Cidade dos Ossos - Vista por Outros Olhos escrita por Ann Wolf


Capítulo 19
Medos à solta em Renwick


Notas iniciais do capítulo

As despedidas são sempre difíceis, ainda mais quando há a possibilidade de não a ver retorno. É isso que Lauren e Raphael sabem que pode acontecer. Entretanto, Jace e Briana continuam sobre o domínio de Valentine. Será que, com a ajuda da matilha de lobisomens, Lauren e Clary conseguirão salva-los? Que sacrifícios serão feitos?



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Desço da mota vagarosamente. Agora que aqui estou, sinto de tal modo pressionada que tenho as palmas das minhas mãos a suarem e o peito a pesar chumbo. Os meus instintos continuam a avisar-me de que se eu passar por aquela cerca, não estarei mais segura e terei de me manter alerta de tudo ao meu redor se me quiser manter viva.

        Respiro fundo, para que desse modo, me sinta mais confiante da minha decisão, e começo a seguir em frente. Acabo de dar um passo quando o Raphael, com a velocidade de uma chita, agarra no meu pulso com tamanha força que não me consigo soltar.

        Num segundo estou em pé afastada dele e no outro encontro-me encostada ao duro peito dele, com a minha cabeça escondida por baixo do queixo dele e a outra mão livre dele a agarrar-me a cabeça.

        O meu coração dá um pulo e juro sentir a minha pulsação a fazer-se ouvir nos meus ouvidos pelo ritmo com que me corre pelas veias. Sei que o Raph já se deve ter apercebido disso mas não lança nenhum comentário ou brincadeira. Parece mesmo que ele não está interessado em desviar-se da seriedade do momento.

.      - Raph. – O nome dele custa a sair-me dos lábios, bailando-me na garganta e na boca antes de o proferir.

        Sinto-o a apertar-me ainda mais no meio dos seus braços bronzeados e meio descobertos pela camisa. É quase como se ele quisesse que eu me entranha-se no corpo dele para, desse modo, ficar protegida dos perigos que me assombram. Embora ninguém possa mudar o destino para o qual nasci.

        O Raphael solta um suspiro que soa demasiado doloroso aos meus ouvidos e me faz agarrar-lhe no tecido de algodão de que a camisa é feita. Ele continua calado, fazendo com que me sinta estranha rodeada pelos braços dele. Por isso, quando sinto o peito dele a subir e descer, como se estivesse a respirar o oxigénio no ar, fico apreensiva.

        - Não quero deixar-te ir. – O moreno sussurra estas palavras por cima da minha cabeça. – Não me vou conseguir perdoar se…se…

        Encolho-me no peito dele depois disto. Não quero que ele termine a frase pois magoa-me tanto a mim como a ele ao tentar dize-la. Já me mentalizei que a morte é algo que um dia há de acontecer a todos, até mesmo a mim, mas de cada vez que a vejo por perto sinto medo. E não exatamente por mim mas pelos que me amam e que irão sofrer com a minha perda.

        Só de pensar na Briana a saber que morri, mesmo que tenha sido em batalha, o cenário que me percorre a mente é angustiante. Uma Wayland completamente revoltada e isolando-se a si mesma dos outros por sentir que ninguém a consegue compreender como ela deseja.

        O Raphael…não o vejo a ter uma atitude como essa, não sei porquê. Talvez ele ficasse revoltado, e não voltasse a ser o mesmo galã e divertido vampiro mas, suponho, que viria a superar isso mais cedo ou mais tarde. Eu não sou imortal como ele logo, não poderíamos ficar juntos até ao final, e o Raph sabe bem disso.

        Mas mesmo assim, por ele, pelos meus amigos, pela minha família, eu não vou morrer hoje nem tão cedo.

        - Eu não irei morrer. – A minha voz sai um pouco angustiada sem eu querer. – Eu prometo que não te vou abandonar.

        - Tu sabes por que eu estou assim? Tão estranho? – Ele afasta-me um pouco e passa uma das perna pela mota, para ficar frente a frente a mim. – Por que estou tão preocupado?

        Abano a cabeça negativamente. Eu posso facilmente descobrir o por quê mas quero antes ouvi-lo da boca dele porque só assim, saberei que ele está a desabafar algo só dele, que eu ainda não sei.

        - Porque eu amo-te e já vi o Valentine uma vez em ação. – O Raphael agarra-me novamente em ambos os antebraços e puxa-me para ele, enlaçando desta vez os braços em volta da minha cintura. – Eu vi o modo como ele age e acredita, não foi agradável. Vários amigos meus, quando se aproximaram dele para o atacar e às vezes só por estarem por perto, acabaram caídos no chão, transformando-se em cinzas.

        Fico apavorada pelo modo como ele descreve a cena que foi durante o ataque da Insurreição. Já tinha ouvido falar que tinha sido um dia horrível para os Caçadores das Sombras e para os Habitantes do Mundo-à-Parte mas nunca me descreveram exatamente como tinha sido aquele dia.

        - O Valentine ataca por todos os lados, se tiver oportunidade. – Continua. – E mesmo que não tenha, ele força todos os lados que puder para arranjar. Aquele dia foi horrível. Todos nós temíamos só de olhar para ele. Os olhos dele pareciam irradiar uma fúria tão demoníaca que fazia qualquer um recuar.

        O rosto do vampiro parece contorcer-se de agonia ao relembrar-se de tudo o que aconteceu naquele momento, numa batalha que lhe poderia ter custado a vida, pelo que me conta, e que custou a de muitos mais.

        Enquanto isso, eu permaneço calada, ouvindo o seu relato, o seu desabafo, que tanto me faz sentir mais próxima dele mas também tão afastada pois parece que ele já se está a despedir de mim antes de eu ter sequer entrado na luta.

        - Naquela altura, eu não pude ter a chance de lutar contra ele. Nem agora. Mas por isso, é que queria estar contigo até ao final. Para te proteger e, se fosse preciso, colocar-me à tua frente para morrer por ti.

        - Raphael! – Grito.

        As lágrimas ameaçam-me libertar-se da prisão em que as mantenho. Parece que mesmo depois daquelas das quais eu me livrei hoje, ainda tenho bastantes de reserva, mas não quero ter essa atitude perante do Raphael. Saber que essa atitude o pode colocar ainda mais disposto a entrar ali comigo ou a tentar intrometer-se nestes assuntos que serão fatais para ele se se envolver demasiado, deixa-me mais decidida a não chorar.

        Mas não é isso que os meus olhos querem, basta que já nem obedecerem-me obedecem.

        - Não quero que voltes a dizer coisas como essas. – Reprovo. – Nunca mais! Tu próprio já viste o Inferno na Terra mas parece que ainda estás disposto a passar por mais torturas do que essa.

        - E estou. Por ti…

        - Não! – Começo a tremer e preciso de agarrar na camisa dele para me controlar mais, focando os meus olhos no rosto dele. – Raph, eu quero que tu continues vivo, aconteça o que acontecer, entendido? Eu sou uma Caçadora. O meu dever é lutar contra o mal que pode destruir a Terra e para isso preciso de arriscar a minha vida a todo o tempo.

        Faço uma pequena pausa para recuperar o folgo e volto a olhar para o rapaz que se encontra á minha frente, surpreendido com a minha atitude.

        - Não quero que te envolvas em problemas como este, quando eu não me posso envolver nos teus.

        - Mas… - Ele tenta contra-argumentar, no entanto, não lhe dou hipóteses de tal.

        - Já disse que não! – Suspiro e deixo-me cair sob o peito dele. – Eu prometo-te que não morrerei esta noite.

        A minha promessa é arriscada e posso nem mesmo conseguir cumpri-la mas mentalizo-me que farei os possíveis e impossíveis para a manter. Tudo o que o Raph acabou de dizer até agora, demonstra o amor que ele sente por mim, ao ponto que está disposto a usar a vida dele como pagamento pela sobrevivência da minha vida. Não conheço prova maior que essa.

        Vejo ele a levantar os braços um pouco mais e a colocar um deles ao nível das minhas costas e o outro ao da minha cabeça antes de os sentir a apertarem-me mais contra o corpo rígido dele. Imprudentemente, cheiro-lhe a roupa. Consigo identificar o cheiro a sangue e pó, bem como a madeira velha. Não é algo que me fascine mas não me faz afastar dele. Apenas, encolher-me no peitoral dele.

        - Lou… - Iço um pouco a cabeça e ele aproveita para colocar a cabeça dele no espaço entre o meu pescoço e os meus ombros. – Amo-te.

        Fico com uma sensação estranha a percorrer-me o corpo todo. Talvez por saber que o lugar favorito dos vampiros para se alimentarem é o pescoço, onde se consegue diferenciar melhor as veias e onde o sangue é mais saboroso, ou pelo menos foi o que eu li nos livros. Ou então porque é perto do local onde me morderam quando fui atacada no castelo Belverde quando fui buscar a Briana com o Alec.

                O facto de o Raphael ter dito tais palavras, também não me ajuda muito a manter-me calma.

        Mas, embora com essa sensação estranha, apenas suspiro e abraço o Raph com quanta força tenho, fazendo-o soltar uma pequena, e quase inaudível, gargalhada que me faz cocegas e, por consequência, um pequeno suspiro.

        Ele retira a face de onde a tinha colocado e olha-me nos olhos, como se me estivesse a examinar desde do meu mais ínfimo interior, até à aparência que tenho no exterior. O íman que ele parece carregar nos olhos faz com que eu não me queira desviar deles e, por causa disso, começo a aproximar-me mais dele, ignorando o que a minha pulsação começa a fazer.

        No momento a seguir, mesmo antes de tocarmos os nossos lábios, consigo fechar os olhos entregando-me ao sentimento que me preenche.

        Coloco os meus braços ao redor do pescoço dele e ponho-me em bicos dos pés para ficar mais ao nível da boca dele. Enquanto isso, o moreno rodeia-me as costas com as mãos e coloca-me mais colada ao corpo dele, descendo por vezes até as minhas coxas com uma mão para depois a voltar a subir.

        Quando estou a ser tocada por ele, é quase como se estivesse sobre o efeito de alguma bebida exótica que me põe os sentidos completamente fora deles mesmos. A diferença é que aqui, apenas a minha mente parece ficar fora de si enquanto os meus sentidos ficam ainda mais apurados.

        A sensação de continuar com o Raph a acariciar-me e a distribuir-me beijos por todas face, lábios e às vezes o meu pescoço, é tão boa que quando começo por fim a ouvir o som de pneus a fazerem curvas e travagens, não quero parar. Mas vejo-me forçada a fazer isso.

        O Raphael compreende o por quê e faz o mesmo, afastando-se um pouco para poder observar melhor o conjunto de jipes e carrinhas que começam a aparecer em fila indiana e por onde começam a sair uma data de pessoas, homens e mulheres, com um ar carrancudo e disposto a despedaçar o primeiro inimigo que lhes apareça á frente.

        - Parece que já chegou a cavalaria. – O tom de voz dele não se mostra nada contente com a vinda dos convidados.

        - Sim. – Confirmo, não querendo dizer que é o momento de dizer adeus. – É melhor eu ir andando.

        - Espera. – Ele não me permite sair do abraço dele e em vez disso, começa a vasculhar por algo nos bolsos das calças.

        Quando vejo o que é, fico um pouco confusa. É algo parecida com uma pulseira negra com tons prateados a decora-la e com um botão ao lado, como se fosse algum tipo de relógio. O Raphael agarra numa das minhas mãos gentilmente e coloca-me a pulseira sem uma palavra de consentimento meu.

        - Isto vai poder deixar-nos em contanto quando for preciso. – Explica ele. – Basta carregares neste botão de lado e eu vou saber que queres falar comigo.

        O moreno aponta para o pulso dele e noto-lhe a mesma pulseira que a minha.

        Aceno com a cabeça mas parece que ele ainda não terminou o seu discurso de últimos cuidados para comigo.

        - Agora um ultimo pedido. – Uma expressão séria assombra-lhe o rosto. – É mais um aviso. Antes das duas horas, quero que me lances um sinal. Se não o fizeres, venho aqui e junto-me á batalha.

        - Raph! – Preparo-me para reclamar mas ele não me deixa terminar.

        - Nada de refilar. Se não o fizeres venho para aqui de imediato e acabo isto com o meu grupo.

        Bufo por não estar a acreditar que o Raphael está a dar-me um sermão acerca de responsabilidade. Por outro lado, compreendo o facto de ele estar assim e levo isso em desconto pela preocupação que ele mostra ter por mim, e que faz com que eu goste mais dele e se torne difícil juntar-me ao grupo.

        - Mais alguma coisa, babe? – Pergunto, esperando que ele tire os braços do meu redor, algo que ele faz de imediato e me faz perceber o quanta falta sinto dos braços dele. – Vou andando.

        Compartilhamos um último beijo, e eu saio das sombras que as arvores nos ofereciam para a nossa privacidade.

        A matilha do Luke não se encontra longe e chego lá num instante, sendo recebida com alguns olhares curiosos e inquisidores dos membros do grupo, antes de me aproximar da Clary que me recebe com um sorriso fraco na expressão séria do rosto dela.

        Reparo que têm vestígios de sangue no couro cabeludo e alguns traços no rosto que não reconheço desde que a vi em casa dela, a fugir de um Superdemónio que lhe queria roubar a Taça. As olheiras no rosto dela estão mais visíveis e profundas e o cabelo dela encontra-se despenteado e um pouco sujo, assim como as roupas, mas mostra-se pronta para lutar assim.

        Já o Luke, que se encontra ao lado dela, está mais pálido e magro e consigo perceber-lhe algumas olheiras por baixo dos óculos dele.

        - Lauren, pensava que já não vinhas. – A Clary abraça-me ao de leve. – Estás um pouco corada…Está tudo bem?

        - Sim, só estava a falar com o Raph. – Explico, vendo-lhe uma expressão aterrorizada a tomar-lhe o rosto. – Pois, ele já me contou da vossa aventura no hotel Dumort. Como uma matilha de lobisomens atacou o grupo dele.

        O Luke suspira e olha para mim.

        - Os vampiros estavam dispostos a atacar a Clary e o Jace por terem entrado no território deles mesmo sendo por causa de recuperarem o Simon. – O Luke não parece estar muito interessado nesse problema e entendo o por quê: ele espera derrotar o Valentine e salvar a Jocelyn. – Além do mais, só os ataquei para proteger a Clary.

        Aceno com a cabeça que percebi e olho de novo para a Clary, que entretanto também começo a observar o edifício onde antes devia ter estado no lugar um grandioso hospital, com boa fama pelos seus serviços.

        - Como é que pode alguém viver aqui? – Pergunta ela.

        É verdade que o hospital parece estar bastante destroçado mas há algo que não bate certo. Não vejo um Caçador das Sombras tão orgulhoso do seu poder a escolher um lugar ao qual ele não adicione um toque de qualidade superior. Por essa razão, enquanto o Luke comenta algo com a Clary, descontraio a minha mente e então vejo. As ruínas transformam-se em algo parecido com uma mansão neogótica, com os arcos a rodearem as janelas do segundo e terceiro andar, e um pátio de pedra branca rodeado pelo relvado verdejante e árvores altas e entroncadas. Mesmo assim, o primeiro andar do edifício permanece sombrio e escuro, transmitindo a sensação de perigo.

        Não consigo evitar de tentar perceber se se esconde algo por detrás das colunas e paredes depois do pátio. A imagem que me assalta são de Abandonados a atacarem de um instante em direção á minha garganta e, com o susto, contenho o ar dentro de mim antes de o soltar como se tivesse levado um murro no estomago que me faz recuar, dobrando-me sobre mim mesma.

        - Lauren… - O Luke aproxima-se de mim com a Clary. – O que foi?

        Aponto para o primeiro andar e começo a ver a matilha a andar, fazendo-nos gestos para começarmos a andar. Procuro faze-lo, sem que os cabelos da minha nuca comecem a levantar-se pela sensação de estar rodeada por um bando de lobisomens.

        A Clary e o Luke ficam ao meu lado, sendo que o lobisomem fica mais á frente, com a cabeça baixa e os membros superiores um tanto abertos, como uma mãe galinha a proteger os filhos.

        Retiro o meu bastão do cano da bota e olho ao meu redor. Se ativar o guisarme agora, posso estar apenas a adiantar o ataque, senão mesmo a colocar a matilha um tanto insegura por causa do metal de que é feita a arma. Além do mais, isso chamaria a atenção de quem quer que esteja a observar-nos por o guisarme possuir o poder angelical das minha runas, bem como uma luz forte capaz de iluminar tudo á minha volta.

        Em vez disso, deixo que o bastão permaneça nas minhas mãos enquanto caminho silenciosamente, ao ritmo do círculo que se formou á nossa volta no momento em que chegámos ao pátio. A maior parte dos amigos do Luke já se encontram na sua forma lupina e têm as garras bem afiadas para atacar o quem apareça para se infiltrar no meio.

        De um momento para o outro, é ouvido o gemido de um lobo que depressa se torna um grunhido de raiva seguido por garras e dentes a rasgar tecido. Olho para o lado e deparo-me com a cena de um grupo de lobos a saltar na direção de uma dezena de Abandoados. O meu peito aperta-se por pensar que um deles pode ser os meus pais mas cedo me apercebo que não pois nenhum possui os olhos deles. No entanto, só de lhes ver a pele pálida e acinzentada esticada sobre os ossos bem como cicatrizes cálidas a sobreporem-se sobre a pele.

        Os meus pais devem estar assim…

        Esse pensamento torna-se o meu ponto fraco e preciso de fechar os olhos para conseguir focar em ativar o guisarme.

        - Clary, não saias do círculo. – Digo-lhe, recuando para um pouco da traseira do grupo.

        Um Abandonado com uma espada comprida lança-se sobre nós para atingir a Clary e o Luke mas consigo colocar-me no meio, utilizando o guisarme e os meus braços como alavancas para o içar para trás. A criatura não desiste e tenta dar-me uma estocada com a lâmina no meu estomago no entanto, desvio o bastão para parar o movimento e então procuro tentar fazer com que ele largue a arma sem sucesso. Nunca imaginei que os Abandonados, tendo já sido humanos, possuíssem tanta força.

        Ele ruge quando percebe que não me consegue atingir e recebo o hálito a podre em cheio na minha cara, provocando-me náuseas.

        - Não deves ter lavado bem os dentes da última vez. – Replico, voltando-o a afastar de mim e colocando o gume em posição de ataque. – Ou então as refeições aqui precisam de ser avaliadas pelos cuidados de saúde!

        Assim que digo isto, corro em linha reta para depois deferir-lhe um golpe na garganta enquanto baixo a cabeça para não ser atingida pela espada.

        O Abandonado olha-me subitamente assustado, enquanto os olhos deles se reviram e ele cai inanimado do chão, com o sangue negro a jorrar-lhe da ferida e a ensopar o chão em redor.

        Deixo o cadáver dele e volto a tentar aproximar-me do círculo de lobos que entretanto, já se encontra completamente desfeito e sem sinais da Clary ou do Luke. O desespero toma conta de mim e a minha garganta começa a tornar-se tão seca como um deserto durante o dia.

        - Clary! – Chamo.

        Um Abandonado ouve-me e vem na minha direção a uma velocidade superior aos meus reflexos, que se encontram desorientados por não conseguir encontrar a Clary no campo de batalha em que estou encurralada. Tropeço numa das pedras do pátio caio no chão, arrastando os meus cotovelos pelo atrito, queimado assim a pele.

        Quando penso que se ele me atacar não vou conseguir empala-lo a tempo, um homem salta-lhe para as costas e degola-lhe a garganta, salpicando-se do próprio sangue da criatura. Observo a cena com atenção, tal como o cadáver.

        Não é o meu pai. Só de pensar que pudesse ser…Ainda tenho hipótese, espero que ainda possa ser eu a terminar com a sina deles.

        - Uma mãozinha? – O Luke estende-me o braço e agarro-lho sem hesitar, e pondo-me de pé e colocando o meu guisarme de imediato no cano da bota.

        - A Clary?

        - Não te preocupes. – Ele mostra-me duas silhuetas distintas ao pé da porta de entrada e sou obrigada a respirar de alívio. – Isto está uma confusão. Temos de entrar no hospital depressa.

        Ele tem razão. Há cadáveres por todos os lados, uns de lobos, outros de Abandonados, e não consigo dizer com todas as certezas, quem está em mais desvantagem mas também não é com os lacaios do Valentine que me preocupo, por isso apenas sigo o Luke por entre a multidão, garras e dentes que se deparam á nossa frente até chegarmos ao pé da Clary que se está acompanhada por um outro lobisomem.

        - Onde está o Luke? – Ouço-a a perguntar-lhe.

        - Aqui. – Ele sobre os degraus seguido por mim, levando a espada que só tinha reparado possuir durante a luta do Abandonado a salpicar o chão do líquido negro.

        O lobisomem que estava com a Clary faz um gesto ao Luke, em sinal de respeito, e eu desvio o meu olhar para a Clary que tenta a todo o custo observar a cena atrás de nós ao mesmo tempo que lhe vejo a transbordarem-lhe lágrimas grossas dos olhos.

        - Não é um cenário agradável de se ver, pois não? – Sei a resposta que ela dirá portanto, quando ela abana a cabeça em sinal negativo, não fico surpreendida.

        Mas não é pelo cenário que ela chora. Ou pelo menos, não parece ser isso depois de o Luke falar com ela.

        - Ela era apenas uma Habitante do Mundo-à-Parte.

        - Não digas isso.

        A voz da ruiva sai de um modo tão maduro e feroz que não consigo reconhecer a figura frágil que ela sempre me transmitiu durante a secundária.

        - Entendo. – Viro-me para o Luke que mantem o olhar cabisbaixo para o levantar de seguida na direção do lobisomem. – Agradeço-te pro teres tomado conta dela, Alaric. Enquanto nós continuamos…

        - Vou com vocês. – O homem que se chama Alaric responde tão rapidamente que nem dá tempo ao Luke para terminar.

        Fico a examinar a postura de cada um e só posso chegar á conclusão que o Alaric é muito corajoso para se querer arriscar a colocar-se numa confusão ainda maior do que aquela que existe no pátio e que ainda não está terminada. Quero dizer isto em voz alta, no entanto não o faço por respeito à Clary que também se mantém imóvel.

        - É melhor que não venhas.

        O Alaric rosna e os pelos da minha nuca eriçam-se por ver que ele ainda está meio transformado em lobo e com as unhas afiadas a saltarem-lhe dos dedos, bem como os dentes arreganhados.

        - A Gretel morreu para te defender. Tu és o chefe da matilha e eu devo seguir o dever dela como teu terceiro e agora teu segundo. Não me iria perdoar se não cumprisse a minha missão.

        Os olhos dele não transmitiam raiva, apenas o orgulho a ser desfeito por uma ordem de um superior. Já vi essa expressão antes mas numa cara mais delicada e feminina, a cara da Briana quando o irmão, eu ou o Alec a reprendemos devido a alguma atitude imprudente ou a impedíamos de tomar decisões precipitadas. No entanto, tudo isso fazia parte do perfil da nossa Briana e não seria por isso que deixaríamos de gostar dela.

        Nem com todas as discussões do mundo que tenho com ela e com o Jace, conseguir-me-iam parar de arriscar a minha vida só para garantir que eles estão são e salvos.

        - Alaric, eu preciso de ti aqui a controlar a matilha por mim. Lamento, mas isto á uma ordem. – O Luke termina de falar a olhar para o campo de batalha que se estende atrás de nós.

        O tal de Alarica afasta-se, mostrando o quanto se sente ultrajado por não acompanhar o chefe dele na grande e verdadeira batalha, da qual nos aproximamos cada vez mais.

        A porta, cuja entrada leva para o interior do edifico, encontra-se com a madeira esculpida com varias figuras do nosso país como por exemplo as rosas, as nossas runas, os símbolos dos caçadores das Sombras algo que, mesmo que seja nostálgico, faz com que sinta que nem o Valentine nem os seus seguidores, têm o direito de invocar o nosso dever na Terra como se eles mesmos os cumprissem.

        Vejo o Luke a dar-lhe um valente pontapé e a porta a cair mesmo á nossa frente, levantando um pouco de pó do chão.

        - Entrem. – Ele pede-nos com modos, mas noto-lhe impaciência no timbre.

        Faço o que ele pede e sigo logo à frente da Clary e do Luke. Assim que passamos pela porta de madeira estendida no chão, repreendo-me por não ter pensado em trazer a minha luz mágica, a qual costume ter sempre por perto mas que hoje não me ocorreu traze-la comigo para esta missão.

        O lobisomem agarra na porta logo após termos passado por ela e coloca-a no seu lugar, obstruímo-nos a visão do pátio, rodeado de cadáveres mergulhados em sangue e liquido negro. É uma visão ainda mais horrível do que quando matamos demónios e eles simplesmente se evaporam para outra dimensão. Os olhares vidrados de lobisomens que nunca chegarão a ver o dia de amanhã. Vidas humanas desperdiçadas por interesses maléficos, tudo isso tinha levado a este cenário.

        Felizmente, a porta consegue evitar que tanto eu como a Clary permanecemos a fitar tal cena embora sinta diferença quando o silêncio se reúne ao nosso redor e parece que estou a ouvir um zumbido irritante nos ouvidos para substituir os gritos, uivos e grunhidos do exterior. Para alguém como eu, que a adrenalina de lutar é quase uma droga, é quase impossível colocarmos foco no nosso objetivos sem antes eliminarmos os nossos obstáculos por isso quando me vejo presa dentro do corredor de entrada, a sensação de claustrofobia apodera-se de mim de tal modo que tenho dificuldade em me movimentar corretamente.

        Consigo ouvir os murmúrios atrás de mim, entre a ruiva e o moreno, mas apenas continuo a procurar meios de nos guiarmos pela escuridão do interior escuro e seco, nada a ver com o exterior lá fora.

        - Vamos tentar usar a tocha para nos guiarmos. – A sugestão do Luke parece formidável se eu já não soubesse, devido á minha pouco recuperada clarividência que não ia dar qualquer resultado em retira-la do apoio metálico.

        Ele tenta, com muito esforço e determinação, tira-la do suporte antes de eu por fim me cansar de o ver a gastar energias desnecessariamente.

        - Não vale a pena, Luke. Não tem uma lanterna ou um isqueiro? – A Clary olha para mim como se esperasse algo. – Eu não trouxe a minha luz mágica então não posso ajudar no que toca à iluminação.

        - Ah! – A exclamação da ruiva faz-me recuar um passo, para depois avançar dois e deparar-me com uma pedra luminosa nas mãos dela. – É isto a que te referes, não é?

        - Sim, é. – Surpreendo-me por ver algo que só os Caçadores das Sombras que já foram a Idris costumam ter. – Quem ta deu?

        Ela olha minuciosamente a pedra-runa durante um tempo antes de erguer a cabeça de novo.

        - O Jace. Foi ele que ma deu. – Uma expressão apática toma-lhe o rosto.

        Compreendo porque ela se sente tão deprimida mas ainda há mutas pontas soltas no meio deste assunto entre ela e o Jace. Pontas estas que eu quero cortar o mais depressa que conseguir.

        - Combati, durante muito tempo, iluminado pela luz mágica. – Enquanto a Clary se encontra pensativa, o moreno caminha determinado pelas escadas em caracol que rangem ruidosamente de cada vez que subimos um degrau. – Sigam-me.

        - Não temos outro remédio. – A minha voz é seca, não por intenção mas porque sinto a garganta ressequida. – Precisamos de encontrar o Jace e a Briana, para além de recuperarmos a taça.

        Um clarão ilumina mais as nossas sombras projetadas contra as paredes cinzentas de granito polido. Logo à nossa frente, depois de chegarmos a um patamar das escadas, vemos uma luz fraca mas que serve como ponto de referência de para onde devemos ir. Só espero que seja o lugar certo.

        - Há cem anos, os hospitais eram assim? – Penso no que a Clary acabou de dizer.

        - Julgo que sim. – Respondo. – Pelo menos, não estou a ver a dar grande valor aos pacientes de tuberculose e outro tipo de doenças por aqui. O que achas Luke?

        - Eu cá pensava que o Valentine, o Blackwell e os outros o tinham renovado mais ao seu gosto. Como por exemplo isto. – Ele raspa no chão com as botas, mostrando uma runa em forma de círculo com um lema em latim no meio e que encontrava coberta por uma nuvem de poeira.

        Observo a frase em língua morta e fico um pouco confusa: In Hoc Signo Vinces?

        - «Com este símbolo vencerás»? – Falo em voz alta a minha duvida. – Mas o que quer ele dizer com isto?

        - Era o lema do Circulo, Lauren. Os teus pais também o seguiram durante um tempo até se aperceberem das falhas dele.

        Fico em silêncio por ele ter chamado os meus pais ao assunto do Círculo. Já percebi que eles eram jovens irresponsáveis mas, mesmo assim, eles compreenderam antecipadamente que o que o Valentine e os seus seguidores faziam, não era o correto no nosso dever. Relembro-me da foto deles com o grupo, jovens e felizes, e depois os sorrisos juvenis que me lançavam quando era criança e que eram o suficiente para me sentir a menina mais feliz aos olhos deles. Eles nunca conseguiriam possuir um olhar ameaçador e vingativo como os seguidores do Círculo.

        - Então eles estão aqui, certo? – Vejo a minha amiga da secundária a olhar em direção da luz.

        - Estão, pois. – O tom de antecipação que assombra o tom de voz do Lucian não me coloca nada à vontade, muito pelo contrário.

        E, ao que parece, a Clary deve ter ficado com a mesma sensação que eu ao ouvir as palavras do Luke.

        Subimos as escadas serpenteantes que giram em torno de uma coluna e, por fim, chegamos até a um corredor estreito onde vemos com melhor definição a luz das tochas. Não é dos lugares mais agradável para se estar pois se estivermos no meio de uma perseguição, pode virar uma desvantagem por não nos podermos movimentar tão livremente como estamos habituados.

        Aproveito-me um pouco desse facto para me aproximar da Clary e falar com ela os pensamentos que às vezes me assaltam o pensamento.

        - Aconteceu algo contigo e o Jace? – Ela mira-me com os olhos verdes bem abertos. – Acho que esse olhar explica um pouco as coisas.

        - Eu…eu gosto do Jace. Nós beijamo-nos no meu aniversário. – Quem fica surpresa com o que ocorreu sou agora eu. – Por isso é que estou tão preocupada quanto a ele.

        Não tocamos mais no assunto e observo-lhe o rosto pálido com as maças do rosto um pouco coradas. Ela tem a face cheia de feridas e toda esmurrada, parecendo-se mais com uma de nós do que com uma mundana que vive uma vida despreocupada e feliz.

        É óbvio que este tempo que a Clary passou connosco, fê-la amadurecer mais, crescer em todos os sentidos psicológicos para enfrentar o verdadeiro mundo em que vivemos. Admito não ser uma tarefa fácil mas de cada vez que a vejo caminhar para o perigo, com a cabeça levantada e disposta a arriscar tudo para cumprir os objetivos que têm, não a consigo reconhecer de maneira alguma como a antiga Clary Fray.

        Chegamos ao segundo piso e vejo que todas as portas estão fechadas, colocando-nos e ao corredor num breu total ao qual só consigo ver graças à luz mágica e à luz fraca das tochas.

        - Ao menos aqui temos mais luz. – O lobisomem começa a caminhar pelo corredor e a examinar as portas fechadas. – É estranho que não se encontre vivalma.

        Isso é o que ele diz mas sinto algo vindo de uma das portas. Viro-me para a primeira porta á esquerda do corredor, pois esta atrai-me num sentido estranho. Assim que deito a mão á maçaneta percebo logo o porquê de estar a pressentir a presença de alguém.

        - Esquece, Valentine. Eu não obedeço às ordens de ninguém e tu não me conheces.

        O meu peito contém todo o ar que acabei de respirar dentro dele, por tamanha ansiedade ao perceber quem está do outro lado a resmungar. A voz está um pouco rouca mas mesmo assim, é distinguível aos meus ouvidos, não tivesse eu já a ouvido tantas vezes num dia só.

        Giro a maçaneta clássica gelada mas percebo que está trancada. O pânico volta a apoderar-se de mim por voltar a entrar num beco sem saída no entanto, lembro-me a tempo que há sempre duas possibilidades de abrir uma porta: a bem ou a mal. A estela ferve no meu casaco e eu retiro-a de lá num ápice sobre os olhares curiosos do Luke e da Clary que também não percebem o que se está a passar comigo. Traço a runa do fogo rápido o bastante para nem sentir o formigueiro do costume da pele, para depois me concentrar na maçaneta da porta que em contanto com a runa, começa a derreter nas minhas mãos até já não restar nada além de uma fechadura desfigurada.

        Entretanto, a Clary já se encontra ao meu lado, curiosa, vendo-me a chocar o ombro direito contra a porta e esta a abrir-se com um estrondo.

        - Mas o que…Lauren? – A Briana estava sentada num divã improvisado numa divisão completamente vazia e escura, por não ter nenhuma janela, mas assim que me vê, levanta-se. – Lauren!

        Os meus pés mexem-se sem comando e vou na direção dela, abraçando-a no meio da emoção. O medo que antes senti por poder perde-la começa a desaparecer aos poucos e poucos como quando as nuvens se dispersam e deixam o sol iluminar o dia. A loira também parece estar surpresa e abraça-me com tanta força que temo que ainda me parta algum osso.

        - Finalmente! – Exclama ela quando nos separamos. – Já não aguentava mais estar aqui sem ninguém me vir buscar. Embora…eu espera-se mais pessoas do que apenas tu, a Clary e este individuo que eu nem sequer conheço…

        É visível um pouco que desprezo da parte da Briana mas sei que bem no fundo, ela até está agradecida por termos aparecido, mesmo que tenha sido na companhia da Clary e do Luke.

        - Briana, onde está o Jace? – A Clary aproxima-se de nós com os olhos confusos e a desviarem-se segundo a segundo por todo o comodo.

        - Ele não está comigo. A última vez que estivemos juntos foi quando o Valentine e o Pangborn nos trouxeram para aqui e o Valentine tentou fazer um discurso connosco os dois e eu o mandei para um sitio. – Só podia ser o típico da gata assanhada. – Desde então que estou fechada aqui.

        - Mas o Jace ainda não veio cá? – Enrugo a testa por não conseguir compreender como o próprio irmão ainda não a veio buscar nem fez nada.

        A loira abana a cabeça e então agarro-lhe o braço esquerdo levemente e começo a andar com ela para o corredor. Ao princípio, ela pisca os olhos e usa as mãos como proteção contra a luz repentina das tochas, mas logo se habitua e começa a visualizar onde estamos.

        Ao mesmo tempo, o Luke já tinha entrado numa outra sala e que, do lugar ao meio do corredor, conseguíamos ver fileiras de armas de todos os tipos e tamanhos.

        - O Valentine esmerou-se. – Afirmo ao observar as espadas e lanças penduradas nas paredes vermelhas da sala.

        - Não foi só em armas que ele se esmerou. – A Briana tem uma expressão dura na face que percebo pela linha reta dos lábios e olhar distante que se apoderou dos olhos dela. – Ele está a tramar alguma e o Jace faz parte do plano dele.

        - Eu já sabia que o Jace podia ter algo que o Valentine queria. – Admito, vendo-a desviar-se para mim. – Eu ouvi uma conversa entre ele e o Hodge antes de ir ter convosco hoje á tarde. Ele disse que queria “o filho” e tu também.

        - Filho? – O Luke e a Clary reaparecem quando ela fala e então lançamos olhares uma à outra para dizermos que a conversa encerrou por ali.

        As minhas suspeitas ainda não estão totalmente confirmadas e supor em alto que o Jace é filho do Valentine, poderia causar um tumulto entre o grupo para não falar na reação da Clary, que está perdidamente apaixonada pelo Jace e é filha da besta que diz ser pai dele.

        Só de pensar nesse assunto, sinto arrepios a percorrerem-me a espinha das costas que preciso de tremer como gelatina para conseguir relaxar um pouco os ombros tensos.

        Então, vindo do fundo do corredor, o som de um urro raivoso chega aos meus ouvidos, parecendo estar a chamar-me ao seu encontro. Quase como que hipnotizada, caminho em direção do ruído. Há algo nele que insiste em que me aproxime, que vá ter aonde está a sua origem e eu, sem mesmo ter noção do que estou fazer, estou a fazer isso.

        Uma mão pousa no meu ombro esquerdo e acordo do meu transe, deparando com dois olhos verdes a olharem-me preocupados como se eu fosse agora uma estranha ou tivesse acabado de ter uma atitude anormal vinda de mim, o que não escapa muito da verdade.

        - Lauren, tu ouviste não foi? – A Wayland vira-se para o fundo do corredor. – Aquele som…

        - Há algo a chamar-me, Bri. – Confesso.

        A sensação de chamamento é muito forte e preciso de concentrar todas as minhas forças para desviar a atenção disso e voltar-me para os meus companheiros que acabam de abrir mais uma porta de madeira envernizada. A surpresa assalta-lhe os rostos e consigo ver a ruiva a correr para dentro da divisão, sem mesmo dar explicações de nada. O Luke, por outro lado, paralisa-se durante segundos antes de retomar a marcha de um robô, seguido por mim e pela Briana.

        O Luke agarra a Clary por um pulso assim que entramos e logo percebo por quê. À nossa frente, deitada na mesma cama de dossel com cortinados azuis e com uma janela de vista espantosa para o rio, encontra-se a Jocelyn no mesmo estado da última vez que a vi. E isso é o bastante para que fique com os pés colados ao chão com supercola. Ao meu lado, a Briana está com a testa franzida e lança olhares surpreendidos para a mãe da Clary.

        - Ela está a dormir? – As palavras da Wayland são sussurradas para que só eu as ouça.

        - Não. – Não me esforço por falar baixo pois sei que mesmo que não diga nada, o Luke e a Fray iriam descobrir o facto. – Ela está sobre algum tipo de encantamento. Nenhuma pessoa, mundana ou caçadora, consegue ficar tanto tempo a dormir sem mesmo ouvir as pessoas.

        A ruiva dá a volta à cama da mãe, observando durante um tempo os tubos que estão ligados ao braço da Jocelyn, e detendo-se para lhe acariciar o rosto.

        - Por que a mantêm presa com estas correntes – Pergunta ela, apontando para as correntes de prata presas ao chão e que envolvem os pulsos e tornozelos da mãe. – Se ela nem sequer pode fugir?

        - Não sei. – Replica o Luke.

        Apenas eu e a Briana ficamos onde estamos, examinando o cenário à nossa volta e tentando encontrar pormenores que escapem aos olhos dos outros. No entanto, a única coisa que encontramos que nem a Clary nem o Luke comentaram, foram respingos de sangue já ressequido e com uma cor já escura no tapete cinzento com padrões pretos e azuis-claros, e que já sabemos ser meu pois foi nesse mesmo lugar que eu confrontei o Valentine e recebi uma facada.

        Recuamos novamente para perto da porta, onde permanecemos de braços cruzados.

        - O que achas que eles estão a planear fazer com tudo isto?

        É uma pergunta á qual nem eu consigo responder a mim mesma, quanto mais há minha melhor amiga, por isso abano a cabeça negativamente.

        Ouço então o eco de passos atras de nós e então alguém agarra-me no cabelo e puxa-me à força toda para traz, forçando-me quase a ficar pendurada pelo cabelo e fazendo com que me arda o couro cabeludo. É impossível evitar que um gemido de dor atravesse a minha garganta. Mais ainda quando me agarram no braço do ombro esquerdo, que apesar de já estar sarado, ainda me custa a tomar alguns movimentos, e mo colocam dobrado atrás das costas.

        A Briana tem tempo de se afastar e salta para perto da cama de dossel e dos outros, no entanto, ela não têm nada com que se defender, nem mesmo uma estela ou kindjal para atirar a quem me segura.

        - Ora se não és tu Garroway. Que surpresa simpática. – Reconheço a voz de quem fala por já a ter ouvido uma vez numa visão: Pangborn. – Se bem que já não surpresa nenhuma que estejas com as tuas namoradinhas. Mas olha que estás são muito novas para ti, não achas?

        Sinto-o a levantar-me mais o cabelo e a pressionar-me mais o braço e juro começar a ver pontos de luz na minha visão pelas dores estupidas que estou a sentir, levando uma das minhas mãos á que me agarra o cabelo para tentar arranhar o Pangborn, mas sem efeito. Ele parece uma rocha e não demonstra qualquer tipo de dor ao sentir as minhas unhas a rasgarem-lhe a pele e a fazerem-no sangrar e não vejo outra solução senão permanecer quieta ou então agarrar numa das minhas lâminas seráficas.

        - Se estás surpreso é porque és um idiota. – O Luke não parece nada contente com a situação e consigo ver as pupilas dos olhos dele a dilatarem-se. – Eu não cheguei, propriamente, discreto.

        - Pois bem sei. – Aproveito a minha oportunidade e, sobre o olhar atento da Briana, busco alguma lâmina dentro do meu casaco sem que o grandalhão se aperceba. – Ah, já agora, deixa-me só tratar de um pequeno assunto antes de terminarmos o nosso.

        A pressão no meu cabelo aumenta e então levo um puxão que me obriga a fechar os olhos, não reparando que ele me está, praticamente, a lançar pela porta fora do quarto como se eu seja uma boneca de trapos. Caio em cima dos joelhos e logo de seguida esfrego os cotovelos e a cara na pedra do chão, esmurrando a pele e sangrando. Por alguns segundos, sinto-me atarantada e sem forças.

        - Lauren! – O grito da Briana e dos outros irrompe pelos meus ouvidos e forço-me a levantar. – Não!

        Uma mão é colocada no meu pescoço e sou novamente içada no ar, não tendo tempo sequer para voltar ao estado totalmente consciente. A mão que me agarra é forte e no entanto esguia e consegue fazer com que eu fique com os pés a dois centímetros do chão poeirento, e preciso que me agarrar a ela pra diminuir a pressão que faz sobre a minha traqueia.

        - Lauren Ashblue. – Não reconheço o homem ao princípio mas quando lhe observo melhor o rosto vejo parecenças com um dos homens com mantos da Clava que estavam atrás do Valentine quando ele torturava os meus pais psicologicamente. – Estávamos à tua espera. Estás muito atrasada para a festa.

        Não sei ao certo ao que ele se refere mas não lhe dou tempo para ele me dar explicações e levo a minha mão ao meu casaco, rodeado o cabo de uma das minhas lâminas seráficas e retirando-a no tecido de cabedal.

        - Ah. – Com um simples gesto e ele empurra-me contra a parede e sinto algo liquido e pegajoso a escorrer-me pela nuca. – Nada de violência, querida. Eles vão ficar desapontados se tratares as pessoas mais velhas dessa maneira.

        Cerro o maxilar e mostro-lhe uma expressão irritada e sem nenhum medo. De facto, a única coisa que sinto é raiva por estarem a fazer charadas comigo sobre algo que eu nem sequer consigo perceber e o medo que antes me atormentava por não saber da Briana, está agora coberto por toda a minha fúria do momento.

        O homem ri-se agarra-me os pulsos, obrigando-me a coloca-los atras das costas para ele ficar com garantias que não tenho possibilidades de o atacar. Só com muito esforço é que finalmente faço o que ele quer mas apenas porque estou a sentir cada vez mais um cansaço pesado sobre mim. Tropeço e galgo várias pedras no chão, até me aperceber que estamos a ir em direção do fundo do corredor, em direção de onde vinha aquele som hipnotizante de mais cedo que me chamava. A confusão apodera-se do meu rosto mas tento não a mostrar ao campo de visão do homem que me leva, não quero dar mais nenhum troféu ao Valentine e aos seus capangas.

        Os urros aumentam de volume e trespassam-me a mente como navalhas a ferirem-me. Há algo neles que é reconhecível, algo que faz com que eu queira sair daqui a sete pés ou então acabar com eles de uma vez por todas. Embora antes eles me chamasse, agora sinto que me estão a tentar afastar.

        - Cá estamos nós. – Ele abre uma porta metálica que leva a um outro corredor comprido. – Chegamos ao nosso destino.

        O corredor está escuro e cheira a humidade e sangue. Graças à pouca luz das tochas atrás de nós, consigo visualizar o reflexo de barras de ferro á minha frente e dois olhos acinzentados a observarem-me através delas. Olhos que reconheço do meu próprio espelho e também pro saber a quem eles pertencem, sem ser eu.

        - P-Pai… - Um nó instala-se na minha garganta e os olhos começam a arderem-me.

        Quero correr em direção dele como fazia em criança. Saltar-lhe para o meio dos braços e enche-lo de beijos e abraços mas assim que lhe vejo a silhueta desfigurada, o corpo de pele pálida e a colar-se aos músculos e ossos e a postura monstruosa dele, recuo um passo atrás.

        - Oh, vá lá. Não querias reencontrar os teus papás. Vai ter com ele, eu vou deixar-vos a sós. - Ele fecha a porta atrás de nós e vejo que o meu pai é o único que está há minha frente. – Ah e só para dar-te uma pequena…vantagem.

        Uma tocha caí aos meus pés e permanece no chão, com a chama vermelha a tremeluzir um pouco mas ainda acesa. Não a apanho e deixo-a no lugar onde caiu enquanto ouço o a porta a fechar-se e os passos do homem a afastar-se enquanto eu me continuo a deparar com a fera á minha frente. Não sei o que devo fazer e sinto que todos os meus membros estão hirtos. Lembro-me das palavras que proferi quando descobri o que realmente tinha acontecido aos meus pais, que eles não tinham sido assassinados mas sim transformados em Abandonados: Eu vou salva-los. Agora, essas palavras parecem-me vagas de qualquer coragem porque não consigo aguentar o ressentimento e o remorso que irei sentir caso termine o que eu tinha planeado quando aqui cheguei.

        - Pai. Pai, sou eu. – Bem sei que palavras de nada funcionarão mas quero que ao menos ele mostre alguma expressão que eu reconheça de criança. – A Lou. A Lauren. Por favor, pai.

        Ele aproxima-se mim, com a respiração pesada, parecendo-se um animal a farejar o ar onde a presa se encontra, e bem devagar para depois parar a três metros de mim. Solto um suspiro de alívio, ao pensar que ele me reconheceu, que sabe que eu sou e não me irá fazer mal, mas faço-o demasiado cedo. Ele salta na minha direção, com as garras em riste e preciso de agir rapidamente, desviando-me para a esquerda, a tempo de o ver a aterrar no lugar onde eu estava antes. Volto a ficar com peito apertado e a sensação de borboletas no estomago.

        Eu não consigo. Ele é o meu pai. É impossível para mim.

        - Pai, lembra-te. – Grito-lhe vendo a ir em direção a mim novamente, obrigando-me a desviar-me. – Estás a ser manipulado pelo Valentine. Ele quer isto, quer que me matem!

        O meu pai fita-me com uma expressão furiosa antes de lhe ver as sobrancelhas a erguerem-se e a tomarem-lhe a face com surpresa.

        - L-Lou…Vale-nti-ne… - A voz sai-lhe roca e profunda, parecendo mais o ronco de uma besta em um filme de terror do que a voz de um ex-ser-humano.

        - Sim, pai. Eu sou a Lou. A tua filha. O Valentine fez-te isto tudo. – Procuro amenizar as minhas frases, tornando-as simples e fáceis de serem entendidas e vejo que está a ter alguns resultados.

        - F-filh…Argg! – Ele balança a cabeça com tanta brusquidão que fico até com medo que ela se arranque do pescoço dele.    

        Não pensar a tempo em refletir o seguinte golpe vindo dele e acabo por ser deitada abaixo por ele, sendo que o meu pai permanece acima de mim e a tentar arranhar e estilhaçar-me o rosto com as garras e os dentes, parecendo uma besta furiosa e descontrolada. O hálito dele cheira a podre e sangue, aroma que me coloca náusea e queima-me as narinas com a sua intensidade. Mas não lanço nenhum comentário como faria com outro Abandoado ou criatura qualquer, em vez disso concentro-me em manter as armas dele, afastadas da minha cara.

        As minhas pernas tocam na bainha das espadas dele e logo de seguida lembro-me de rolar para o lado direito e sair debaixo dele. Isso dar-me-á a vantagem de o poder decapitar caso seja rápida o suficiente para retirar a espada da bainha e iça-la ao alto.

        Planeio cuidadosamente o meu plano e espero pelo momento certo em que ele afasta um pouco a cara para me poder arranhar com as garras e aproveito-me disso para encolher as minhas pernas e rodopio-me pelo chão, sujo já do meu próprio sangue, e agarro no metal do cabo da espada, içando-a a rapidamente ao alto enquanto o meu pai ainda se recupera do choque de eu ter desaparecido do controle dele num abrir e piscar de olhos. Preparo-me para dar o derradeiro golpe final quando fecho os olhos e paro a lâmina mesmo por cima da nuca dele. O pavor volta a percorrer-me as veias.  

        Ele é o meu pai. A minha família. Eu preciso de salva-lo mas sou uma covarde…

        Deixo cair a espada, tentando ganhar coragem novamente mas em vez disso, apenas firo o meu pai no ombro, a centímetros do pescoço. Ele solta um grunhido e iça-se, ao mesmo tempo que recua. Entretanto, eu abato-me sobre os meus próprios joelhos e deixo que a ponta da espada, agora tingida de um encarnado quase negro, toque o chão á minha frente.

        Eu prometi não morrer hoje mas…eu não consigo mata-lo a ele…

        Ele aproxima-se de mim mas algo o impede. Algo faz com que ele paralise á minha frente. As minhas lágrimas começam a rolar pelas bochechas e espero, espero pelo momento em que ele me partirá o pescoço, em que me irá arrancar a carne do meu próprio corpo enquanto eu me lembro de todos os momentos felizes que passamos em família e fecho os olhos ao respirar fundo.

        - L-Lou. Filha. Elliot. Kira. – Olho para ele, agora surpreendida e não assustada. – Des-desculpa…

        Percebo o que fez com que ele parasse: as minhas lágrimas amargas e o meu sangue, espalhado pelas minhas roupas e pelo chão. Mas o facto de ouvir o meu nome, o dele e o da minha mãe a ser pronunciado é o suficiente para que as minhas lágrimas se transformem em lágrimas de alegria.

        - Sim, pai. Sou eu. – Levo uma mão ao rosto dele e acaricio-lhe.

        Ele fica tenso com o gesto mas logo vejo que os olhos deles, raiados de sangue, estão marejados e contêm-se ao máximo para não chorarem como eu. A respiração dele está mais leve e normal e se não fosse pela sua aparência, julgá-lo-ia humano como eu.

        - Eu…magoei-te… - Ele olha para a espada. – Morte. A…minha…espada.

        - Não! Eu não matei ninguém. – A minha voz é um grito no meio do choro que não consigo parar. – Eu não te posso matar! És o meu pai! A minha família!

        - Eu…Abandonado…sofro com Kira. – Ouvi-lo dizer que sofre juntamente com a minha mãe, coloca-me com mais nojo do Valentine e seus seguidores.

                - Junta-te a nós. Acabamos com o Valentine.

                - N-não. – Vejo-lhe o corpo a estremecer cada vez mais até começar a normalizar-se outra vez. – Mente destruída…instinto de matar.

                Calo-me. A quem queria eu enganar. Um Abandonado, mesmo com toda a sua força de vontade, nunca mais volta a ser o que era antes. As suas memórias ficam confusas, o seu cérebro irracional e é dominado por apenas um instinto incontrolável de despedaçar tudo o que apareça á frente, á exclusão do seu criador. O meu pai, mesmo sendo um homem de força inegável, nunca seria capaz de enfrentar tal fardo da maldição que lhe atribuíram a ele e à minha mãe.

                - Papá… - O meu pai consegue por fim esboçar um sorriso fraco e os tremores voltam com mais força, mesmo ele tentando controla-los ao máximo.

                - Fá-lo…Mata…Salva-me… - Ele agarra na lâmina da espada e iça-a ao nível do coração e, mesmo vendo-me a abanar a cabeça sem para, não para de me sorrir. – Cresces-te…minha…pequena. Tu…és forte. Faz isto…por nós.

                Soluço e fecho os olhos com força, sentindo a água salgada a escorrer-me pela cara com se viessem de uma torneira. Não consigo pressionar a espada com mais força, sentindo-me a dececionar o meu próprio pai, o meu ídolo, e depois começo a ouvir os grunhidos a escaparem-lhe da garganta.

                Antes mesmo que ele se transforme outra vez numa besta irracional, agarro com força no cabo e quando ele se lança a mim, solto um grito e trespasso-lhe o peito com os meus olhos nos olhos dele. A pupila dele dilata-se um pouco e depois volto a notar-lhe a sensação paterna que ele me transmitia apenas com o olhar quando eu era mais nova e que, agora, se segue de um revirar de olhos enquanto ele tomba para o lado, com a lâmina inserida na carne dele e ensopando as pedras escuras e os espaços entre estas.

                Ouço a chamarem o meu nome mas apenas consigo focar o corpo do meu pai ao meu lado e um zumbido de fundo nos meus ouvidos.

                Eu acabei de matar o meu pai. Eu consegui salva-lo?


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Notas finais do capítulo

A batalha começou. Valentine contra lobisomens, Clary, Briana e Lauren. Mas e esta? Com o homicidio do pai, será capaz de continuar a lutar? Ou desistirá? A pergunta fica gravada: conseguiu ela, realmente, salvar o pai?



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