Valentine até agora.

                Ele abre-lhe as pálpebras e tenta observar os olhos azuis, que herdei dela, colocando de seguida uma expressão de luto no rosto enquanto abana levemente a cabeça, lamentando o destino dela. Ninguém percebe quando eu começo a sentir-me novamente culpada pelo que lhes aconteceu e as lágrimas começam a ameaçar escorrer-me pelo rosto devido ao facto de ver como as pessoas lamentam a morte dos meus pais quando eu sou em parte culpada pela morte destes. Recuo até ao corrimão e viro as costas á cena, pensando que talvez desse modo, não me magoe tanto ver o meu crime com os meus próprios olhos e não tenha a tendência para pensar, repetidamente, nele.

                Ao ver que me afastei um pouco do cenário, a Briana vem ao meu encontro, pé ante pé, para tentar colocar-me mais confiante na minha decisão e nos objetivos que ainda tenho planeados para esta noite. O Valentine não irá escapar tão facilmente da justiça e, mesmo que não a tenha pelas minhas mãos, quero que ele morra da maneira mais dolorosa e horrível possível. Nunca desejei tanto mal a uma pessoa, nem mesmo pelo Hodge quando ainda o achava responsável da morte dos meus pais.

                - Devemos continuar. – A Briana começa a tentar despachar-se do assunto o mais depressa possível. – A Clary pode já ter encontrado o Valentine e o Jace. Não há tempo a perder.

                - De facto, tens razão. – Admite o Luke, retomando cada vez mais a forma de humano.

                Algo cintila na mão direita dele e vejo ser uma adaga com pedras azuis no punho, fina e comprida que possui um brilho branco que me causa ardor nos olhos ao refletir nos olhos. Tenho a necessidade de os abrir e fechar algumas vezes até voltar a ter a minha visão normalizada mas chego um pouco tarde. Antes mesmo que tenha tempo de começar a andar pelas escadas, o cenário esbate-se á minha volta, sendo substituído por figuras ainda distorcidas, assim como as suas cores.

                - Bri! – Grito, com todos os meus pulmões e tentando-me aproximar o mais depressa dela.

                O Luke vem a correr ao nosso encontro, provocando um eco ruidoso ao atravessar alguns dos degraus das escadas para chegar até nós, e a Briana agarra-me por um braço enquanto eu finco as minhas unhas no casaco de cabedal dela. As forças das minhas pernas parecem estar a diminuir e então começa a sucessão de imagens.

                Ao princípio, apenas vejo o rosto do Valentine com um sorriso sádico e uma expressão divertida e depois o cenário expande-se, mostrando um Jace chocado e uma Clary vermelha de fúria ao mesmo tempo que parece sufocada com algo. Logo a seguir, e de maneira muito confusa, também a Briana se encontra na mesma divisão que os outros três, comigo e o Luke por perto enquanto ela está com a face completamente branca e, por fim, o Valentine a passar por um espelho, com uma paisagem verdejante e uma casa do campo, simplória mas muito bonita, com um céu azul sem nuvens que, logo a seguir à passagem do homem, se desfaz em centenas, se não milhares, de cacos que se espalham à nossa volta.

                As imagens voltam a distorcer-se e então pareço começar a regressar ao normal, com o Luke e a Briana a examinarem cada traço da minha cara enquanto eu recupero de mais uma visão.

                - Lou, então? – A Briana tenta colocar-me em pé porque, ao que parece, voltei a cair sobre as minhas pernas. – Já passou?

                - Sim… - A minha garganta parece estar áspera quando as palavras a arranham para sair. – O Valentine…eu vi o Valentine, o Jace, a Clary…tu…O Valentine vai fugir.

                - Não vai, não. – O Luke, que até agora tinha estado calado e a observar o que acontecia comigo. – Eu vou impedi-lo nem que seja a ultima coisa que faça.

                Quero dizer que isso é impossível, que quando eu tenho uma visão destas então ela está destinada a acontecer, não interessa o quanto a gente a tente impedir, mas temo que se o fizer, o Luke sentirá que eu estou apenas a dar rédea para o Valentine conseguir fugir. A Briana compreende isso pelo meu olhar, o receio que tenho de falar a verdade para o lobisomem, mas não comenta nada sobre o assunto e agradeço-lhe isso.

                Apoio-me num dos braços do Luke, que entretanto voltou um pouco atrás para me ajudar a levantar, e sigo o resto do percurso pelos degraus da escada em espirar encostada às paredes de pedra até começar a sentir-me menos zonza e mais consciente da realidade.

                A subida parece não ter fim e os meus pés parecem cada vez mais pesados, assim como a minha cabeça. Pontos de luz começam a surgir a cada passo que dou e preciso de parar um pouco para recuperar folego. O sangue, que antes me escorria pela nuca, parece já ter secado mas ainda sinto dores e os meus joelhos e braços estão completamente arranhados de quando o Pangborn me atirou ao chão áspero do corredor, para não falar que ainda tenho as marcas das mãos do outro homem que me apertou o pescoço e também do meu pai quando estava descontrolado e me tentou matar. Acho que nunca levei tanta pancada numa noite só.

                - Hey, então? Já estás a desistir? – A Briana recuou um pouco para vir ter comigo e puxa-me por um abraço para que eu continue a andar.

                - Tu dizes isso mas olha que hoje tenho sido saco de pancada a toda a hora. – A luz no andar de cima começa a ficar mais forte, assim como eu recomeço a recuperar o ânimo ao vê-las. – Parece que nem tive intervalo.

                - Ah! Essa é boa. – Ela solta uma exclamação de riso, talvez para me aborrecer, mas não consigo evitar rir. – Agora a sério? Achas que o Jace é…

                - Não pode ser. – O assunto é incómodo e consegue colocar-me a cabeça noutro lugar.

                O Jace é como família para mim. Sou um ano mais nova que ele e, embora tenhamos sempre as nossas discussões, ele sempre me tratou como se eu fosse irmã dele, nunca me dando tanto mimo e atenção como faz com a Briana mas isso é compreensível já que são irmãos de sangue, mas nunca teve uma atitude violenta ou animalesca comigo ou com alguém do Instituto. Claro que tinha a sua ironia maldosa mas isso é por causa do treinamento de infância pelo qual teve de passar. Logo, é normal que me custe a acreditar que ele e a Briana possam ser filhos do Valentine.

                - E se for? – A Briana procura não olhar para mim enquanto anda. – E se eu e ele formos filhos do Val? Vais afastar-te de nós?

                A pergunta abala-me e sinto os meus punhos a cerrarem-se e as unhas, já um pouco gastas, a espetarem-se na pele com imensa força, que eu julgava já nem possuir devido ao cansaço. O Luke para repentinamente e nós ambas, distraídas com a conversa privada que estávamos a ter, batemos contra as costas dele com um pouco de força.

                Ele está estranho. Os músculos estão tensos e sinto-lhe a adrenalina a ocupar-lhe as veias, correndo por elas através do sangue. É uma sensação desconfortável saber que ele está a ficar nervoso e que o nervosismo pode ser um gatilho o suficiente forte para fazer com que ele se transforme num lobisomem disposto a arrancar á dentada qualquer coisa que ele veja como inimiga.

                - Não vou a lado nenhum consigo! – Quando ouço a voz que ecoa no corredor, percebo o porquê da reção do Luke.

                - Era a Clary, não era? – Pergunta a Briana ao meu lado, trocando olhares comigo e com o Luke.

                As palavras estão já a saírem-me da boca, quando o Luke poe-se em marcha de corrida em direção a todas as portas do corredor, nem sequer esperando pela nossa reação. E nós, como não podíamos deixar de o fazer, seguimos na direção dele, a Briana quase sendo puxada por mim. Abrimos todas as portas até a minha intuição voltar a dar sinais de vida.

                - Ultima porta do corredor. – Faço com que a minha voz saia alta o suficiente para que o Luke, que está na ponta oposta, consiga ouvir.

                Praticamente, corremos na direção da porta semiaberta, enquanto por baixo de nós é ouvido um grande estrondo que parece fazer com que o chão estremeça por baixo dos nosso pés, mas isso não é o suficiente para que eu pare de caminhar em direção da porta que me pode estar a separar dos meus amigos, que neste preciso momento, devem estar sob a companhia do Valentine a defrontarem-se com mentiras para o confundir. Só esse pensamento, faz com que o meu estomago se revolte.

                O Luke vai á nossa frente e abre a porta, sem quê nem para quê, fazendo com que eu recue e a Briana avance mais para ficar ao lado dele. O cenário com que nos deparamos é estranho e confuso e consigo recorda-lo um pouco da minha visão.

                A sala encontra-se ao estilo gótico, com uns cortinados de veludo a impedirem que os raios do luar entrem diretamente na divisão, dando um ambiente mais sombrio ao lugar senão fosse pelo grande candelabro preso ao teto e os castiçais que estão em cima de uma pesa comprida, como nas salas de banquetes nos castelos, de madeira negra e que possui uma toalha branca com renda bordada por cima dela, e que agora se encontra manchada por um liquido escarlate, que reconheço como pertencendo ao copo de vinho abalroado em cima da mesa, ao lado de uma garrafa dele. O Jace está sentado à mesa, mas não o reconheço como sendo o Jace habitual. Este parece confuso e está tão pálido que parece um fantasma para não falar que o brilho que costuma ter nos olhos, agora encontra-se completamente sumiço.

                Por outro lado, a Clary, que está a frente dele, parece quase a mesma figura de quando a deixei no quarto onde a mãe dela ainda deve estar sobre o encantamento do feitiço do sono, se não fosse pelo sangue seco que tem nos dedos das mãos e o modo como também está pálida, com unicamente as maças do rosto vermelhas e que julgo dever-se á raiva por estar ao lado de uma pessoa, a quem julgo estar a confrontar. Essa pessoa não é mais nem menos do que o Valentine.

                Ele permanece o mesmo da minha visão, se não fosse pelo fato de tweed ter sido substituído por umas calças de moletom e uma camisa branca imaculada, deixando visíveis as cicatrizes das runas e das batalhas outrora combatidas. O cabelo grisalho está cuidadosamente penteado para trás e sem nenhum fio solto, como estava quando falei com ele na minha visão de simulação, e o brilho nos rosto dele parece estar maior do que alguma vez vi, lançando-me arrepios que me percorrem toda a espinha mas que, com pouco esforço, consigo conter dentro de mim.

                Num ápice, a Clary corre em nossa direção e atira-se aos braços fortes do Luke, que a rodeiam de imediato, disposto a protege-la do mal que se encontra nesta sala. Mal este que apenas olha para ela dececionado, sendo que o Jace lhe segue o exemplo com uma expressão que me é desconhecida da parte dele, a tomar-lhe o rosto. O Jace que está à minha frente não é aquele que eu conheço e, cada vez mais, receio o que isso queira significar. No entanto, é a Briana que toma a iniciativa de esclarecer as pontas soltas.

                - Jace, o que te aconteceu? – Pergunta, começando a andar a passos lentos e pouco firmes em direção dele. – O que ele te fez?

                Ela está nervosa e parece que nem sabe onde deve assentar os pés para se manter firme, atitude que só tem quando está apavorada mas não o quer demonstrar a ninguém presente, apenas aos que a conhecem bem. O meu instinto diz-me para a impedir de a aproximar do irmão porque o Valentine está mesmo ao lado e, com toda a certeza que tenho, não deve estar muito disposto a deixa-la falar com o irmão para o chamar à razão. Ele, do lado contrário, não abre a boca e olha cabisbaixo para o tapete vermelho, como se este pudesse ter as respostas para as suas dúvidas. Não consigo conter mais o meu instinto e agarro a Briana pelo braço, puxando-a para perto de mim e do Luke, nem me apercebendo que ela não gostou da minha atitude.

                O que quer que tenha acontecido aqui colocou-nos com duas fações, a do Valentine e a do Luke e, devido ao modo estranho e desconhecido como o Jace tem estado a agir desde que entrámos aqui e provavelmente desde que a Clary o encontrou, acho que a escolha da fação dele é a do Valentine. A raiva faz com que o meu estomago comece a borbulhar. Primeiro, o Valentine retira-me os meus pais e agora quer retirar-me a família? Não, não o vou permitir.

                - Estou todo sujo de sangue. – Ouço o Luke a dizer isto á Clary enquanto a afasta docemente dele. – Mas não te precisas de preocupar porque…não é meu.

                A Clary olha para ele, um pouco confusa, e depois o Valentine acorda do seu silêncio. Ele, que até agora tinha permanecido calado e a examinar-nos com toda a atenção do mundo, como um médico a decidir qual pedaço de carne deve cortar para não atingir nenhuma veia ou ponto fatal, acontece que aqui, o que ele procura fazer é exatamente o contrário.

                - Então de quem é? – O Valentine possuí agora os olhos semicerrados e fixa, com os olhos semicerrados, a filha que se mantêm sobre o braço protetor de Luke.

                Vejo o Jace a dar uma meia-volta á mesa e a colocar-se atrás do Valentine, como se este fosse o escudo protetor dele. Tanto eu como a Briana, ficamos atónitas com tal procedimento e não consigo evitar lançar-lhe uma frase acusadora.

                - Jace! Mas que raio estás tu a fazer? – Ele não me responde mas olha-me com um pouco de frustração nos olhos. – Tu nunca agiste assim. Por que estás a parecer um gatinho assustado á frente desta besta humana!?

                - Não lhe voltes a chamar de besta, ouviste Lauren? – Agora ele estava mesmo irritado e já nem eu conseguia manter-me controlada para não matar o Valentine aqui e agora. – Não tens esse direito?

                - Há não? Tens a certeza? – Não tenho a certeza se o meu trunfo irá funcionar contra o assassino que está à nossa frente mas, se pelo menos for o suficiente para colocar o Jace do nosso lado, já me sentirei aliviada comigo mesma. – Por que não lhe perguntas o que aconteceu aos meus pais? Vá Jace. Pergunta-lhe.

                A Briana agarra-me no pulso, para evitar que eu vá na direção daqueles dois e para que não me sinta tão desprotegida caso a minha estratégia não resulte. Ela sempre foi melhor estratega que qualquer um de nós então é completamente compreensível que ela já tenha experiencia de quando os planos são infalíveis e a chance de falharem são mínima e quando estes já têm falhas impossíveis de corrigir e poder dar o resultado errado.

                - Lauren. Briana. – O modo como o Luke pronuncia o nosso nome, deixa-me desconfiada. – Deixem-me trocar umas palavras com o Valentine e então poderão mostrar ao Jace o tipo de pessoa que ele é. O sangue que vês, Valentine, pertence ao Pangborn.

                O pai da Clary finge uma expressão de lamento pela morte do seguidor, mas sei que é tudo a fingir. É apenas um modo de fazer com que o Jace acredite que ele sente profundamente pela morte dos companheiros quando ele nem sequer quer saber deles e apenas quer cumprir os seus objetivos. Isso consegue torna-lo ainda mais repugnante.

                - Não me digas que o matas-te arrancando-lhe a garganta com uma dentada?

                - Quem é você para… - A Briana prepara-se para lhe responder á brava quando o Luke a impede de tal coisa.

                - Não. Eu não fiz isso. – Afirma exibindo, com a mão livre, a adaga fina que eu já lhe tinha visto nas mãos no andar debaixo, logo após ele ter saído do quarto da Jocelyn. – Eu matei-o com isto.

                E agora o Jace trocava olhares entre mim, a Briana e o Valentine. Se ele quer falar alguma coisa, o melhor é que apresse.

                - Aquilo que a Lauren disse, sobre os pais dela…o que aconteceu? – O Jace está cada vez mais pálido e é possível notar-lhe os músculos tensos por baixo da camisa, também branca, que tem vestida. – O que lhes fizeste?

                - Recuperei-os. – Cerro o maxilar com o que ele diz. – Eles estavam melhor ao meu lado.

                - Mentiroso! – Grito, com a raiva a transparecer-me na pele e levando a minha face a arder. – Você obrigou-me a ter de os matar. Você fez com que eles sofressem.

                Ele não diz nada e apenas me fita com os olhos negros ameaçando engolirem-me por o estar a desafiar á frente do Luke e da Clary, para não falar do Jace, mas mesmo assim consegue erguer uma barreira que o impede de perder a calma, fazendo com que as minhas acusações apenas sejam ricocheteadas na minha direção. Então, ele deixa transparecer um sorriso. Um sorriso de troça que lhe rasga os lábios de orelha a orelha.

                Os arrepios regressam e tornam-se cada vez mais difíceis de controlar. Há algo na expressão dele que demonstra o quanto ele se encontra preparado para todas as minhas reações e em como isso não o afeta minimamente. Atrás dele, o Jace olha-me chocado e com as sobrancelhas franzidas.

                - Eu não te obriguei a nada. – Replica ele, com malicia. – Aliás, tu tinhas uma escolha.

                Não compreendo o sentido das palavras dele e sinto as minhas pernas a estremecerem e as minhas mãos a tremerem de ansiedade.

                - Escolha? – A minha voz sai a gaguejar mesmo que eu a impeça de tal.

                - Sim. Se tivesses vindo ter comigo. Se tivesses pensado bem antes de te teres aliado à Clave, eu podia ter salvo os teus pais.

                - Eu não acredito em si! Abandonados não podem regressar à forma humana!

                Ele ri-se. O rosto dele parece-se estar a divertir-se com a minha expressão assustada.

                Será que eu matei os meus pais quando havia a hipótese de eles sobreviverem?

O meu corpo treme incontrolavelmente a minha força de vontade já não é capaz de o fazer parar com tal comportamento absurdo. Eu sei que os meus pais não tinham cura. Eu sei. Já estudei tudo sobre demônios e criaturas das sombras e tudo diz que alguém transformado em Abandonado, nunca mais regressa ao seu estado humano.

Mas os pais não eram mundanos. Uma voz dentro da minha cabeça parece estar a mostrar-me o caminho para algo que eu não quero pensar mas que estou a ser obrigada. Eles tinham sangue de Anjo nas veias, isso não faz deles humanos normais que não aguentam as Marcas e por isso se transformam em Abandonados.

— Não… - Sussurro, abanando a cabeça sem parar. – É impossível…Os meus pais….

— Eu podia traze-los de volta. – A revelação choca-me o bastante para recuar até á parede atras de mim. – Se eu lhes desse sangue puro, sangue de Anjo, eles voltariam a ser Caçadores das Sombras, sem quaisquer sequelas do período de tempo como criaturas monstruosas.

— Dane-se! – Alguém ao meu lado grita. – Retirar sangue de um Anjo é um crime imperdoável e demoníaco! Nem a Lauren nem o Sr. e Sra. Ashblue iriam querer algo como isso! Você é um monstro!

A Briana avança até mim e puxa-me, com força o bastante para quase me arrancar o braço em que me agarra, fazendo-me olhar na direção dela. Os seus olhos adotaram a mesma cor alaranjada, quase dourada, que lhe vi hoje de manha, enquanto lutávamos em casa da Madame Dorothea, mas parece que desta vez ela parece estar a conter a raiva dentro dela de algum modo. Por isso, temo quando seja a gota de água para ela. O que parece estar prestes a acontecer.

— Briana! – Desta vez, quem vejo a gritar é o Jace, que continua com uma aparência lastimável. – Basta! Já chega de má educação para com o nosso pai!

— Pai? – A Briana franze a testa, em sinal de confusão, e vejo a Clary a esconder-se no peito do Luke.

De um segundo para o outro, tudo começa a juntar-se num puzzle que se torna fácil de mais. O modo como estes dois estavam a agira quando aqui chegávamos significa que ambos tinham acabado de descobrir algo perturbador, talvez que ambos são irmãos e que o Valentine é o pai deles. Só isso poderia justificar a repentina mudança de fação do Jace, que sempre se manteve do nosso lado até agora.

No entanto, a minha preocupação gira para outra pessoa: a loira ao meu lado. Ela está confusa e baralhada com as palavras do Jace e sinto que há alguma ansiedade a transparecer-lhe no corpo, pois a mão que ainda me segura o antebraço está a começar a tremer. A raiva já está a assumir forma.

— Jace, tu tens noção do que acabaste de dizer!? – Liberto-me da mão dela e agarro-a a eu. – O que é que essa besta te fez? Ah, seu filho da mãe? O que fez ao meu irmão?

— Permitam-me, já que não acreditam que estou a ser honesto com as minhas palavras, que explique tudo, de uma vez por todas.

— Não! – A Clary foi afastada docemente do Luke, que agora parece estar a fazer frente ao Valentine. – O que quer que digas só será mais uma mentira, uma estratégia para te fazeres de vítima. Tu, um homem que aprisiona a própria mulher inconsciente com algemas a uma cama para a torturar afim de obter informações? Que tipo de valentia é essa?

A atenção do Valentine desvia-se do nosso assunto e volta-se para o antigo colega de grupo, e ex melhor amigo. Por outro lado, o Luke cospe as palavras com amargura misturada com ódio que já foi antes amor e admiração por este homem. Enquanto isso, o caçador contorce um pouco o rosto de cólera, e a Briana está cada vez mais irritada e, por isso, mais descontrolada.

— Não a torturei. Ela está presa para sua própria segurança.

“Filho da puta…”, a Briana sussurra as palavras dela ao meu lado, suficiente baixo para que mais ninguém ouça mas, e infelizmente, o Jace ouve-a e lança-lhe um olhar reprovador que a faz esbugalhar os olhos. Por um instante, é como se eu conseguisse sentir as emoções da Briana: raiva, tristeza, choque e confusão. No entanto, tenho medo de lhe explicar o por quê de tudo isto estar a acontecer, o por quê do Jace estar a ter este comportamento bizarro co todos nós. Nem eu mesma sei se aquilo que o Valentine diz ser verdade é mesmo logo, não sei se posso confiar nas reações dos outros.

— Protege-la de quê? A única coisa que é perigosa para ela és tu. – O Luke avança sem medo, com as suas afirmações. – Sempre foste a única coisa que a pôs em perigo. Ela viveu a vida inteira a fugir de ti, a esconder-se de ti.

— Amei-a. – O homem de cabelo prateado está cada vez mais rancoroso e há algo na expressão dele que se identifica com uma pessoa que conheço. – Nunca lhe faria qualquer mal. Tu é que a viraste contra mim.

O lobisomem solta uma gargalhada sonora e eu encolho-me com esta.

— Ela não precisou de mim para se virar contra te. Aprendeu a detestar-te sozinha.

— Não a censuro. – Murmuro, alterando o meu olhar pelos dois homens da sala e pelo rapaz que continua imóvel atrás do “pai”.

— Isso é mentira! – Do cinto que sempre trouxe pendurado à cintura, e de que só agora me dou conta que trazia consigo, o Valentine tira uma espada afiada e assustadora.

O brilho da lâmina é hipnotizador mas, ao mesmo tempo, enche-me de receio. A lâmina deve estar já manchada de sangue inocente das vítimas dela. Para não fala que a espada é tão delgada que consegue ser ainda mais fina que o meu dedo mendinho, o que a torna ainda mais perigosa. Logo, quando a vejo apontada ao coração do Luke, o meu peito enche-se de oxigénio, que insiste em armazenar dentro dele, e um grito revoltante agita-se nas minhas cordas vocais, disposto a sair sem intenção.

Mas parece que, finalmente, o Jace toma alguma iniciativa e avança na direção do Valentine, procurando acalma-lo.

— Pai…

— Cala-te, Jonathan Christopher! – O grito do Valentine abala o Luke, não por o seu tom de voz ser furioso, mas pelo nome que ele acabou de dizer.

Desta vez, expiro o ar que tinha contido nos pulmões. Sinto que a ameaça que virá a seguir será a pior para todos nós.

— Jonathan? – Murmura o lobisomem.

A Briana troca olhares por cada um de nós, especialmente pelo Jace e por mim, que nem por sombras consigo esconder a tensão dos meus músculos e o medo no meu olhar. A verdade não pode ser escondida por muito mais temo, e tenho plena consciência disso, no entanto, temo pela reação da loira que, por sinal, já está novamente a ficar aborrecida com o que se está a passa. Tanto que cerra os punhos das mãos e olha para todos nós.

— Mas que porra se está aqui a passar que eu sou a única que não sei!? – Ela tenta desembaraçar-se das minhas mãos mas não deixo que tal aconteça. – Há algo que me estão a esconder. Diga-me o que é!

O Valentine, que até á pouco tinha uma expressão colérica no rosto por estar a ser deparado com as verdades vindas do Luke, e que o enfureceram por não ser o que ele esperava, começa lentamente a acalmar-se a recuperar o mesmo sorriso irónico que sempre tem para quando a situação está a seu favor.

— Nem tu, Lauren, que és a melhor amiga da Briana, lhe disseste a verdade? – Um sabor metálico sobe-me á boca e engulo a saliva a custo. – Podem ter-me interrompido da última vez mas agora ela vai saber toda a verdade?

— Que verdade?


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Notas finais do capítulo

Caçadores das Sombras nascem do sangue de anjos e são forjados com o fogo, por isso têm que passar pelas chamas mais infernais para seguirem em frente. É isso que Lauren e Briana fazem. Mas isso não quer dizer que não possam quebrar-se. Que verdade será esta? Porque Jace está do lado do Valentine em vez do da irmã?



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