Coroa de Vidro escrita por Sof1A


Capítulo 9
Nove




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          Eu sai correndo atrás de Mare, mesmo que isso possa me colocar em problemas. Ela se tornou uma boa amiga para mim e eu preciso estar lá para apoiar ela. Mas no momento em que sai da sala, não a via. Então eu corri aleatoriamente na esperança de encontrá-la. 

          E depois de muito procurar e nada de encontrar a Garota Elétrica nesses corredores frios e brancos eu paro, me encosto na parede e respiro fundo. 

          — Não deveria estar na aula, Lady Laris? — viro minha cabeça na direção da voz, que já me é conhecida, Maven me encara com seus olhos azuis, olhos que eu poderia dizer serem feitos de vidro.

          — Houve um imprevisto, Mareena não está se sentindo bem e eu vim a sua procura. — Uau. Como eu odeio falar desse jeito. — Agora se me der licença alteza...

          — Me chame de Maven, por favor. — ele me interrompe.

          — Certo. Maven, se me der licença vou voltar a procurar minha amiga, que provavelmente entrará em apuros se eu não a encontrar logo. — começo a andar novamente, mas Maven rapidamente me alcança.

          — Você tem algo contra mim? — ele pergunta. Eu gostaria muito de ter dito: "Você, junto com sua mãezinha armaram um plano para matar seu pai e roubar a coroa, é claro que eu tenho algo contra você." Mas tudo que saiu de minha boca foi:

          — Não.

         — Eu não acredito em você. — e eu não acredito em você. Se eu não tivesse tentando concertar a história, ele seria um cubo de gelo agora.

          — Você é prateado, eu cresci com pessoas me ensinando a te odiar. Só isso. — Ele desvia seu olhar para o chão, se eu não soubesse do que planeja, eu poderia acreditar que ele é apenas um garoto que não faria mal a uma mosca, mas infelizmente a realidade é outra e eu não posso fazer nada. 

          — Queria que as coisas não fossem do jeito que são. — uhum... Sei. Posso até impedir dessas coisas saírem da minha boca, mas não posso deixar de pensá-las.

          — Acredite, eu também. Mas há coisas que ninguém pode mudar, certo? — eu disse, mais para mim do que para ele. Eu não posso mudar tanto a história do livro, se não o que poderia acontecer? Mare acabar morta antes de reencontrar Shade ou mesmo a família? A Guarda desaparecer e deixar os prateados escravizarem os vermelhos para sempre? Já mudei coisa demais só de estar aqui. — Preciso encontrar Mare-ena. Ela pode estar com problemas.

          — Eu vou com você. 

          Não demoramos para encontrar Mare, foi muito mais fácil com a ajuda de Maven, que conhece esse lugar com a palma da mão. O difícil foi aturá-lo nesse meio-tempo. Não que ele tenha feito alguma coisa, mas minha mente me faz lembrar de quando ele torturou ela com aquele equipamento e a marcou com um "M", tudo isso me impede de gostar dele ou melhor, desse personagem que ele criou. 

          Mare estava na sacada, tomando um bom banho de chuva com alguns sentinelas a tratando como a prisoneira que nós realmente somos. Maven interveem e dispensa os guardas. 

          — Os chuveiros lá dentro funcionam bem, sabia? 

          Mare esfrega os olhos com as mãos, não é possível ver, mas ela com certeza estava chorando. Sua maquiagem escorreu toda pelo rosto, menos a base prateada, que aparentemente é super aprova d'água. 

          — Primeira chuva da estação — ela tenta dizer com uma voz normal. — Precisava ver pessoalmente.

          — Certo — eu digo, me aproximando.

          — Entendo, sabe? — diz Maven, enquanto também se aproxima.

          — Pode parar de fingir que sabe alguma coisa sobre os meus sentimentos — responde Mare. Essa é minha garota.

          — Acha que não sei quão difícil é estar aqui? Com essas pessoas? —  ele lança um olhar por sobre o ombro, preocupado que alguém possa ouvir. Mas ninguém ouve; apenas a chuva e os trovões estão presentes. 

          — Não posso dizer o que quero, fazer o que quero — Maven prossegue. — Com minha mãe por perto, mal posso pensar o que quero. E meu irmão...

          — O que tem seu irmão? — digo de imediato. A água da chuva escorrendo pelos meus cabelos. 

          — Ele é forte, talentoso, poderoso... Sou sua sombra. A sombra da chama — ele parecia relaxar enquanto dizia isso. Maven está dizendo a verdade, pelo menos uma vez em sua vida. É então que percebo que o ar ao nosso redor estava estranhamente quente. 

          — Desculpe — acrescenta, dando um passo para trás a fim de que o ar esfrie. Diante dos meus olhos, Maven dilui-se novamente na figura do príncipe prateado. Uma mera máscara. — Eu não devia ter dito isso. 

          — Tudo bem — sussurra Mare. — É bom saber que não sou só eu que me sinto deslocada.

          — Isso é algo que vocês deviam saber sobre nós, os prateados. Estamos sempre sozinhos. Aqui — ele aponta para a cabeça — e aqui — conclui, apontando para o coração. — Isso nos torna fortes.

          Não consigo me segurar e uma risada sai de minha boca, mas não me seguro imediatamente.

          — Isso é uma grande besteira. Não acha, Mare? — olho para a garota ao lado do príncipe. 

          — Sim, isso é burrice. — diz ela. Maven solta uma risada sombria.

          — É melhor você esconder seu coração, Ladys. Ele não vai levá-las a lugar nenhum.

          — Precisamos voltar à aula — balbucia Mare. Aparentemente o plano era abandonar Maven na sacada e retornar a nossas atividades, pois ela levemente me empurra para fora dali e da chuva. No entanto, Maven agarra nossos braços, ficando assim entre nós duas.

          — Acho que posso ajudar a resolver seu problema.

          — Que problema? — pergunta Mare, desconfiada.

          — Você não parece do tipo que chora por qualquer besteira. Está com saudades de casa.

          Antes que qualquer uma de nós duas pudéssemos dizer qualquer coisa em protesto ele dispara:

          — Posso dar um jeito nisso. 

—---

          Os seguranças patrulham o corredor que leva ao meu quarto em pares, porém eu estou com Maven. Andamos eu, ele e Mare como se fossemos bons amigos e isso faz com que os seguranças nem ousem nos parar. Embora seja tarde, bem depois do meu horário, e eu devesse estar na cama, ninguém diz nada. Quem bateria de frente com um príncipe? 

          Maven é tímido, mas determinado. Caminha lutando para conter um sorrisinho. Mare anda radiante com ele. Talvez Maven não seja tão ruim. Mas nos detemos bem antes de nosso suposto destino. Na verdade, sequer saímos do andar dos aposentos. 

          — Aqui estamos — anuncia ele ao bater à porta.

          A porta se abre pouco e pela pequena fresta eu vejo Cal. Me surpreendo ao ver ele, peito nu, um hematoma logo acima do coração, a barba por fazer e restos de uma armadura de metal. Faz mais de uma semana que não o vejo. Ele não parece me notar de cara, está mais preocupado em tirar o resto da armadura.

          — O embarque já está certo, Mavey... — começa a dizer, mas interrompe a frase quando encara o irmão e me vê ao lado dele. — Kenna, como posso... Hã... O que posso fazer por você? — ele gagueja, sem saber o que dizer. Pela primeira vez.

          — Não sei direito.

          Os olhos de Mare vão de Cal a Maven. Seu noivo apenas ri e levanta um pouco a sobrancelha. 

          — Por ser o bom filho, meu irmão vai cuidar de vocês — ele diz, num tom de voz surpreendentemente brincalhão. Até Cal dá um sorrisinho e faz uma careta. — Você queria ir para casa, Mare, e descobri alguém que já esteve lá antes.

         Depois de um segundo confusa, entendo o que Maven quer dizer e me sinto burra por não ter percebido antes. O passeio de moto. Minha chance de fazer a história voltar ao normal. Mare e Cal fazem um passeio romântico e BANG tudo volta ao normal.

         — Maven — diz Cal através dos dentes cerrados, já sem o sorriso — você sabe que ela não pode ir. Não é uma boa ideia... 

          — Mentiroso. — uou, Mare. Acusando o irmão errado. Ele a encara com seus olhos ardentes. Ela parece muito determinada, e por dentro sei que ela precisa da família. 

          — Tiramos tudo delas, meu irmão — murmura Maven, aproximando-se. — Será que não podemos dar ao menos isso?

          E então Cal concorda devagar e relutante, e gesticula para que entre em seu quarto. Zonza de tanto entusiasmo, corro para dentro, quase aos pulos.

          Maven passa uns instantes parado em frente à porta depois que saímos de seu lado.

           — Você não vem junto — diz o mais velho. Não se trata de uma pergunta. O mais novo balança a cabeça desanimado.

            — Vocês já têm coisas demais com que se preocupar sem a minha presença.

            Mare envolve Maven num repentino abraço apertado, depois do susto ele relaxa e a abraça de volta. Suas bochechas ficas cinzas. Os prateados ficas estranhos corados. 

            — Não demore muito — ele pede, dirigindo o olhar a Cal. Ele da um meio sorriso.

            — Você fala como se eu não tivesse feito isso antes.

             Os irmãos riem juntos, de um jeito que só fazem entre si. Quando a porta se fecha após a saída de Maven e fico a sós com Cal e Mare. 

               O quarto dele é o dobro do meu, porém é tão bagunçado que parece menor. Armaduras estão dispostas pelo quarto em manequins que possuem o tamanho de Cal. Erguem-se ao meu redor como fantasmas sem rosto e me encaram com seus olhos invisíveis. A maioria das armaduras é leve, feita de chapas de aço e tecido grosso, mas algumas são mais robustas, feitas para batalhas, e não para treinamentos.

              Como Julian, o príncipe herdeiro possui pilhas de livros por toda parte; tantas que as obras caem umas sobre as outras como pequenas cachoeiras de papel e tinta. Só que os livros de Cal não são antigos como os de Julian; quase todos parecem recém-encadernados, impressos em páginas envernizadas para conservar as palavras. Enquanto o príncipe some para tirar o resto da armadura, arrisco uma folheada em seus livros. São estranhos, cheios de mapas, diagramas e gráficos: guias para a terrível arte da guerra. Um é mais violento que o outro, com detalhes cada vez mais minuciosos sobre manobras militares dos últimos anos e também do passado distante. Grandes vitórias, derrotas sangrentas, armas e estratégias: é o bastante para dar um nó na minha cabeça. Pior ainda são as anotações de Cal guardadas entre as páginas: esboços das suas táticas favoritas, cálculos de ações que compensam a perda de vidas. Nas imagens, os soldados são representados por quadradinhos, mas eu me lembro que esses quadradinhos são pessoas, soldados vermelhos tirados de suas famílias. Me lembro dos irmãos da garota elétrica ao meu lado.

               Além dos livros, perto da janela há uma mesinha com duas cadeiras. Sobre ela, um tabuleiro com as peças já no devido lugar. Xadrez, um jogo de estratégia que eu nunca aprendi a jogar. Tenho certeza de que um dos assentos é de Maven. Os irmãos devem se encontrar de noite para jogar e rir, como fazem todos os irmãos.

                — Nossa visita não pode durar muito.

         Seu aviso me pegou de surpresa e eu quase pulei de susto. Mare, que também espiava alguns livros, também pulou de susto. Lanço um olhar para o closet a tempo de vê-lo descer a camisa pelas costas largas e musculosas.

          — Desde que consiga ver minha família — responde Mare. Eu volto rapidamente meu olhar para os livros, Mare olha para mim com um sorriso no rosto e eu fico levemente confusa.

          Cal reaparece, dessa vez totalmente vestido com roupas comuns, as mesmas que ele usava na noite em que eu estraguei tudo. Ele é como um lobo em pele de cordeiro.

          Saímos da parte residencial rápido, caminhando para o andar de baixo. De repente Cal entra num corredor que dá para um cômodo todo feito de concreto.

          — É bem aqui. 

          O local parece um depósito, com diversos objetos cobertos por lençóis brancos. Olhando melhor percebi que ali era a garagem, os objetos eram carros e motos cobertos, alguns maiores, outros menores. 

          — Não tem saída — protesta Mare. De fato o lugar não aparenta ter outra porta além da qual nós usamos para entrar aqui.

           — Sim, Mare, trouxe vocês para um beco sem saída — ele bufa enquanto passa ao lado de uma das fileiras de coisas. Os lençóis levantam um pouco e consigo entrever o brilho do veículo que escondem.

          — Mais armaduras? — pergunta apontando para um dos veículos cobertos. Eu seguro uma risadinha — Ia mesmo aconselhar você a arrumar mais algumas. Acho que as do seu quarto não bastam. E talvez seja melhor vestir uma delas agora. Meus irmãos são enormes e gostam de bater nos outros.

          — Acho que estou bem assim. Além disso, vou parecer um agente de segurança com uma coisa dessas. Não queremos passar uma impressão errada para sua família, queremos?

           — E que impressão queremos passar? Acho que não estamos propriamente autorizados a apresentar você pelo nome.

          — Diga que eu e Kenna trabalhamos com você, que temos passe livre esta noite. Simples — ele propõe, dando de ombros.

          — E por que vai me acompanhar? Qual é o ponto?

          Cal dá um sorriso maroto e aponta para um lençol ao seu lado.

          — Carona. 


          Ele puxa o lençol e revela uma linda moto preta com detalhes cromados e um longo banco de couro.

          — É uma moto — explica Cal, passando a mão pelo guidão feito um pai orgulhoso. Conhece e ama cada centímetro da fera metálica. — Veloz, ágil e vai aonde os outros veículos não vão.

          — Acho que não cabe três pessoas nessa coisa — afirmo. 

          — Lógico que não cabe — responde Cal.

          — Então como quer que eu vá?

          — Farei duas viagens. Palafitas não é tão longe quanto parece. Não de moto. 

          Antes que eu pudesse dar mais alguma desculpa ao príncipe das chamas, Mare comenta:

          — Parece... parece um convite à morte — comenta Mare, incapaz de mascarar sua apreensão — E se eu for andar nessa coisa você precisa andar também, Kenna.

           As gargalhadas, Cal tira um capacete da parte de trás do assento. Mare se tornou praticamente minha melhor amiga, quase uma irmã, como contou Elara aos prateados. 

          — Meu pai disse a mesma coisa. E a coronel Macanthos também. Não querem produzir em série para o Exército ainda, mas vou convencê-los. Não caí uma só vez desde que aperfeiçoei as rodas.

          — Foi você que construiu isso? — pergunto, um tanto espantada. Não me lembrava disso do livro. Cal dá de ombros, como se não fosse nada.

         — Uau — Mare deixa escapar.

        — Espere só até andar nela — ele diz me estendendo o capacete.

          Mecanismos de metal rangem em algum lugar, e os blocos começam a deslizar para o lado. A nova abertura revela a noite escura lá fora.

          — De jeito nenhum vou subir nisso — digo, me afastando da moto. Sempre tive medo de motos na minha dimensão. Não será aqui, com um personagem de livro que eu vou andar em uma.

          Cal, porém, apenas sorri, joga a perna por cima da moto e ajeita o corpo no assento. O motor ronca vivo sob ele, rosnando e rugindo de energia. 

          — É perfeitamente seguro. Prometo — ele grita mais alto que o motor. Eu não posso, eu não posso, grita minha mente. Mas ao mesmo tempo ela também grita para eu ir. Os faróis acendem e iluminam a noite escura à frente. Os olhos dourados de Cal encontram os meus. O príncipe me estende a mão. 

          — Kenna? 

          E apesar de isso poder gerar grandes consequências e fazer a história tomar um rumo totalmente diferente, eu coloco o capacete na cabeça.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!



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