Coroa de Vidro escrita por Sof1A


Capítulo 8
Oito


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo! Espero que gostem



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          Meus dias são totalmente ritmados e praticamente todos iguais. Protocolo de manhã e aulas com Julian a tarde, no meio tempo Elara obriga eu e Mare a desfilar em almoços e jantares. Aparentemente, Sonya e Pantera ainda desconfiam de mim e de Mare, mas não disseram mais nada desde nosso primeiro encontro. A ajuda de Maven parece ter funcionado, por mais que odeie admitir.

          No evento seguinte com mais pessoas — na sala de jantar particular da rainha —, as Iral ignoram completamente nossa presença. 

          Como sempre, meu lugar fica ao lado de Mare, que por sua vez fica ao lado de Evangeline. 


          — E o que achou do Palacete do Sol, Ladys? — pergunta a garota à minha frente. Atara, Casa Viper, verde e preto. Foi ela quem matou os pombos, odeio ela. Ela acrescenta:

          — Suponho que não haja comparação com o vilarejo onde vocês moravam antes.

          Ela pronuncia a palavra "vilarejo" como se fosse uma maldição, e não deixo passar seu sorriso malicioso. As mulheres riem com ela. Umas poucas cochicham como que escandalizadas.


          — O Palacete e Summerton são muito diferentes do lugar a que estamos acostumadas — forço a resposta.

          — Óbvio — diz outra mulher, que se inclina para entrar na conversa. Uma Welle, a julgar pela túnica verde e dourada. — Fiz um passeio pelo vale do rio Capital uma vez e devo dizer que os vilarejos vermelhos são simplesmente deploráveis. Não têm sequer estradas adequadas.

          Vejo Mare ficar um pouco tensa, minha vontade é de esganar todas aqui dentro, mas eu permaneço parada e com uma feição casual, como se humilhar alguém fosse normal.

          — E os vermelhos... Bom, acho que aquilo é o melhor que podem fazer com o que têm — ela continua, torcendo o nariz. — São feitos para aquele tipo de vida.

          — Não temos culpa de terem nascido para servir — uma Rhambos de vestido marrom diz, leviana, como se falasse do tempo ou da comida. — É simplesmente sua natureza.


          Eu posso até ter crescido sem passar fome como os vermelhos passam todos os dias, mas isso não é certo.

          — Sim, de fato. — Ouço as palavras saírem da boca de Mare. 

          Por toda a mesa, as mulheres escutam com atenção. Muitas sorriem e a maioria concorda com a cabeça diante da minha defesa às suas crenças terríveis sobre os vermelhos. Seus rostos me dão vontade de gritar.

          — Claro — continua Mare —, qualquer um forçado a levar uma vida assim, sem descanso, férias e escapatória, acabaria como servo.


          Os poucos sorrisos desaparecem e se contorcem espantados.

          — Lady Titanos e Lady Laris teram os melhores tutores e toda a ajuda necessária para se adequarem à nova vida — Elara interrompe rapidamente. — Já começaram as aulas com Lady Blonos.

          As mulheres murmuram em aprovação ao passo que as garotas fazem caretas. 


          — O que sua majestade real pretende fazer com os rebeldes? — pergunta uma mulher com rispidez. A indagação produz um choque de silêncio na mesa e desvia o foco de Mare.

          Todos os olhos se voltam para a questionadora: uma mulher de uniforme militar. Outras mulheres também usam farda, mas a dela brilha com mais medalhas e fitas. A feia cicatriz que rasga seu rosto sardento indica que talvez as tenha merecido. Aqui no palácio é fácil esquecer que há uma guerra acontecendo, mas seu olhar assombrado diz que ela não vai, não pode, esquecer.

          A rainha Elara baixa a colher com elegância ensaiada e abre um sorriso, igualmente ensaiado.


          — Coronel Macanthos, dificilmente podemos chamá-los de rebeldes...

          — E esse foi o único atentado que assumiram — rebate a coronel, interrompendo a rainha.


          — E a explosão em Harbor Bay? E, já que estamos nisso, a base aérea de Delphie? Dois jatos destruídos e outro roubado de uma das nossas próprias bases!

          Arregalo os olhos e, como outras presentes, não consigo conter a surpresa. Mais ataques?Só que, enquanto as outras parecem assustadas e levam a mão à boca, tenho que segurar a vontade de sorrir. Farley tem andado ocupada.


          — Você é engenheira, coronel? — a voz de Elara soa aguda, fria e definitiva. Não dá a Macanthos a chance de negar com a cabeça. — Então não é capaz de entender que foi um vazamento de gás que causou a explosão em Harbor. E, por favor, refresque minha memória: você comanda as tropas aéreas? Ah, não. Sua especialidade são as forças terrestres. O incidente na base aérea foi uma manobra de treinamento supervisionada pelo próprio general Lord Laris. Ele garantiu pessoalmente à sua majestade que a base de Delphie é segura.

          Elara a partiu no meio com nada além de palavras. E ela sequer terminou. O comentário de Julian ecoa em minha cabeça: as palavras mentem de vez em quando.

          — O objetivo deles é ferir civis inocentes, prateados e vermelhos, para incitar medo e histeria. São poucos, restritos e covardes. Escondem-se da justiça do meu marido. Considerar toda desgraça ou infortúnio deste reino obra desse mal apenas colabora com seus esforços de aterrorizar o resto da população. Não dê a esses monstros a satisfação que desejam.

          Algumas mulheres aplaudem e inclinam a cabeça em concordância com a mentira deslavada da rainha. Evangeline segue o exemplo e o gesto rapidamente se espalha, até que apenas a coronel, eu e Mare permanecemos em silêncio. Dá para notar que ela não acredita em nada do que a rainha diz, mas não há como chamá-la de mentirosa. Não aqui, não na casa dela.

          Por mais que queira continuar sem fazer nada, sei que não posso. Meu nome é Kerenna, não Kenna, tenho que apoiar minha rainha e suas palavras desgraçadas. Minhas mãos juntam-se num aplauso à mentira de Elara ao passo que a coronel inclina a cabeça, repreendida.

****


          Embora esteja praticamente o tempo todo rodeada de pessoas, sejam elas prateados ou criados, estou sozinha apenas com Mare  para me fazer companhia. Nossa amizade cresceu nesses últimos dias e as vezes chego até a esquecer que eu não sou desse mundo. 

          As aulas de Julian, que preenchem minhas tardes, são um grande alívio, lá eu posso ser eu mesma e posso descobrir mais sobre essa parte de mim que até a pouco estava adormecida. Porem as coisas estão caminhando devagar para mim e para Mare e todos estamos frustados. 

          — Acho que sei qual é o problema — diz Julian ao final da primeira semana. Ouço isso com os braços erguidos ao lado de uma Mare com os braços esticados para frente, nós duas com uma pose bem engraçada. 

          — Talvez só funcione quando estamos em risco de vida — diz Mare bufando — Quer pedir a arma do Lucas emprestada? 

          Normalmente Julian ri de nossas piadas, mas no momento ele está ocupado demais pensando. 

          — Vocês são como as crianças. — abro a boca para dizer alguma coisa mas ele continua mesmo assim — É assim que as crianças são no começo: não conseguem controlar seus poderes. Eles só se manifestam em situações de estresse ou medo, até a pessoa aprender a domar as emoções e usá-las em benefício próprio. Existe um gatilho, e vocês precisam encontrar o seu.

          Me lembrei do dia que eu caí no Jardim Espiral. Tudo o que eu senti no meio daquela queda, uma mistura de medo e raiva e então, felicidade. Eu iria encontrar minha mãe. 

          — Vale a pena ao menos tentar — provoca Julian. Eu troco olhares com Mare e assim temos uma breve conversa silenciosa. Me viro para a parede preparada por Julian com alvos que antes eram estantes de pedra cheias de livros. 

          Eu fecho meus olhos e, acredite ou não, o que primeiro me vem a mente é o clipe de Let it go. Mas depois lembro da paz que senti durante a queda, quando eu aceitei que aquele seria meu fim. Meus olhos se abrem quando eu começo a sentir o frio passear pelo meu corpo, dos meus pés até minha cabeça, e pela primeira vez eu não reprimo isso, apenas deixo ir.

          Mare parece estar tendo progresso, faíscas roxas dançam em suas mãos enquanto ela as encara totalmente sem palavras, Julian apenas observa e dá mais um passo para trás. Olho para minha mão e flocos de neve se formam e flutuam como se dançassem na minha palma. 

         — Tente move-lo, meninas — Diz Julian baixinho, enquanto nos observa entusiasmado — só tente não nos congelar no processo, Kenna.

         Mare fecha o punho e as faíscas reagem ficando maiores e mais brilhantes, subindo até a altura de sua camisa, consumindo o tecido. Eu posso controlar isso, faz parte de mim. Estico meu braço e aponto minha mão em direção a estante em minha frente e tensiono os músculos da mão e a estande é consumida por gelo até que se despedaçou em algo perecido com cinzas porém de gelo. 

        Ao meu lado, Mare agita o braço como quem joga uma bola e abre a mão no ultimo instante. As faíscas voam pelo ar numa bola de eletricidade pura e atingem o alvo causando uma explosão que assusta Mare, a fazendo cair sobre uma pilha de livros. A pobre estante é consumida pelas faíscas que somem depois de não sobrar nada além de ruínas. 

        — Desculpe pela estante — digo junto de Mare, ainda caída no chão. Estou perplexa demais para sequer ajudar ela a se levantar. Sinto uma sensação estranha, mas boa. É só então que eu vejo que a barra do meu vestido e minha sapatilha estão congelados. 

        A silhueta de Julian se aproxima através das nuvens de pó. Rindo a plenos pulmões, ele examina a obra. Seus dentes alvos brilham através da poeira.

        — Vamos precisar de uma sala de aula maior.

        Ele não está enganado. A cada dia somos obrigados a encontrar salas novas e maiores para praticar até finalmente descobrir um lugar adequado no andar subterrâneo. As paredes são de concreto e metal, bem mais resistentes que a pedra decorativa e a madeira dos andares superiores. Nossa mira é decepcionante, para dizer o mínimo, de modo que Julian precisa tomar muito cuidado ao se posicionar nos treinos. Em todo caso, é cada vez mais fácil criar e moldar o gelo á minha vontade.

       Julian toma notas o tempo inteiro, registrando tudo, desde os meus batimentos cardíacos até a temperatura. Cada anotação nova faz surgir em seu rosto um sorriso confuso, mas feliz, embora ele não me diga o motivo de tanta alegria. Duvido que entendesse mesmo que ele explicasse.

        — Fascinante — murmura ao ler os valores dos dois dispositivos na sala, um termômetro super-ultra-preciso, como eu o chamo, e um medidor de energia elétrica ou caixa de faíscas, como Mare o chama. Ela esfrega suas mãos para "desernegizá-las" como Julian diz. Nossas roupas permanecem intactas dessa vez, graças á nossa roupa nova. Elas são feitas de tecido a prova de fogo, como o que Cal usa. Não sei como isso funciona comigo, já que meu poder é completamente oposto ao do príncipe flamejante.

        — O que é fascinante? — pergunta Mare.

        Ele hesita, como se não quisesse contar, como se não devesse contar, mas finalmente dá de ombros e diz:

        — Antes de você se energizar e fritar aquela pobre estátua — ele aponta para o monte de entulho fumegante que uma vez fora o busto de algum rei —, medi a quantidade de eletricidade nesta sala: luzes, fiação, esse tipo de coisa. E agora acabo de medir você. 

        — E?

        — Deu o dobro do registrado antes — ele anuncia orgulhoso. Eu abro um sorriso, já sei de tudo isso. 
        Com um gesto breve, Julian desliga a "caixa de faíscas".        — Tente outra vez.
       Mare se concentra. O sorriso de Julian vai de orelha à orelha.       — E então...?       — Então isso confirma minhas suspeitas.            — Você gerou energia elétrica.       Agora ela ficou confusa de vez.       — Certo. É meu poder, Julian — diz a garota.

       — Não, pensei que seu poder fosse manipular, não criar eletricidade — ele diz em tom grave. — Ninguém consegue criar, Mare.  

       — Mas isso não faz sentido. A Kenna, os ninfóides, Cal e Maven... eles...

       — A Kenna também é diferente. Como os calafrios ela pode criar e controlar o gelo, mas o que acabei percebendo é que ela vai além. — Julian desfoca do comentário de Mare e passa a falar sobre o que descobriu sobre minha habilidade. — Você pode baixar a temperatura de objetos e do ambiente em si a níveis que eu nunca vi, como quando você fez aquela estante se estilhaçar. 

       — E os calafrios não fazem isso? — pergunto. Mare nos encara chocada, perdida em seus próprios pensamentos também. 

       — Não, eles apenas criam e controlam o gelo e nunca vi ninguém chegar a temperaturas perto das suas. E eu também, algo que eu reparei na sua queda na Prova Real, é que você controlou o ar de modo que ele sustentasse você. Ou seja você pode controlar o ar, não como os dobra-ventos mas pode.

       — Uau, isso é... — comecei a dizer mas não terminei a frase, estou perdida, confusa. Isso é demais para mim. 

       — Quanto aos outros Mare, eles apenas manipulam não podem criar. O princípio é sempre o mesmo: os prateados manipulam algo. Nossa força depende do ambiente. Mas você é diferente, Mare.

       — E o que isso quer dizer?

       — Não tenho certeza. Vocês duas são algo completamente novo. Nem vermelho, nem prateado. Algo novo. Algo mais.

       — Algo diferente. 

        — O que eu sou, Julian? O que há de errado comigo?

        Os olhos de Mare marejam, mas ela pisca várias vezes e não deixa uma lágrima sequer escorrer pelo seu rosto. Está acontecendo coisas demais e de uma só vez. Eu também me sinto confusa, tudo isso é demais para mim. Queria gritar e sair correndo desse lugar, voltar para minha dimensão onde nada disso é real. 

        — Não há nada de errado em ser diferente — Julian diz, mas suas palavras não a acalmam. 

        — Mare? — Digo ao ver os raios voltarem a cintilar em suas mãos, quase se tornando uma tempestade, igual aos seus pensamentos. 

        — Mare, concentre-se em mim. Mare, controle.

        Sua voz é suave e tranquila, mas firme. Parece até que Julian está com medo dela.

        — Controle, Mare. 

        Ela então faz a única coisa que pode fazer. Correr.


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Notas finais do capítulo

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