Coroa de Vidro escrita por Sof1A


Capítulo 10
Dez




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A moto de Cal avança pelo percurso familiar em curvas elegantes e bem desenhadas. Ele é um bom piloto, admito. A velha estrada é cheia de lombadas e buracos, mas Cal desvia de todos com facilidade. Ele para a moto no acostamento quando estávamos perto de nosso destino. Só então percebo que estou agarrada demais às costas do príncipe. Eu desço da moto e retiro o capacete.

          — Divertido, não é? — ele diz ao desligar o motor.

          — Você não tem que buscar Mare? — corto o assunto do príncipe, lhe entregando o capacete. Posso até ter vindo até aqui, mas eu vim por Mare e não por ele.

          — Mare. Ah, sim. E-eu volto num instante. — ele diz, religando o motor.

          — Eu vou esperar aqui — e assim o príncipe parte, pelo mesmo caminho que nós viemos.

          Depois de quinze minutos sentada na beira da estrada, Cal estaciona a moto no mesmo local que antes. Descendo do veículo como uma criança animada.

          — Essa definitivamente nunca vai ser minha primeira opção de transporte — afirma Mare, descendo com pernas trêmulas da moto.

          — Me lembre de levar você num passeio de jato. Acho que depois você só vai querer motos — ele responde enquanto empurra o veículo para fora da estrada e o esconde na floresta. Depois de cobrir com galhos, Cal dá um passo para trás e admira sua obra. Se eu não soubesse exatamente para onde olhar, jamais notaria a moto ali.

          — Dá para ver que você faz isso com frequência.

          Cal se volta para mim com uma mão no bolso.

          — O palácio as vezes é... sufocante.

          — E bares lotados, bares de vermelhos, não são? — pergunta Mare, se posicionando logo ao meu lado. Cal, porém, põe-se a caminho do vilarejo a passos rápidos, como se pudesse deixar a questão para trás.

         — Não saio para beber, Mare.

          — Então você só sai para pegar batedores de carteira e distribuir empregos igual panfleto — digo. O príncipe para e se vira com tudo. Sem querer, acabo dando com a cabeça contra seu peito. Depois ouço as gargalhadas.

           — Essa é a melhor comparação que eu já vi — diz ele, rindo. Dou um leve empurrão em Cal, em reprovação. Depois sinto meu rosto corar em baixo de toda aquela maquiagem.

          — Apenas responda à pergunta — pressiona Mare. O sorriso dele permanece, apesar das gargalhadas sumirem aos poucos.

          — Não faço isso por mim — explica. — Vocês precisam entender. Não... Um dia serei rei. Não posso me dar ao luxo de ser egoísta.

          — Para mim, o rei era a única pessoa a ter esse luxo. 

         Cal nega com a cabeça e lança um olhar desamparado.

         — Quem dera isso fosse verdade.

          Cal abre e fecha as mãos algumas vezes. Quase consigo ver as chamas em sua pele aparecerem de raiva. Depois, passa. Restam apenas as cinzas do arrependimento em seus olhos. Quando retomamos a caminhada, seu passo é mais ameno.

         — Um rei deve conhecer seu povo. É por isso que saio às escondidas — ele cochicha. — Faço o mesmo na capital e na frente de batalha. Gosto de saber como o reino está ao vivo, e não pelas palavras de diplomatas e conselheiros. É o que um bom rei faria.

         Pelo seu modo de falar, até parece que ele tem vergonha de querer ser um bom líder. Talvez, aos olhos do pai e de todos aqueles idiotas, esse desejo seja mesmo vergonhoso. Força e poder: as duas palavras que ensinaram a Cal desde a infância. Nada de bondade. Nada de gentileza. Nada de empatia, coragem, igualdade ou qualquer outra coisa que um governante deveria almejar.

         — E o que você vê, Cal? — pergunto apontando para o vilarejo que começa a surgir atrás das árvores.

         — Vejo um mundo na corda bamba. Sem equilíbrio, ele cai — ele diz entre suspiros — Você não faz ideia de como tudo é precário — ele continua —, de quão próximo este mundo está de voltar às ruínas. Meu pai faz o possível para proteger a todos, e eu farei o mesmo.

         — Meu mundo já está em ruínas — rebate Mare, chutando a poeira da estrada.

          Ao nosso redor as árvores parecem se abrir, revelando o lamaçal que muitos chamam de lar. Perto do Palacete, parece uma favela, um inferno.

         — Seu pai protege seu povo, não o meu.

         — Mudar o mundo tem seu preço, Mare — diz ele. — Muitos morreriam, vermelhos na maioria. E, no fim das contas, a vitória não chegaria, não para você. Não conhece a história toda.

         — Então conte — desafia, claramente odiando suas palavras. — Conte a história toda.

          — Lakeland é como nós: monarquia, nobres, uma elite prateada governando o resto da população. E os príncipes de Piedmont, nossos aliados, jamais apoiariam uma nação em que todos fossem iguais. Com Prairie e Tiraxes é a mesma coisa. Ainda que Norta mudasse, o resto do continente não aceitaria. Seríamos invadidos, divididos, despedaçados. Mais guerra, mais morte.

          — E se você estiver errado? E se Norta for o começo? A mudança que os outros precisam? Você não sabe aonde a liberdade nos levaria — depois de meu argumento o Príncipe ficou sem resposta e caímos em um silêncio constrangedor.

          — É aqui — sussurra Mare, parada em frente a sua casa. Ela caminha silenciosa pela varanda. Diferente de Cal, que pisa forte, fazendo as tábuas de madeira ranger. Eu tento ficar o mais escondida possível, não quero ser percebida. Eu nem deveria estar aqui. Cal parece sentir a tensão no ar, vinda de mim e de Mare. Ele coloca sua mão quente em meu ombro na tentativa de me acalmar. Você deveria tentar acalmar ela e não eu.

          — Posso esperar lá embaixo se você quiser — ele sussurra — Não vamos correr o risco de me reconhecerem.

          — Eles não vão. Apesar dos meus irmãos estarem servindo o Exército, provavelmente são incapazes de diferenciar você de um poste.

          Ela abre um sorriso sarcástico enquanto coloca a mão na maçaneta.

          — Além disso, você disse que queria conhecer o mundo pelo qual não vale a pena lutar — acrescenta. Após essas palavras ela abre a porta e entra na casa que há um tempo já não é mais sua.

          Na sala vejo uma figura volumosa, grande, esparramada numa das poltronas. Uma pilha de músculos e mantas finas. Deve ser Bree, seu cabelo está raspado em estilo militar e ele possui cicatrizes no rosto e nos braços, provas de seu tempo de batalha.

          — Hora de acordar — brinca Mare ao puxar devagar o cobertor dele.

          Seu irmão vai com tudo para o chão, que provavelmente fica mais prejudicado que ele, e rola até seus pés. Por uma fração de segundo, parece que vai voltar a dormir. Então ele a encara. Pisca os olhos embaçados e confusos.

          — Mare?

          — Cala a boca, Bree. Tem gente querendo dormir! — urra um garoto que eu acho ser Tramy.

           — QUIETOS TODOS VOCÊS! — ruge o pai do seu quarto, o que faz todos nós pularmos de susto. Bree esfrega os olhos com sono e puxa Mare para si com uma gargalhada profunda. Um poft ao nosso lado anuncia que Tramy pulou descalço do sótão para a sala.

          — Mare! — berra, e em seguida ergue a garota do chão ao abraça-la.

          — Bom ver você, Tramy — e minhas suspeitas foram confirmadas. Nenhum deles poderia ser o Shade porque ele simplesmente não está. É até bonito ver o reencontro deles, não posso nem imaginar pelo o que eles passaram no fronte da guerra sem sentido que acontece a anos por aqui.

          A porta do quarto abre de supetão e uma mulher surge em sua camisola esfarrapada. Ela abre a boca para dar uma bronca nos meninos, mas suas palavras morrem ao ver Mare. Em vez de brigar, ela abre um sorriso e junta as mãos.

          — Ah, finalmente você veio nos visitar!

          Um homem vem logo em seguida, fungando e rolando sua cadeira de rodas até a sala. Uma garota, que eu julgo ser Gisa, acorda por último, mas não desce. Sua cabeça desponta da beira do sótão e apenas observa lá de cima.

          Tramy enfim larga Mare e a põe de volta no chão, perto de mim e de Cal. Aliás, o príncipe é ótimo em parecer constrangido e deslocado.

          — Ouvi dizer que se rendeu e arrumou um bom emprego — provoca Tramy, cutucando a barriga da garota. Bree acha graça e bagunça seus cabelos.

           — O Exército não ia querer saber dela mesmo. Mare ia roubar até os olhos do pelotão.

          — O Exército não quer nem vocês. Dispensados, né?

          O pai responde pelos dois, aproximando sua cadeira:

          — Uma loteria, dizia a carta. Os irmãos Barrow ganharam a dispensa honrosa. E também pensão completa — Dá para notar que ele não crê em nenhuma palavra daquilo.

          — Ótimo, não é? Finalmente o governo fez algo pra gente — diz a mãe para em seguida beijar Bree na bochecha. — E agora você tem um emprego. Já era hora de esta família ter um pouco de sorte — conclui.

          — Sim, somos muito sortudos — bufa a garota ruiva, finalmente descendo para se juntar a nós. Com uma mão, ela vem devagar pela escada. Quando chega no chão, reparo na tala amarrada com um tecido colorido e me lembro do ocorrido a alguns meses, no dia que eu cheguei aqui. Com uma pontada de dor, vejo que se trata de um bordado lindo que jamais terminará. Mare para dar um abraço, mas ela recua. Seus olhos estão em mim e em Cal. Gisa parece ser a única que nos nota.

          — Quem são eles? — Mare olha para nós como se tivesse esquecido de nossa existência.

          — Ah, esta é Kenna e ele é Cal. Os dois são criados que trabalham comigo no Palacete.

           — Oi — desembucha Cal, complementando a palavra com um aceno idiota. Eu apenas sorrio e aceno. A mãe de Mare parece encantada com Cal, encarando seus braços musculosos.  Seu pai e irmãos, por outro lado, não ficam tão encantados.

           —  Vocês não são daqui — rosna o pai, nos encarando. Cal me olha brevemente, um pouco confuso. Havia me esquecido que todos pensam que eu sou daqui de Palafitas. — Dá para sentir no cheiro.

           — É só o cheiro do Palacete, pai... — protesta Mare, mas Cal a interrompe.

           — Somos de Harbor Bay — ele diz, disfarçando por nós dois. — Comecei a carreira em Ocean Hill, na residência real de lá, onde conheci Kenna, e agora vamos juntos nas viagens. Muitos criados fazem isso.

           — É isso ai — digo quando percebo que estou sendo observada por não falar nada. 

           — Você também? Tem que viajar com essas pessoas quando elas forem embora? — a mãe de Mare suspira consternada, agarrando seu braço.

          — Era a única vaga disponível. Além disso, o salário é bom.

          — Não chore, mãe — pede Mare. Ela chega mais perto e a abraça.

          — Não é só você, querida, é...

          Ela desvia o olhar para o pai de Mare. Seus olhos estão cheios de dor, uma dor que eu já vi em muitas crianças do orfanato que eu cresci. Os outros não suportam olhar para ela. Um peso sombrio paira na casa. Eles acham que Shade está morto. Com a voz trêmula, Mare faz uma pergunta resposta eu tenho certeza que ela não quer ouvir:

          — Onde está Shade?

          A mãe se dobra sobre si mesma e quase não chega na cadeira da cozinha antes de desabar em soluços. Bree e Tramy não suportam assistir à cena e viram o rosto. Gisa não se mexe; apenas encara fixamente o chão como se quisesse mergulhar nele. Ninguém fala. Apenas o ruído das lágrimas da mãe de Mare e a respiração difícil de seu pai preenchem o vazio. Queria tanto dizer que ele está vivo, mas ainda não é o momento. Eu poderia estragar todos os planos da Guarda Escarlate se o fizesse.  Mare perde o equilíbrio, quase cai para trás, mas Cal a segura.

          — Não queríamos contar por carta — Gisa balbucia, cutucando sua tala. — Ele morreu antes da dispensa chegar.

           Gisa luta contra as lágrimas e se esforça para pronunciar as palavras:

          — Ele tentou fugir e o executaram. Foi decapitado.

          Dessa vez Mare desaba no chão, nem mesmo Cal consegue a segurar. Eu me ajoelho no chão e a abraço forte. A geladeira estala no canto, as lâmpadas vibram, sobrecarregadas.

           — Mare — digo em seu ouvido, tentando alertá-la do que está acontecendo — Mare!

          Ela solta um gemido doloroso e eu a solto. Suas bochechas estão molhadas, mas em seus olhos eu vejo ódio. Um chiado ensurdecedor ecoa pela casa. A intensidade da geladeira, das lâmpadas e da fiação aumenta. Cal a chacoalha e a chama, mas ela parece estar em transe. Uma chuva de vidro cai sobre nós quando as lâmpadas explodem como milho ao fogo: ploc, ploc, ploc.

          Kilorn aparece e a obriga a levantar. Ele segura o rosto dela com as mãos e fala, não para confortá-la, mas para tirá-la do transe.

         — Mare, vamos! Acorda!

         — Kilorn — Mare abre os olhos e o encara em seus olhos verde-claros. A última lâmpada sobrevivente pende sobre nós, sua luz fraca mal ilumina o ambiente e sua família assustada. Mas essa não é a única coisa a iluminar a escuridão. Arcos lilás dançam nas mãos de Mare, cada vez mais fracos. Não tem como esconder agora. Kilorn faz Mare se sentar em uma cadeira próxima, seu rosto confuso. Não posso fingir que não vejo o medo nos olhos da família dela.

          — O que fizeram com você? — o pescador explode, a centímetros dela.

          — Nada.

          Mare lança um olhar para Cal, que acena com a cabeça.

          — Eu sou assim.

          — Você é um deles? — ele diz, com sua voz carregada de nojo. — É? — ele pressiona. A mãe de Mare é a primeira a recobrar os sentidos e, deixando todo e qualquer medo de lado, a pegou pela mão.

          — Mare é minha filha, Kilorn — ela diz, cravando os olhos sobre ele de um modo assustador. — Todo mundo sabe.

         Todos os Barows concordam, mas Kilorn permanece descrente. Ele a olha completamente confuso, como se ela fosse uma completa estranha.

          — Me dê uma faca e encerro a discussão agora — diz Mare, com um olhar fervente. — Vou mostrar a cor do meu sangue.

          As palavras parecem fazer o pescador se acalmar e ele recua.

         — É que... não entendo.

         — Acho que estou como Kilorn neste aspecto. Sabemos quem você é, Mare, mas... — Bree gagueja à procura das palavras certas a dizer. — Como?

          A presença de Cal faz Mare não mencionar a mim e nem as descobertas de Julian, mas ela explica tudo de uma forma simples e resumida.

         — Não sabemos como ou por quê, só sabemos que sou assim — finaliza e da de ombros. — Talvez a gente nunca saiba o que isso significa.

          — Acho que é um milagre — balbucia a mãe de Mare com um sorriso forçado para ela. — Sempre quisemos o melhor para você e agora conseguimos. Bree e Tramy estão a salvo, Gisa não precisa se preocupar, podemos viver felizes, e você — seus olhos marejados encaram Mare —, você, minha querida, será alguém especial. O que mais pode pedir uma mãe?

          Mare acena e sorri para a família, mas eu percebo que aquele não é um sorriso verdadeiro. Kilorn percebe o mesmo.

          — Como é o príncipe? — cutuca a mãe. — Maven?

         Terreno perigoso. Posso ver Cal mudando levemente sua posição, esperando para ouvir o que ela tem a dizer de seu irmão caçula. É uma pena ela conhecer apenas sua máscara.

          — Diferente do que eu esperava — responde por fim. Gisa percebe o desconforto de Mare e se vira para mim.

          — E você? É amiga de Mare? — é claro que eles iriam falar comigo, estou parada sem dizer nada desde que cheguei.

          — Sou sim — e isso não era mentira, nos tornamos boas amigas. — Tenho de aturar as piadas ruins dela o dia todo.

          Tento descontrair. Gisa abre um sorriso, assim como Mare que já estava de pé.

          — Como se você também não fizesse piadas horríveis — Mare entrou na brincadeira.

          — E ele é o guarda-costas de vocês? — Gisa aponta para Cal.

          — Sou — ele responde por nós duas. — E sinto muito, mas precisamos ir embora logo.

          — Sim — afirma Mare, com um olhar triste.

          — Não contaremos nada, claro — promete a mãe dela.

          — Nem uma palavra — seu pai concorda. Seus irmãos confirmam com a cabeça o juramento de silêncio. Mare encara Kilorn, que olha fixamente para o chão. Ele sente raiva, por algum motivo que eu não sei dizer qual é.

          — Kilorn?

          — É, não vou contar — dispara. Ele sai como um furação da casa, batendo a porta com força atrás dele. Vejo a família de Mare se despedindo dela e me lembro de Anna, a garotinha ruiva do orfanato que insistia em me chamar de Elsa. Eu não pude me despedir dela. Meus olhos se enchem de água e eu saio da casa antes que uma daquelas lágrimas pudessem escorrer.

          Eu não havia parado para pensar em Anna desde que cheguei, não tenho como saber se ela está bem. Devem achar que eu morri no acidente. Anna perdeu sua família mais uma vez, e eu perdi a minha. Me apoio na grade da varanda e pisco várias vezes para afastar as lágrimas.

          — Kenna? — a voz grave de Cal me surpreende e a pobre grade acaba congelada.

          — Droga — suspiro, fechando os punhos e respirando fundo para que mais nada seja congelado desnecessariamente.

          — Você está bem? — ele se aproxima, coloca uma das mãos sobre a grade e a descongela apenas com o calor que emana de seu corpo.

          — Estou ótima — digo, abrindo um sorrio falso. Cal, com uma expressão preocupada, disse:

          — Você não parece ótima. Tem algo a ver com o que o pai de Mare disse? Sobre você não ser daqui? 

          — Não. É sobre outra coisa. Eu costumava viver com uma garotinha, Anna, e um dia nós nos separamos. Não pude me despedir. Só isso — contei, em uma versão super simplificada. Não posso contar a ele de onde eu vim realmente. 

          — Por que se separaram?

          — Por que quer saber? — eu entro na defensiva, sendo acidentalmente grossa com o príncipe. 

          — Por nada, eu... poderia te ajudar a encontrá-la. 

          — Eu não estou a procurando. 

          Mare abre a porta da casa num momento extremamente conveniente, encerrando meu "interrogatório". 

          No caminho até os limites de Palafitas eu fiquei quieta. Nem mesmo prestei atenção na pequena conversa que Mare teve com ele, mas o nome de Shade foi dito e eu não precisava ouvir mais nada para saber do que eles estavam falando. 

          — Preciso fazer mais uma parada — disse Mare, chamando minha atenção. Ela sorri para Cal e emenda — Prometo que não vai demorar.

—---

          — Então essa é sua amiga Kenna — Will, o velho que trabalha com a Guarda Escarlate, diz olhando para mim com um sorriso. — Vocês se conheceram em seu emprego no Palacete? Que prestígio — ele caçoou. Mesmo tendo insistido para ficar, Mare me arrastou para dentro com ela. 

          Depois de ter certeza de que a porta e as janelas estavam bem fechados, ela disse:

          — Não trabalho lá, Will. Eles... — para nossa surpresa ele faz um gesto que a interrompe.

          — Ah, já sei de tudo. Chá?              

          — Ah? Não... — as palavras fogem de sua boca.

          — Como você...? — eu pergunto dessa vez. 

         — Os macacos reais escolheram a rainha na semana passada. E, claro, tinham que transmitir o evento nas cidades dos prateados — diz uma voz por trás da cortina.

          A figura se revela. Não é Farley. Parece mais um varapau humano. Sua cabeça quase bate no teto, o que o faz andar encurvado de um jeito estranho. Seus cabelos rubros e longos combinam com o manto vermelho que cobre seu corpo dos ombros até a cintura, preso com uma insígnia de sol que provavelmente todos os membros da Guarda usam. Não deixo de reparar em seu cinturão de armas, com pistolas e balas brilhantes. Ele é da Guarda Escarlate, o primeiro oficial deles que eu vejo pessoalmente, e não na minha imaginação. 

          — Vocês passaram em todas as telas prateadas, Lady Laris e Lady Titanos. — Ele pronuncia o título como se fosse uma maldição. — Vocês e aquela Samos — continua. — Conte-me: ela é tão chata quanto parece? 

          — Este é Tristan, um dos tenentes de Farley — intervém Will. 

          — Farley é... — Mare sussurra para mim, na tentativa de me deixar  a par. Mas eu a interrompo com outro sussurro.

          — Conheço ela — ela me olha brevemente em surpresa — Já ouvi falar.

          — Tristan, tenha modos — Will repreende o garoto alto.

          — Por quê? — desdenha Mare. — Evangeline Samos é uma babaca sanguinária.

          Sorrindo, Tristan lança um olhar presunçoso a Will.

          — Mas nem todos são macacos — acrescenta discretamente. 

         — Você fala do seu noivo ou do príncipe que está à sua espera na floresta? — Will pergunta calmamente, como se falasse do clima ou do preço da farinha.

          Já Tristan entra em erupção. Eu consigo chegar mais rápido do que ele na porta, a bloqueando com meu corpo. Ainda bem que estou calma e consigo me controlar, se não teríamos um picolé de membro da Guarda Escarlate.

          — Vocês trouxeram um prateado até aqui? — ele silva para mim. — O príncipe? Sabe o que poderíamos fazer se o pegássemos? O que poderíamos barganhar?

          — Não mexa com ele.

          — Uma semana de luxo e seu sangue já é tão prateado quanto o deles — rebate, como se poderia me matar. — Vai me congelar também?

          — Não estou protegendo ele. Estou protegendo vocês, seu burro ignorante. Cal é um soldado. Pode queimar o vilarejo inteiro se quiser.

          Não que ele fosse fazer isso. Cal não colocaria seu povo em um perigo desnecessário, nem mesmo vermelhos. Tristan baixa a mão até a arma.

          — Quero vê-lo tentar. 

          Mas Will leva a mão enrugada até o braço dele. O simples toque basta para que o rebelde desfaça a pose. 

          — Chega — Will sussurra. Ele se volta para Mare, que está a um passo de distancia de mim. — Para que veio aqui, Mare? Kilorn está a salvo, e sua família também.  

          Eu mantenho os olhos em Tristan. Ele acabou de ameaçar sequestrar Cal e pedir resgate. E, não sei por quê, isso me abala.

          — Meu... — Essa é a primeira vez que ela fala do irmão. Ela claramente sente dificuldade de tocar no assunto. — Shade era membro da Guarda. Foi morto por isso — continua. Will e Tristan encaram o chão, como se estivessem se desculpando por isso. — Os prateados mataram meu irmão e tenho que agir como se isso não me incomodasse.

          — Você morre se não colaborar — Will responde, falando algo que estamos cansadas de saber.

          — Eu sei disso. Falarei o que eles quiserem quando o momento chegar. Mas... — sua voz vacila, e então eu percebo onde ela quer chegar. — Estamos no palácio, no centro do mundo deles. Somos rápidas, discretas e podemos ajudar a causa. 

          Olho surpresa para Mare, ela usou a palavra "nós", ela espera que eu me junte a Guarda. Eu realmente não deveria. Mas eu quero. Tristan toma um longo fôlego, sua raiva repentina de antes passou e ele olha para Mare com um brilho de orgulho nos olhos.

          — Querem se juntar a nós?

          — Quero — responde Mare, decidida. Todos se voltam para mim. Eu preciso fazer uma escolha. 

          — Quero — digo. Eu não deveria estar fazendo isso, pelo bem da história. Mas eu já estou aqui, posso ajudar tanto quanto Mare. É só eu fingir que não sei de nada do que irá acontecer, como todos. Preciso dançar conforme a música que toca. 

         Quando saio de meus pensamentos a mão de Will está estendida em minha frente, esperando um aperto de mão. Aperto a mão de Will, sentindo todo o peso que este meu ato pode e irá ter. 

          — E vamos nos levantar — ele começa, fazendo uma só voz com Tristan. Estou pronta para dizer as palavras que eu tanto li. 

          — Vermelhos como a aurora — Mare diz em conjunto comigo. Tempestade e gelo. Colocadas lado a lado por uma queda num jardim, unidas por uma causa maior do que a sobrevivência em um palácio. 

          Quando nos encontramos com Cal na fronteira do vilarejo eu permaneço sem falar com ele. Mare não diz uma palavra, mas ela com certeza parece estar mais leve. O príncipe caminha quieto ao meu lado, mesmo parecendo querer me lotar de perguntas sobre meu passado, na outra dimensão que ele nem pode imaginar que existe. Depois desta noite as coisas vão ser um tanto diferentes. 

           Quando chegamos na floresta, Cal fica mais sério.

          — Terei que falar com a rainha para mudar suas agendas.

          — Por quê? 

          — Você quase explodiu o lugar, Mare! E Kenna quase congelou sua varanda! — eu não desvio meu olhar do caminho. — Vocês precisam participar de nosso treinamento para garantir que algo assim não aconteça mais. 

          — Bom, se isso me tirar das aulas de protocolo, não vou recusar.

          De repente, Cal se afasta da moto com um salto. As mãos flamejam com o mesmo fogo que arde em seus olhos.

          — Tem alguém nos observando.

          Não perco tempo em questionar e olho para os lados, atenta. O ar ao redor de mim parece esfriar. Quem nos atacaria em uma floresta silenciosa e escura? Estamos em uma floresta cheia de rebeldes, minha mente lembra. Fico mais atenta. Mas em vez de Farley ou revolucionários armados, é Kilorn quem sai de trás das folhas.

          As mãos de Cal se apagam numa nuvenzinha de fumaça.

          — Ah, é você.

 

          Kilorn crava seus olhos em Cal. Então, inclina a cabeça numa reverência condescendente.

           — Com licença, alteza real.

          Em vez de tentar negar, Cal endireita o corpo como o rei que nasceu para ser. Não responde e volta a tirar as folhas de cima da moto. Me aproximo dele e o ajudo, mas ainda sem lhe dizer uma palavra. Ainda posso ouvir a conversa entre Mare e Kilorn. 

          — Você vai mesmo fazer isso? — Kilorn diz parecendo um animal ferido. — Vai mesmo partir? Ser um deles?

         — Você viu o que aconteceu lá. Viu do que sou capaz. Eles podem me ajudar. — Até eu me surpreendi com a facilidade com que aquela mentira saiu. — Estou onde devo estar. 

         — Seu lugar é aqui.

          — Leve ela primeiro — sussurro para Cal, me afastando um pouco dele e da moto. Ele apenas acena com a cabeça. 

          — Mare — ele a chama. A esperando pacientemente no assento da moto, mas sua voz é firme. Ele entendeu o porque de eu pedir que ele a levasse primeiro. Ela iria ficar aqui se não fosse. 

         — Preciso ir — Ela tenta se soltar de seu braço mas ele não a deixa ir. 

         — Mare, por favor...

          Cal ameaça descer da moto mas eu sou mais rápida, chego até Mare e Kilorn antes dele. 

          — Solta ela, Kilorn — o ambiente esfria drasticamente, ele percebeu que eu também tenho meus truques. Kilorn me encara, numa mistura de surpresa e raiva, ele quer que ela fique. Mas recua e a solta. Eu não gostaria que ela passasse por isso, se separasse de sua família, mas eu não tenho escolha. Ela não colocaria só a ela mesma em perigo, mas toda as pessoas que conhece. Inclusive eu. 

          — Você também pediu por mim, para me liberarem do recrutamento — Kilorn diz, se voltando novamente para Mare, com suavidade. — Tem o péssimo hábito de tentar me salvar.

          Mare se vira, com lágrimas nos olhos, e sobe na moto. Ele diz algo a Mare que eu não pude escutar por causa do ronco da moto. A moto parte e a leva embora, de volta para o palacete, para longe de quem ela ama.

          — Não creio que fomos apresentados.


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Notas finais do capítulo

Oie! espero que tenham gostado! Não esqueça de deixar seu comentário. Vocês gostam desse formato de capítulos mais longos?
O que estão achando da história? O que acham que vai acontecer?
Obrigada por ler e até o próximo capítulo!



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