Cidade dos Ossos - Vista por Outros Olhos escrita por Ann Wolf


Capítulo 14
Segredos Perigosos


Notas iniciais do capítulo

No ultimo capitulo:
O encontro com Raphael não podia ter sido melhor mas no fim, algo aconteceu. Lauren não se sente bem e tal nunca lhe aconteceu. O resultado: ela encontrou Jocelyn através do seu dom. Mas será ela capaz de ajudar a mãe da Clary? Que mais irá ela descobrir?



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Assim que me dou conta que tenho a mãe desaparecida da Clary á frente dos meus olhos, fico completamente sem chão. As dores que antes me atormentavam a cabeça e o pensamento parecem ter deixado de existir fazendo com que eu finalmente possa raciocinar sem qualquer barreira emocional.

                Primeiro tento perceber se eu sou capaz de tocar em objetos e logo que percebo que isso é possível mas não consigo tocar em outros seres vivos pois quando tento alcançar um dos fios de cabelo da Jocelyn, a minha mão trespassa-o sem a menor dificuldade e sem ao menos lho puxar quando coloco algum peso da almofada onde ela repousa a cabeça.

                Se fosse vista de um certo modo, parece que está apenas a dormir e presa no mundo dos sonhos mas algo me diz que estes soros servem de alguma coisa e com certeza não devem ser para a manterem a dormir. A cara dela parece estar muito suave para quem esta apenas a ter um sonho e a respiração é sempre constante e regular. Mas há algo que me perturba em relação a ela estar aqui. Sei que ela foi, possivelmente, raptada pelo Valentine mas porque está a ser de certo modo tão bem tratada?

                - Jocelyn, o que terá acontecido? – Pergunto, sabendo que não vou receber nenhuma resposta em troca.

                Há ainda mais uma coisa que me preocupa, agora que sei a localização da Jocelyn, deve ser mais fácil encontra-la já que esse é o objetivo da Clary e do Jace. No entanto, caso eu revele algo sobre este assunto, delicado como ele é para a Clary, tenho a certeza que todos nós estaríamos metidos numa grande alhada por haver razões emocionais no meio deste conflito. E ainda precisamos de encontrar a Taça Mortal para garantir que esta fica segura e que o Valentine não a consegue usar para os seus planos maquiavélicos.

                - Senhor, qual será o próximo passo. – Enquanto me encontro a pensar no que irei fazer quando sair desta visão realista, vozes começam a chegar do outro lado da porta do corredor.

                A minha primeira reação é a de procurar um lugar para me esconder e só depois de conseguir acalmar os meus reflexos é que penso com mais claridade que ninguém irá saber que eu estou aqui desde que eu não me aproxime de objetos que possam revelar a minha presença neste quarto. Acabo por me manter em pé e perto da janela pra ter algum apoio mas que não me desmascare.

                Quando a porta se começa a abrir, sinto gotas de suor a transparecerem nas minhas temporãs e a escorrerem-me pela testa abaixo. A boca do meu estomago contrai-se quando me deparo com um homem alto, com um fato formal, o cabelo grisalho perfeitamente penteado e os olhos rígidos a sobressaírem-lhe na cara: Valentine. Está precisamente igual á minha visão com os meus pais, embora ele agora pareça diferente de algum modo. Os olhos já não possuem o mesmo brilho sádico de antes. Parece que este fica guardado dentro dele para especialmente os inimigos. Mas então, por que me parece que ele tem uma ponta de arrependimento e preocupação na expressão? Como se as rugas já visíveis por baixo dos olhos estivessem mais profundas desde a última vez que o vi.

                - Vamos com calma. – Diz ele sossegadamente enquanto caminha devagar. – Temos que esperar notícias antes de agirmos. Em breve, muito em breve, vai ser-nos comunicado novidades acerca da minha filha e da sua equipa de adolescentes.

                Ele para a meio do quarto e observa o seu redor. Sinto um sabor metálico a subir-me á boca e arrepios a atravessarem-me o corpo desde a ponta dos pés até aos meus cabelos. O interior da minha mente lança-me avisos em como me estou a arriscar demasiado mas eu nem sequer sei como posso sair daqui.

                -Senhor, e quanto a essa mulher? – Diz o homem que se encontra atrás do Valentine e que eu reconheço como sendo um dos capangas do Valentine que trazia como indumentária da última vez, um manto da Clave mas que agora enverga uma farda de Caçador das Sombras.

                - A Jocelyn não é um problema teu. – A compostura do Valentine altera-se para algo mais rancoroso mas ainda assim não se exalta muito, o que é admirável. – Agora sai, Blackwell. E não me incomodes com mais assuntos irrelevantes. Tenho agora um por resolver.

                O Blackwell, com o seu corpo forte e atitude rígida, saí da sala com o cenho franzido, deixando me sozinha com o Valentine e a Jocelyn. É desconfortável ter que admitir que no fundo, há algo no Valentine que me aterroriza e o pior é eu não conseguir decifrar bem o quê. Há algo no sorriso dele, no modo como fala ou até na aparência que me traz sensações assustadoras: sadismo, tortura, mal e morte. Tudo isso parece estar ligado ao nome dele.

                O Valentine aproxima da cama de dossel e senta-se mesmo ao lado da Jocelyn. A postura que ele adota lembra-me um pouco a do Jace quando desabafava comigo acerca das emoções que lhe chegaram assim que conheceu a Clary e teve contacto com ela pela primeira vez. Isso é o bastante para que eu cerre os punhos em sinal de fúria por este homem estar a ter semelhanças com um dos meus mais íntimos amigos e que nada têm a ver com este monstro em pele humana.

                - Jocelyn, foste muito descuidada ao fugires com a Taça. – Murmura ele para a Jocelyn adormecida, como se esta o pudesse ouvir. – A Clary, ela herdou um pouco da tua personalidade e aparência mas também possui o meu sangue nas veias e é isso que a atrai em busca da Taça.

                O quê!? A Clary é filha do Valentine!? Não, não é possível. Só pode ser uma mentira! Grito isto repetidamente dentro da minha cabeça, como se assim eu possa finalmente crer mais nas minhas palavras no que nas deste homem.

                No entanto, o meu coração começa a pesar chumbo dentro de mim e tenho a sensação que o meu corpo irá desabar com tamanho o choque que recebi com esta revelação. A Clary, filha do homem que manteve os meu pais em cativeiro este tempo todo e que os transformou em Abandonados. A Clary, filha do homem que provocou a Insurreição e consequentemente a morte desnecessária de vários Caçadores das Sombras e habitantes do Mundo-á-Parte. A Clary, filha do homem cujos capangas nos perseguem, assim como o Valentine, para capturarem a Taça Mortal com o objetivo de concretizarem maldades. É algo que me é impossível de acreditar mas que pode, no entanto ser verdade, e é isso que eu detesto: essa probabilidade.

                Ele acaricia o rosto da mãe da Clary de uma maneira tão afável e carinhosa que quase parece estar apaixonado por ela. Isso provoca-me náuseas que, com pouco custo, consigo conter. Embora ainda faça uma careta de nojo.

                É precisamente no momento a seguir á minha careta que eu vejo o Valentine a erguer-se e a rir-se como se o momento tivesse muita piada. O mais estranho é que nada aqui está a ter assim tanta graça para que ele possa recuperar o sorriso sádico e divertido que tantos arrepios me provoca. O meu corpo fica ainda mais rígido quando ele lança um olhar na minha direção e como se a ideia de eu estar ali, a ouvir tudo e a reagir, fosse o maior de todos os seus divertimentos.

                - Interessante como eu esperava estar aqui sozinho com a Jocelyn mas tem sempre de aparecer um intruso. – O seu sorriso alarga-se ainda mais e os meus músculos ficam horrivelmente tensos e paralisados. – Primeiro, com a conversa entre os meus amigos, agora interferes com a visita á minha mulher. Tens uma grande pontaria, Lauren.

                Estremeço quando ele me chama pelo nome.

                Será que ele sempre soube que eu estava aqui o tempo todo e por isso disse aquelas coisas e mandou o Blackwell retirar-se? Penso. As minhas mãos parecem estar a derreter pelo modo como soam. E ele permanece com aquele sorriso diabólico que tanto me aterroriza quanto me repudia.

                - Sabia que eu estava aqui, mas não disse nada. – Profiro, embora não saiba se ele me consegue ouvir ou não. – Também sabia quando eu o observei a torturar os meus pais.

                Ele levanta os punhos e aplaude-me. Isso basta para perceber que ele me ouve e que se esta a rir das minhas palavras, algo que não me coloca nada contente.

                - És esperta, tal como o teu pai. – Diz ele, movendo-se ao redor da cama de Jocelyn ao mesmo tempo que abana a cabeça num sinal afirmativo. – Eles eram uns ótimos Caçadores das Sombras. E até mesmo agora, ainda têm a sua utilidade.

                - Utilidade? Refere-se em me atingirem. – A minha voz sai antes que eu tenha tempo de a parar. – Pois saiba que já percebi o seu plano. Quer que a gente tenha o trabalho sujo para depois roubar a Taça da Clave, não é?

                Os olhos dele adquirem um brilho mais intenso e sinto como se me estivessem a fazer uma revisão desde do exterior do meu corpo até ao interior de todas as emoções que me estão a ocorrer neste momento.

                Sei que, de algum modo, ele quer me baralhar, usar-me para chegar a algum ponto mas não posso deixar que isso aconteça. Não irei permitir que ele brinque comigo ou com alguém que me seja próximo. Já fez estragos suficientes na minha vida e na de Clary, para não falar nos meus pais e do Hodge, a quem eu sempre culpei por tudo.

                - Não vais conseguir o que queres, nós vamos impedir-te. – O tom que coloco nas palavras vem acompanhado de um sabor azedo e enjoativo mas que mostra tudo o que sinto em relação a ele sem que ele necessite de vasculhar a minha cabeça á procura de motivos ou modos de me baralhar. – Vais acabar por ser detido e então não poderás concretizar os teus objetivos. Tu…

                - Parece-me que tu é que vais acabar por perder esta batalha e também a guerra. – Ele interrompe-me, agindo de um modo tão calmo que acabo por franzir o cenho. – Pff, tu e o teu grupo nem sequer sabem como me pararem e a Clave…a Clave está corrompida e o que eu tenciono fazer é tornar o mundo dos Caçadores das Sombras num lugar muito melhor.

                Ele fala como se eu fosse da categoria mais baixa de todos os níveis de Caçadores das Sombras e só então me apercebo que ele conseguiu-me enfurecer com apenas duas frases. Se apenas com isso ele consegue-me colocar assim, então numa luta, seria o suficiente para eu acabar morta

                - Eu só procuro melhorar as coisas fazendo-as emergirem das cinzas. – Agora ele está mesmo a minha frente, embora se volte a sentar no colchão da cama de dóssil. – Não espero que entendas, ainda és uma criança. No entanto, espero grandes coisas de ti. De ti e do teu dom, é claro.

                Espanto-me. Ele sabe do meu dom? Não pode?

                Fito o chão de modo a que isso possa ajudar a concentrar-me para que consiga arranjar alguma explicação para o facto de ele saber do meu dom de clarividência quando isso é algo que nem mesmo o Hodge ou os Lightwood sabem. Os únicos a quem eu revelei sobre isto foi: a Briana, o Jace, o Alec e a Izzy, e eu sei que nenhum deles me atraiçoaria ao ponto de o revelar a um inimigo além que nenhum deles sequer conhecia a existência do Valentine até a Clary entrar na nossa rotina e começar a perceber o mundo ao qual realmente pertence.

                Portanto se não foi nenhuma destas pessoas, então como pode o Valentine saber do que quer que seja sobre mim?

                - Não sei do que estás a falar. – Minto, contra a minha vontade, para não dar sinais de que ele possa estar correto. – Referes-te a quê?

                Ele ri-se baixinho e olha-me divertidamente. Sinceramente, se eu pudesse tocar em seres vivos, a esta hora já lhe tinha acertado um murro na cara para que ele pare de se rir da minha. Não vejo qualquer brincadeira no meio de tudo isto embora para ele, tudo isto não passe de um jogo em que ele se diverte a usar marionetas a seu bom prazer só para não acabar derrotado.

                Uma expressão um pouco mais séria e no entanto confiante, estampa-se-lhe no rosto e tenho a certeza que tentara brincar comigo de novo com alguma das suas frases chocantes.

                - Acontece que os teus pais já foram meus companheiros e amigos. – Revela ele, como se isso fosse uma grande novidade para mim. – Então eu sei um pouco sobre ti.

                - Podes tentar brincar com a minha cabeça mas eu também conheço a história. Os meus pais saíram do Circulo mesmo antes da Insurreição e refugiaram-se no mundo dos mundanos. – Digo, com um sorriso sarcástico no meu rosto. – Eu nem sequer tinha nascido ainda então não podes saber nada sobre mim.

                Estou tão orgulhosa de mim mesma que quase nem me apercebo que um dos objetos na sala se esfumou bem á minha frente. Observo atónita o que acabou de acontecer pois não sei o que se está a passar.

                - Bem, numa coisa tu acertaste. – Ele continua a falar, como se fosse o livro de todo o conhecimento. – Quando tu nasceste os teus pais já não pertenciam ao Circulo mas eu sei do teu dom porque o principal responsável pela origem dele sou eu.

                Certo, agora vais dizer que és o Pai Natal e aquela história de andar de trenó é tudo mentira e tu distribuis os presentes a andar numa mota demoníaca? Isto é o que me ocorre quando o acabo de ouvir.

                É incrível como ele consegue ser tão hipócrita e mentiroso. Como ele espera que eu acredite nele se tudo o que diz parecem armadilhas atrás de armadilhas, não que eu esperasse acreditar em alguma coisa mas tinha esperanças de encontrar respostas para o que quer que fosse que nos pudesse ajudar no meio desta corrida estúpida.

                Uma das lâmpadas da sala desaparece e eu observo o rasto alaranjado que ainda permanece a esfumar-se no ar até se dissolver por completo.

                - Não dizes nada, hein? – O Valentine volta a chamar-me a atenção com a sua voz divertida. – Bem, suponho que não acredites em mim mas talvez venhas a acreditar se falares com a pessoa certa, e olha que tem muitas ao teu lado que já foram grandes amigos meus e dos teus pais. Já agora, acho que o nosso tempo se esta a esgotar, Lauren.

                - Eu ainda não acabei. – Digo, ignorando o facto de a boca do meu estomago se estar a contrair novamente e a sensação de borboletas aprisionadas estarem a esvoaçar dentro das minhas veias. – O que pretendes fazer com a Clary? E os meus pais?

                O Valentine levanta-se e vira-me as costas. Irritada por o estar a ver partir e a ignorar-me sem sequer me ter respondido, caminho rapidamente atrás até lhe agarrar no casaco preto do terno. Este fica de imediato fincando entre os meus dedos e isso é o suficiente para que o antigo Caçador das Sombras gire na minha direção. Os olhos dele transmitem agora a sensação de tortura e sadismo iminente que me faz ficar paralisada de medo.

                - Espera e verás. Não posso arruinar a minha obra-prima. – Enquanto ele diz isto, um dos seus braços atravessa o interior do casaco até chegar a uma adaga que, de imediato, me dilacera o ombro.

                Solto um grito de dor agonizante ao sentir a lamina a esfaquear-me o ombro esquerdo, para além da sensação de várias agulhas me estarem a cortar a carne, há algo mais liquido e quente me queima a pele e o músculo. Começo a perder a força no ombro e recuo um pouco para depois sentir a cabeça a pesar demasiado para que a mantenha erguida. Quando dou por mim, já não consigo ver nada á minha frente para além de um cenário negro.

                - Até breve, Lauren. – A voz do Valentine ainda ecoa nos meus ouvidos antes de eu finalmente perder os sentidos.

                - Ela já acordou?

                - Não, Briana. Acalma-te, por favor, estás a colocar-me nervoso.

                - E como pensas que eu estou, Alec? – A voz da Briana parece um pouco abafada quando a ouço. – Ela é a minha melhor amiga, desmaiou no meu do metro, já está há quase uma hora nesse estado e nem sinais de novidades.

                Parece que de facto eu desmaiei no metro mas não sei como é possível que eu tenha a sensação de estar a andar quando nem sequer tenho os olhos abertos. Logo, não entendo porque ouço passos regulares á minha volta ao mesmo tempo que sinto ser esse o ritmo em que me movimento

                Doe-me o ombro. Há algo quente a empapar-me o ombro e tenho a sensação de me estarem a espetar ferros em brasa pela carne dentro. Gemo de dor ao me apertarem mais contra algo.

                - Lou, estás bem? – Tudo para, já não ouço passos.

                Abro os olhos devagar, pois estes parecem ter as pálpebras firmemente coladas. Já não estou dentro do metro porque a paisagem que admiro acima de mim é a de vários edifícios e um céu escuro e com nuvens a impedirem a luz das estrelas. Observo ao meu redor e encontro a cara preocupada da Briana e a curiosa da Izzy, para além da do Alec também parecer estar com uma mistura entre surpreendido e preocupado.

                - Onde estamos? Isto não é o metro. – Digo enquanto me esforço por mover o pescoço, ignorando o facto de isso aumentar as dores que sinto no meu ombro e que mo impedem de mexer. – Aconteceu alguma coisa?

                - Perdeste os sentidos durante a viagem e o Alec teve de te carregar atá aqui. – Diz a Izzy enquanto acena ao irmão para me pousar no chão. – Com cuidado, Alexander.

                - Eu sei. Tenham calma. – Diz ele, em protesto.

                O Alec tenta primeiro deixar as minhas pernas firmes no chão, fazendo com que eu me apoie nele com os meus braços. Acontece que assim que me vejo sobre as minhas pernas e a ter de mover os braços para me segurar aos do Alec, as dores voltam furiosa e impiedosamente.

                Cerro os olhos e o maxilar para evitar soltar um gemido doloroso. Parece que tenho algo a penetrar-me as veias desde as pontas dos dedos até ao lado esquerdo do meu pescoço.

                - Lauren? – A Izzy aproxima-se um pouco de mim e, inconscientemente, acaba por me tentar dar apoio por pensar que eu estou tonta ou algo parecido. – Apoia-te em mim.

                Ela coloca uma das mãos mesmo abaixo das minhas axilas e a outra na minha omoplata, provocando tantas dores que desta vez não consigo conter um grito choroso. As dores são horríveis e é provável que eu deva ter de fazer uma runa de iratze para que isto cure pois suponho que não é uma ferida qualquer e que a adaga devia estar embebida em alguma coisa.

                A Briana, com a sua visão apurada, observa-me o ombro para depois abrir os olhos num perfeito circulo contornado pelo delineador negro.

                - Malta, deixem-na. – Diz ela, com a voz um pouco embargada. – Sentem-na! E não lhe toquem no ombro esquerdo.

                Os irmãos olham um para o outro antes de acenarem com a cabeça. A Izzy afasta-se de mim logo a seguir, deixando o irmão mais velho com a responsabilidade de me colocar no chão sem me magoar já os olhos da Briana fixam atentamente cada movimento que ele faz como se ao mais ínfimo erro, ela fosse capaz de lhe saltar para cima como uma fera defendo os seus filhotes. No entanto, no que toca á minha pessoas, o olhar que ela me transmite é dócil e tranquilizador.

                Assim que estou sentada num chão, solto um suspiro. O meu ombro parece estar a pesar toneladas e tenho a sensação de que está cada vez mais difícil de movimenta-lo e ao resto do braço, tal e qual quando nos fazem um torniquete e o sangue deixa de circular por essas articulações, o que não parece ser o caso de agora.

                A Briana aproxima-se um pouco e faz um gesto á Izzy para que esta acenda a luz de bruxa para assim ela ter um campo de visão mais perfeito e iluminado pois as luzes das ruas, embora muito florescentes e luminosas, não ajudam de muito em situações de precisão e como também já estamos perto do Instituto é óbvio que as luzes destas ruas sejam mais fracas do que nas mais movimentadas. A luz de bruxa tem um brilho fraco mas suficiente claro para que quando a Izzy se baixa ao nosso lado, eu consiga ter uma visão do local em que sinto dor.

                Uma linha vermelha e com o traçado tosco encontra-se abaixo da minha clavícula. Não parece ser muito profundo mas o sangue já começou a coagular em alguns sítios embora ainda escorra dois fios de sangue devido aos meus últimos movimentos. A volta do corte, a pele possui um tom esverdeado e arroxeado que me faz sentir maldisposta, é quase como se a minha pele esteja a apodrecer por dentro.

                - Isto não é bom… - Murmura a Briana para si mesma enquanto me observa a ferida e coloca uns dos dedos no local onde a pele se encontra arroxeada, provocando-me um gemido choroso. – Alec, temos de chegar ao Instituto e depressa. Tenho a impressão que a Lauren foi envenenada.

                - O quê!? Ai! – O simples facto de me tentar levantar por mim mesma faz com que me sinta zonza mas mesmo assim, ergo-me. – Envenenada?

                - Parece que sim. – Diz a Izzy ao meu lado. – Embora não perceba como é possível teres feito essa ferida e ainda que te esteja a envenenar o sangue.

                - Se tu não sabes então muito menos… - Paro.

                Eu sei como isto apareceu. A minha simulação com a Valentine. O quarto da Jocelyn e a minha conversa com esse homem…adaga. Era uma visão mas teve efeitos como se eu realmente tenha estado lá, o que é impossível. No entanto, quando a adaga me perfurou a carne, eu tive a sensação de que havia qualquer coisa de anormal na lamina, provavelmente deve ser algum tipo de veneno.

                - Não temos tempo para discussões! – Esbraceja a Wayland. – Alec!

                - Briana, primeiro de tudo acalma-te, ok? – Diz ele enquanto a olha nos olhos. – Vamos traçar uma runa de velocidade. Assim chegamos lá mais rápido para que o Hodge possa ver a Lauren. Mas não podes ficar em pânico.

                A Briana olha para mim como que á espera do meu consentimento para poder agir de uma maneira adulta e profissional, algo que eu sempre quero da parte dela. O nosso acordo de amigas também se baseia numa regra: quando uma de nós está em apuros devemos agir de maneira calma e profissional para não estragar tudo. No entanto, às vezes temos dificuldades em tal pois sentimos que estamos a ser demasiado frias uma para com a outra. Mas neste momento, isso não importa. Aceno com a cabeça para que ela prossiga.

                - Certo. – Diz ela, erguendo a cabeça de uma maneira tão firme e corajosa que quase me faz pensar que ela não está ansiosa, eu digo “quase”. – Vamos então.

                Ela retira a estela da liga e começa a traçar a runa de velocidade num dos tornozelos. O Alec segue-lhe o exemplo e completa a dele, uma vez que já a tinha usado hoje de manhã quando fomos em busca da Briana e acabamos por nos cruzarmos com um grupo de vampiros extremamente desagradáveis. O meu braço saudável começa a sentir um formigueiro e vejo a Isabelle a completar também a mim os traços desta manhã embora, assim que termine, guarde a estela no cano das botas em vez de traçar a runa.

                - Iz? – Pergunto, admirada por ela parecer tão estranha.

                O sorriso que lhe costuma frequentar o rosto parece estar desvanecido e os olhos estão baços, não possuindo o mesmo brilho fugaz de sempre, é quase como ela esteja magoada com a alguma coisa ou a sentir ressentimentos acerca das suas ações. Nenhuma imagem me aparece á frente, quando eu me esforço para saber o que se está a passar com ela, e a única coisa que vejo é um fundo branco com sombras desconhecidas e deformadas a que não consigo associar nada.

                - Vão andando. – Ela recua dois passos diante dos nossos olhos. – Eu depois vou ter convosco.

                A Ligthwood gira sobre os calcanhares e começa a caminhar na direção oposta á do Instituto. Juro que a ouço fungar umas duas vezes antes de ela ficar fora do nosso campo de visão. Não entendo porque tenho o pressentimento que ela se sente culpada pelo que aconteceu com o Simon mas também não tenho tempo para pensar muito no assunto pois, entretanto, a Briana já me está servir de apoio para andar ao mesmo tempo que me sorri amistosamente.

                - É melhor irmos antes que isso piore. – Aconselha o Alec, pondo-se em movimento e tentando seguir o mesmo ritmo que nós já que eu, mesmo com a runa de velocidade, tenho os movimentos atrofiados pela dor que se alastra cada vez mais pelo braço inteiro ao ponto que apenas o sinto dormente e sem qualquer movimento.

                À chegada do Instituto é muito apressada até para o meu gosto. Sinto-me tonta pelo esforço e com a sensação de ter borboletas no estomago a buscarem sair cá para fora da pior maneira possível. O mais velho dos irmãos Lightwood vai buscar de imediato o Hodge, sendo que eu permaneço com a Briana no tapete de entrada para que eu não me esforce mais. Ela está indecisa em traçar ou não uma runa de iratze mas lá acaba por o fazer da maneira mais rápida possível.

                A minha pele começa a arder no local da chaga e grito de dor. Parece que me estão a colocar no fogo do Inferno pelo modo como sinto metal líquido a percorrer-me o corpo todo e com origem na ferida do ombro. Amaldiçoo com todas as minhas forças o Valentine; por este me ter atingido, por ter jogado com a minha mente e por ter mantido os meus pais afastados de mim este tempo todo sendo que durante este, ele os transformou em duas bestas raivosas que só lhe obedecem a ele e que estão em constante sofrimento.

                - Lou…Eu não sei o que posso fazer mais. Esse ferimento deve ter algum tipo de veneno que não pode ser curado pelas runas. A ferida nem sequer sarou.

                - Não te preocupes, Bri. – Digo eu, respirando fundo e fechando os olhos ao mesmo tempo que vou mordendo o lábio inferior para me abstrair da dor. – Isto vai passar. Ugh! Ele vai pagar-mas.

                - Ele? – Admira-se ela.

                Não sei se lhe devo contar o que aconteceu para eu ficar assim mas desconfio que se eu o fizer, terei de ser o mais honesta com ela e não me vejo com coragem suficiente para isso agora. Repreendo-me por estar a ser egoísta ao ponto de não pensar em como ela se deve estar a sentir preocupada comigo mas…contar-lhe tudo aquilo que acabei de viver e ouvir não é algo fácil de se fazer, especialmente quando tenho certas dúvidas em relação às palavras daquele homem.

                Felizmente, o Alec e o Hodge aparecem a correr ao fundo do corredor. O nosso tutor ainda está com o terno vestido mas retirou o colete e está agora apenas com a camisa branca e sem gravata. Quando ambos chegam ao meu lado, o Hodge ajoelha-se e observa-me cuidadosamente o ferimento fazendo uma expressão pensativa até que, menos de um minuto depois, começar a observar alarmado o meu ombro.

                - Não sei onde fizeste isso, Lauren, mas tenho de te tratar desse ombro agora. – Diz ele enquanto dá indicações ao Alec e á Briana para irem á enfermaria procurar os ingredientes para uma mistela. – O que te aconteceu para fazeres isso no braço? Parece ser um simples corte de uma adaga mas o sangue ao redor da ferida está a ser envenenado a cada minuto que passa.

                Observo a minha clavícula e localizo o corte logo abaixo desta. Este, tal como a Briana tinha dito antes, não está sarado. O sangue parou de escorrer e está a começar a criar uma camada protetora para, talvez em breve, dar lugar a uma crosta. No entanto, ao redor desta, a pele está mais arroxeada e consigo ver as minhas veias azuis a sobressaírem através da pele.

                As náuseas começam a subir até á minha boca e desta vez sou forçada a engolir em seco para que estas não se transformem num vómito uma vez que se eu vomitar mesmo em cima do tapete de entrada, a Maryse nunca me perdoaria por tamanho ato.

                O Hodge coloca uma das mãos no meu ombro saudável. Sinto-o a tremer, algo não muito comum nele, sendo honesta. Ele baixa a cabeça e ouço praguejar baixinho contra alguma coisa, no entanto, as coisas que ele diz não têm qualquer nexo e não para de repetir “ele”.

                A Briana e o Alec chegam no momento a seguir, com os braços carregados de ligaduras e alguns frascos assim como algumas ferramentas de cirurgia. O Alec está um pouco pálido demais e não entendo bem o porquê, já a Briana possui uma expressão determinada estampada na cara enquanto os seus olhos verdes parecem estar mais suaves que o costume, algo que identifico como a ansiedade e preocupação que se encontram submersas no seu interior. Ela agacha-se ao lado do Hodge assim que chega ao nosso lado e retira os objetos que o Alec traz no colo para depois os dar ao Hodge.

                - Lauren, já tens noção que isto vai-te doer imenso. – Diz o Hodge, retirando a mão do ombro e começando á procura das luvas e remexendo nas ligaduras e numa tesoura.

                - Não quero saber. – Respondo, respirando fundo várias vezes em busca de deixar a minha mente em branco e dessa forma, não sentir tanto a dor. – Desde que o meu ombro fique em bom estado e não me doa pelo resto da semana, estou me nas tintas para o quanto doa.

                - É bom saber que pensas assim. – Provoca a Briana enquanto traz de volta o seu sorriso trocista, que consegue dar-me forças para rir um pouco antes de sentir as mãos do Hodge a retirarem-me o veneno do sangue.

                Depois do nosso tutor ter retirado o veneno das veias do meu ombro esquerdo, coisa que me fez o braço ficar dormente e latejante, ainda teve de colocar uma mistura feita na hora para que os vestígios de veneno, que ainda pudessem estar a correr no meu sangue, fossem expulsos de maneira mais eficaz. Depois disso colocou-me uma ligadura e mandou os meus amigos colocarem-me na cama rodeada das minhas almofadas, lugar onde me encontro agora com a Briana ao meu lado.

                A Isabelle ainda não deve ter chegado pois o Alec permanece refastelado numa das cadeiras ao lado da porta. Ele já não está pálido mas noto-lhe uma certa ansiedade pois não para de fazer gestos com os músculos para não falar que não para quieto com as mãos. Contenho-me para não comentar esse comportamento mas calculo que tenha algo a ver com o Jace já que não há qualquer motivo para o Alexander se encontrar neste estado e se eu falar agora, a Briana, provavelmente, ficara com as mesmas reações que ele e eu dispenso esse nervosismo por agora.

                As lembranças da minha conversa com o Valentine ainda estão a vaguear dentro da minha cabeça com o objetivo de me distrair do mundo real. Não deixo de ficar preocupada com o facto de a Clary poder ser a filha dele, embora saiba que ela não tem nada a ver com aquele monstro humano que mantém a própria mulher em cativeiro só para saber onde se encontra a Taça Mortal ou até mesmo para que ela apenas não volte a fugir dele como no passado, algo que nem reprovo uma vez que eu talvez tivesse a mesma reação quando descobrisse a besta de marido com quem eu tinha casado.

                - Lauren? Lauren, em que mundo estás tu? – A voz da Briana clama por mim e deparo-me com os olhos dela, carregados pelas sobrancelhas louras bem definidas. – Já acordaste desse sono encantado ou ainda estás a vaguear por algum conto de fadas é que se estás mais vale avisar-te que os contos de fadas não passam de armadilhas para a mente dos mundanos.

                - Não, Briana, eu não estava a sonhar acordada. – Desvio-me da cara dela para olhar para as minhas mãos. – Estava a pensar.

                Não lhe quero dizer que estava a pensar em como poderia revelar que houvera estado em contacto com o Valentine e que o resultado disso foi o meu ferimento mas também não lhe consigo esconder o facto de ter descoberto informações que podem ser um pouco importantes para a nossa missão.

                E depois vem uma recordação mais vaga. Uma imagem, um gesto, uma postura esquecida ou insignificante mas que pode ser um sinal ou até mesmo uma pista para algo mais. Isso é o que me diz a minha mente, embora eu ainda não tenha recebido mais nenhuma visão ou algo assim parecido para me ajudar. Parece mesmo que carreguei num botão off que desligou a parte do meu cérebro que é responsável por me dar dores de cabeça e a transmissão de imagens ou palavras que me dão uma ideia do futuro ou de uma solução.

                Ouvimos a porta da entrada a ranger e a fechar-se por fim e o Alec levanta-se num pulo, não sei se como um reflexo ou porque simplesmente necessita de ir ver quem é.

                - Vou vos deixar a sós. Até amanhã. – Ele abre a porta do meu quarto num ápice e desaparece da nossa vista sem mais palavras.

                A Briana levanta-se enquanto suspira e fecha a porta.

                - Pronto, acho que agora me podes explicar o que se passou. – Supõe ela enquanto suspira e se volta a sentar á beira da minha cama, na única poltrona que eu tenho no quarto e onde me sento quando procuro estar mais confortável para a minha leitura.

                - Explicar o quê? – Pergunto, fazendo-me de desentendida para que ela não descubra a ponta de preocupação que me assombra a voz. – Não estou a perceber, a sério que não estou.

                - Não mintas, Lou. Vais-me dizer que subitamente fizeste uma ferida no braço e esta, por alma e graça do Anjo, ficou envenenada enquanto tu estavas dentro de uma visão, sendo que nós estivemos sempre contigo. – O tom com que me fala coloca-me ansiosa. – Conheço-te demasiado bem para saber quando estas a tentar enganar-nos.

                Ela olha-me mais séria e com a pupila dos olhos a ficar rodeada pelo laranja-cobre escuro. Isto é apenas o primeiro sinal em como ela não está a brincar no que toca a querer que eu lhe conte a verdade, o que quer dizer que ela sabe que eu lhe estou a omitir alguma coisa. Um desejo imenso de morder o lábio inferior atinge-me de rajada e não consigo evitar de o fazer com demasiada força.

                - Estou á espera. – A Briana cruza os braços e não para de me observar.

                Só então percebo que estou metida num grande sarilho e que não tenho outra escolha senão revelar tudo acerca da minha última visão que mais pareceu uma simulação em tempo real, e que isso pode trazer mais emoções negativas no meio da nossa nova rotina.

                - Bri, eu…

            - Só quero que me respondas a uma coisa a qual penso estar correta. – Esclarece ela, sem nunca mudar de expressão ou deixar de manter os braços cruzados sobre o peito.

             Ela ergue a cabeça e respira fundo antes de lançar a sua suspeita, que temo estar correta.

                - Estiveste com o Valentine, não foi?


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Notas finais do capítulo

Valentine consegue ser mais manipulador do que Lauren julgava. Mas ainda não chegou ao fim. O que aconteceu foi novo para ela e traz pequenas consequências para não falar que a Briana nada escapa. Irá Lauren ser honesta com a amiga? Ou manterá os segredos perigosos para si mesma?



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