Coroa de Vidro escrita por Sof1A


Capítulo 11
Onze


Notas iniciais do capítulo

Mil perdões pela demora para postar. Mas aqui está um capítulo novíssimo!
Espero que gostem



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— Não creio que fomos apresentados — diz Kilorn, agora com seus olhos verdes focados em mim — Sou Kilorn.

— Fomos apresentados, na casa de Mare.

— Mas eu não estava no momento. Como sabia meu nome?

— Eu ouvi Mare dizê-lo na casa, quando você entrou do nada — o enrolo. — Sou Kenna.

— Você é como Mare, não é? — ele ainda parece surpreso com a existência de vermelhos com poderes. Eu mesma não me acostumei em ter poderes.

— Sim — olho para meus pés. Mexendo na ponta de meus cabelos compridos — Só que temos habilidades diferentes.

Ele me olha com curiosidade.

— Eu controlo o gelo, e um pouco do ar, eu acho — continuo — Ainda não sei do que sou capaz, para ser sincera.

Ele pareceu acreditar em mim, pois sua expressão suavizou. Não puxou muito assunto comigo, apenas perguntou como eu e Mare nos conhecemos, se nós somos boas amigas e se ela já falou dele para mim. Acima de tudo ele continua com uma queda por ela. Coitado.

O ronco da moto de Cal aumenta gradualmente. Kilorn olha para a origem do ronco, e reconhece a moto do príncipe.

— É melhor eu ir — diz ele, com seus olhos em mim novamente. — Cuide de Mare. Não deixe ela fazer nenhuma loucura.

— Ela com certeza te diria o mesmo — digo sorrindo para o garoto, que agora está caminhando de volta para a vila. Ele acena uma última vez e desaparece em meio a escuridão da floresta.

Cal para a moto bem em frente de mim, mas a desliga e desmonta da moto antes que eu pudesse subir nela.

— Preciso falar com você — hoje é o dia de falar comigo, não é possível.

— Nós já conversamos, Cal. 

— Eu só quero entender...

— Entender o que? Entender algo que nem mesmo eu estou entendendo? Você não pode me ajudar — o interrompo. 

— Eu posso tentar — ele diz com determinação em sua voz. Ele não vai mesmo me deixar em paz.

— Não é porque você é da realeza que é capaz de fazer milagres — ele não responde, apenas me encara com seus olhos flamejantes. — Nós nem deveríamos estar tendo essa conversa.

— Porque? Você é uma vermelha e eu um prateado? Porque era pra você estar vagando pela vila roubando pessoas? Passando fome?  — ele perde um pouco a postura de príncipe e sua voz se eleva um pouco. O calor que emana de seu corpo disputa com o frio que emana do meu.

— Porque você... — me seguro para não terminar a frase. Porque você é um personagem de livro. — Por favor, só me leve de volta — peço baixinho. Ele relaxa e me olha um pouco confuso. Mais uma vez a vontade de chorar volta, mas eu luto ao máximo contra ela.

O caminho de volta para o palacete foi silencioso, a tensão pairando entre nós. Mare nos espera sentada no chão da garagem. Ela me encara e parece ver que me seguro para não chorar.

— Cal, pode nos dar um minuto? — Mare diz, já se aproximando de mim. Ele parece querer dizer algo, mas apenas se afasta, indo estacionar e cobrir sua moto.

— O que aconteceu Kenna? — ela coloca uma mão sobre meu ombro.

— Nad... — ela ergue uma sobrancelha, me fazendo parar e reformular minha resposta. — Foi uma discussão. Só isso. Me fez lembrar de umas coisas.

— Acho que é melhor irmos, está tarde — Cal chama, desviando o olhar de mim. Sem graça pela discussão na floresta.

Nós seguimos pelos corredores e deixamos Mare em seu quarto. Cal insistiu em me levar até o meu, por mais que eu tenha tentado recusar. Caminhamos em silêncio, até chegarmos na porta de meu quarto. Cal me segura delicadamente pelo pulso, pedindo para eu ficar e não fechar a porta em sua cara.

— Kenna — ele começa a dizer. Seus olhos flamejantes fixado nos meus. — Por favor me perdoe pelo que aconteceu na floresta. Mas, se você me deixar ajudar eu...

— Você não entendeu. Não tem como me ajudar — interrompo. Eu queria contar a ele tudo o que aconteceu comigo, mas me acharia louca. — Boa noite, alteza.

Eu fecho a porta antes dele responder ou dizer qualquer coisa. Não posso arriscar soltar algo que ainda irá acontecer. Isso poderia alterar mais o rumo da história, além do que minha presença já não tenha alterado.

Fico deitada, olhando para fora da janela, esperando que o sono me alcance. Mas minha mente viaja, pensando sobre cada um que ficou para trás, na outra dimensão. Devem pensar que eu morri. Ou eu estou em coma e tudo isso é um sonho. Tudo não deve passar de um sonho. Um sonho extremamente realista.

Acordo de manhã com a claridade que entra pela janela, cedo demais para fazer qualquer coisa. Depois de um banho e da longa sessão de maquiagem eu estou novamente parecendo uma Lady prateada, mais fria do que normalmente aparento ser.

Walsh passa pela porta empurrando um carrinho de metal cheio de todo e qualquer tipo de comida que alguém poderia querer comer no café da manhã. Ela não me cumprimenta, apenas enfia uma xícara em minhas mãos. Antes que eu pudesse perguntar sua boca forma as palavras que me seguirão por todo o tempo que eu estarei aqui. Vermelhos como a aurora. Ela deixa o quarto e eu rapidamente olho para a xícara, um papelzinho branco sangra tinta escura. Meia noite. Mare já deve ter sido avisada também, infelizmente não posso perguntar sobre, assim como ela também não deve comentar o assunto.

Um outro recado estava destinado a mim. Um bilhete preenchido pela perfeitamente irritante letra cursiva da rainha.

Seu horário mudou.

6h30 — Café da manhã
7h — Treinamento
10h — Protocolo
11h30 — Almoço
13h — Protocolo
14h — Aulas
18h — Jantar
Lucas a conduzirá para todos os compromissos. O horário não é negociável.
S. M. R., Rainha Elara

Solto um suspiro. Para depois voltar minha atenção às batidas na minha porta. Lucas me esperava com Mare ao seu lado, hoje começa nosso treinamento. Espero que não seja tão horrível quanto eu imagino. 

O treino foi exatamente como eu imaginei, exaustivo. O instrutor fez de tudo para esgotar a turma. Nos forçou a uma rodada atrás da outra de exercícios para calibrar nossos poderes. Eu, claro, sou a pior em todos, mas consegui perceber uma melhora. Ao fim da sessão, estou com dores em toda parte. A aula com Julian acaba sendo uma bênção, pois posso sentar e recuperar a força. Mas mesmo que o treino da manhã não tivesse acabado comigo, logo será meia-noite. Quanto mais rápido o tempo passa, mais próxima do horário fico. Mais próxima de tomar meu destino nas próprias mãos.

Julian não nota minha tensão compartilhada com Mare, provavelmente por estar debruçado numa pilha de livros recém-encapados. Cada um tem a grossura de dois dedos e uma etiqueta elegante indicando um ano. E só. Nem imagino do que tratam.

— O que são estes livros? — pergunta Mare, com a mão em um dos livros. Quando ela o abre eu espio por cima de seu ombro, ela não se importa. Vemos apenas uma mistura de datas, nomes, locais e causas de morte. Certamente não é um livro infantil. A maioria menciona apenas hemorragia, mas também há doença, asfixia, afogamento e outros detalhes mais peculiares e sangrentos. Meu sangue gela nas veias quando percebo exatamente o que leio.

— Uma lista de mortos.

Julian confirma.

— Com cada uma das pessoas que morreram em combate na guerra com Lakeland.

Mare com certeza deve estar pensando em Shade, tudo que lhe contaram é que ele era um desertor. Acho impressionante ele não ter encontrado uma maneira de contar à família que está vivo na verdade. Um abajur começa a piscar, me dando certeza da inquietação de Mare.

— Algo de errado Mare? — Julian pergunta secamente ao notar o abajur oscilante.

— Não gostei da mudança de horário — responde, e o abajur para de piscar. Não é mentira, mas também não é verdade. — Não vamos mais poder treinar.

Ele apenas dá de ombros, e o gesto faz suas vestes amareladas se agitarem. Parecem estar mais encardidas, como se Julian estivesse se transformando num pergaminho, numa das páginas dos seus livros.

— Pelo que ouvi, vocês precisam de mais orientação do que posso lhes dar — comenta.

Fecho um punho ao lembrar da briga na floresta. Por pouco eu não perdi o controle naquele momento. 

— Cal te contou o que aconteceu? — pergunto.

— Sim — Julian responde sem emoção. — E ele tem razão. Não o culpe por isso.

— Posso culpar Cal pelo que quiser — bufo.

— Meninas, eu não chamaria o que fazemos de treino. Além disso, vocês se sairam muito bem nos exercícios de hoje.

— Você viu? Como? — Mare pergunta, inquieta.

— Pedi para assistir.

— Quê?!

— Não importa — diz Julian com os olhos cravados nela. Sua voz se torna repentinamente melódica, como acordes profundos e calmantes.

— Não importa — ela repite. — O que vamos fazer hoje, Julian?

Ele sorri, divertido.

— Mare.

Sua voz volta ao normal, simples e familiar. Desfaz os ecos como se uma nuvem se dissipasse. Então é assim que funciona a canção.

— Mas o que... o que foi isso? 
— Suponho que Lady Blonos não falou muito da Casa Jacos nas aulas — diz, ainda sorridente. — Surpreende-me vocês nunca terem perguntado.

Nunca perguntei pois já sei qual é. Mas eu não posso dizer isso. Mantenho uma feição neutra no rosto, como se estivesse curiosa.

— Você pode controlar as pessoas. Você é igual a ela. — Mare compara Julian a Elara, embora os dois sejam completamente diferentes um do outro, até mesmo em suas habilidades. Elara controla mentes, enquanto Julian pode fazer as pessoas fazerem o que ele quiser.

Julian não se deixa abalar pela acusação de Mare, pelo contrário, sua atenção permanece no livro.

— Não, não sou. Meu poder não chega nem perto do dela. Nem minha brutalidade — explica, entre suspiros. — Nos chamam de cantores. Ou pelo menos chamariam, se existisse mais de nós. Sou o último da minha Casa e, bem, o último do meu tipo. Não consigo ler mentes, nem controlar pensamentos, nem falar dentro da sua cabeça. Mas consigo cantar: desde que a pessoa me escute e eu consiga encará-la nos olhos, posso levá-la a fazer o que quiser.

Mare dá alguns passos para trás, até uma distância ser formada entre os dois. Eu apenas permaneço parada.

— Você tem razão em não confiar em mim — fala em tom baixo. — Ninguém confia. Por isso meus únicos amigos são as palavras escritas. Mas não uso meu poder senão quando absolutamente necessário, e nunca o usei para maldades. — Julian pausa um instante, solta uma gargalhada sombria e conclui: — Se quisesse mesmo, poderia chegar ao trono na base da conversa.

— Mas você não fez isso.

— Não. Nem minha irmã, não importa o que os outros digam.

Coriane. A mãe de Cal.

— Ninguém parece falar muito sobre ela. Não para mim, ao menos.

— As pessoas não gostam de falar de rainhas mortas — dispara, para em seguida desviar o olhar discretamente. — Mas falavam durante a sua vida. Coriane Jacos, a rainha cantora.
Nunca vi Julian assim, nunca. No geral, ele é calmo, tranquilo, um pouco obcecado talvez, mas nunca nervoso. Nunca magoado.

— Ela não foi escolhida pela Prova Real, sabia? — prossegue. — Não como Elara, Evangeline ou mesmo você. Não. Tibe se casou com minha irmã porque a amava. E ela o amava.

Tibe. Um apelido quase tão engraçado quanto o próprio nome do rei.

— A odiavam por ser de uma Casa inferior, porque não tínhamos força ou autoridade ou qualquer uma das besteiras que essa gente valoriza — Julian não para, ainda com o olhar distante. — Quando minha irmã se tornou rainha, ameaçou mudar tudo isso. Era gentil, compassiva, uma mãe capaz de criar Cal para ser o rei de que este país precisava, para unir a todos nós. Um rei que não temeria mudanças. Mas isso nunca aconteceu.

— Sei como é perder um irmão — Mare comenta baixo, provavelmente ao lembrar de Shade. — Só descobri ontem a noite.

Julian volta seu olhar para Mare. Nesse momento eu estou invisível, como se estivesse assistindo à cena do próprio livro.

— Sinto muito, Mare. Não percebi.

— Nem ia perceber. O Exército não relata as execuções em seus livrinhos.

— Execução?

— Deserção — a mentira contada para a família da garota permanece viva, assim como minha vontade de contar toda a verdade. — Embora eu saiba que ele jamais faria uma coisa dessas.

Após um longo silêncio, Julian põe a mão em meu ombro e diz:

— Parece que temos mais em comum do que você imagina, Mare.

— O que quer dizer?

— Também mataram minha irmã. Ela ficou no caminho deles e foi eliminada. E... — O tom de voz diminui. — Farão de novo, com qualquer um que julguem necessário remover. Mesmo Cal, mesmo Maven e especialmente você e sua amiga.

— Elara...

O nome escapa de minha boca como um sussurro. E eu não estou mais invisível. O olhar de Julian se volta para mim, ele percebe que eu sei mais do que aparento saber. Isso pode me trazer problemas. Impressionantemente ele não comenta nada.

— Pensei que você quisesse mudar as coisas, Julian.

— E de fato quero. Mas isso leva tempo, planejamento e muita sorte.

Ele me encara de alto a baixo, como se soubesse que sei mais do que devia para uma vermelha nunca conviveu na corte. 
— Não quero que você perca o controle da situação — aconselha. Isso me atinge de uma forma completamente diferente, em relação a minha capacidade de mudar os acontecimentos futuros. 
Tarde demais. Até onde eu sei, minha presença aqui pode alterar todo o rumo que essa história iria tomar. Estou tão perdida aqui, mesmo conhecendo tudo tão bem.


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Notas finais do capítulo

Ta-da espero que tenham gostado!
Até o próximo capítulo pessoal!
beijinhos e brigadeiros



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