Foclore Oculto. escrita por Júlia Riber
O silêncio, o clima ameno e o cheiro de madeira dos bancos enfileirados, aquela parecia mais uma manhã comum na Igreja da vila. Malvina estava sentada em uma das ultimas fileiras com as mãos unidas enquanto orava e pedia perdão pelos pecados, que em sua própria opinião eram poucos, entre tais contar a todos que a vizinha apanhava do marido, mas nunca tê-la ajudado, ter dado veneno para um cachorro de rua que pegava coisas de seu quintal, etc, nada de mais.
Logo sentiu alguém sentar-se ao seu lado e do outro também, e, apesar de não querer se desconcentrar da oração, sua curiosidade era tão forte quanto sua religiosidade e assim não resistiu em abrir os olhos.
De um lado a mulher com véu negro sobre a cabeça, camiseta marrom e saia longa vermelha era franzina de mais para não ser reconhecida, o que fez Malvina imediatamente arregalar os olhos com indignação. E como se a empregada de Edgar ousar ir a igreja já não fosse muito, ao virar-se para o lado esquerdo viu alguém com uma blusa moletom preta como todo o restante da roupa e a face omitida pelo capuz de tal.
Em seguida, porém, a pessoa tirou o capuz revelando os cabelos ruivos e o sorriso sádico.
— Olá Senhora Malvina — disse a neta de Edgar.
— Parece assustada — observou Ângela do outro lado — parece sim.
Ângela tirou o véu e Núbia colocou o cotovelo na cadeira da frente e apoiou a cabeça observando Malvina, que se sentia em uma armadilha com duas feras, uma de cada lado, a encarando como se quisessem devorá-la.
— Como ousam aparecer na vila? Quanta cara de pau! — disse ela deixando o medo de lado e voltando a seu costumeiro modo encrenqueiro.
— Eu sempre vim à igreja — disse Ângela dando de ombros e voltando-se ao altar.
— E eu... Estou só acompanhando ela — disse Núbia — depois de tudo que me contaram sobre o prefeito Jorge, cruzes, só indo a igreja.
Núbia fingiu enjoou e colocou a linga para fora.
— Do que estão falando? — disse Malvina não segurando a curiosidade.
— Você não acreditaria em pessoas relacionadas ao Edgar, somos todos traidores, foi o que me disse quando estive na vila pela ultima vez — lamentou Ângela.
— Sem contar, que na boa, a senhora não iria querer saber o que sabemos, são coisas muito repugnantes — completou Núbia —, é desprezível pensar que tudo aquilo venha do prefeito, Jorge sempre pareceu tão bom homem...
Núbia suspirou e Malvina mordeu os lábios segurando seu espirito fofoqueiro, mas a curiosidade chegava ferver em suas veias.
— Eu devia... Gritar, sim, eu vou entregar vocês, quando souberem que comparsas de Edgar estão aqui as duas serão caçadas.
Ângela engoliu em seco parecendo nervosa, já Núbia deu de ombros, ainda tranquila.
— Tudo bem, mas vai ficar sem saber os podres do prefeito, não que eu esteja dizendo que a senhora seja fofoqueira, claro, somente acho que... A população tem direito de conhecer seu líder, sabe.
Malvina batia os pés com ansiedade, estava prestes a explodir de curiosidade então decidiu se render.
— O que sabem?
...
Joaquim Assis estava em sua sala bem iluminada, mas bagunçada, com estantes de livros desorganizados, piso de madeira destruída por cupins tal como os móveis. O Cheiro que misturava formol a tinta de impressora rondeava o escritório e fazia Joaquim lembrar-se da necessidade de escrever algo, mas o que? Ele era o responsável pelo único jornal das redondezas e apesar de tal tratar de diversas vilas, dificilmente havia notícia, isso porque as quatros vilas sobre quais eles escrevia, Cantinho, Fim do Mundo, Matagal e Lugar algum, eram pacatas e pequenas. A vila Fim do Mundo, por exemplo, sempre estampou o jornal de Joaquim com noticias sobrenaturais de supostos monstros que apareciam no local, e no fundo, o jornalista não acreditava nas histórias que lhe chegavam e também sentia-se envergonhado de escrever sobre elas em seu jornal, no entanto, seus leitores costumavam amar tais reportagens. Como discutir com o imaginário da população?
Ele olhou para o notebook a sua frente, encima daquela escrivaninha de madeira clara, depois fitou o vaso de flores murchas ao lado, mas nada lhe dava inspiração, nada o fazia sentir vontade de escrever.
Logo viu sua secretária abrir a porta e colocar a cabeça para dentro.
— Senhor Joaquim.
— Hum — disse ele desinteressado.
— Uma moça quer falar com o senhor, diz ter noticias da vila Fim do Mundo.
Joaquim bufou.
— Deixe-me adivinhar, lobisomens? Mulas sem cabeça? Chupa cabras? Já tenho bastante histórias assim para escrever Lúcia, por favor mande a moça ir embora.
— Ela quer falar com o senhor — insistiu Lúcia e apesar do sorrisinho costumeiro dela, seus olhos pareciam paralisados, fixados no nada, o que fez Joaquim arquear as sobrancelhas.
— Hum... está bem, mas eu não quero falar com ela. Lúcia você está bem?
— Ela irá falar com o senhor — disse Lúcia ainda com a mesma expressão, por um momento Joaquim comparou o estado de Lúcia com o de uma pessoa hipnotizada, mas achou tal hipótese ridícula. Antes que dissesse algo Lúcia voltou a falar —. Ela está entrando, boa conversa.
— Mas Lúcia...
A secretária o ignorou e abriu a porta por completo fazendo sinal de cortesia a mulher que entrava.
Joaquim sempre foi um homem centrado e passava mais tempo lendo e escrevendo do que se aventurando em relações amorosas, mas deixou o queixo cair ao ver aquela mulher, que parecia conter em ti, toda a beleza do Brasil. Com olhos claros de uma europeia, curvas belas de uma negra e os traços fortes de uma indígena. A mulher parecia flutuar de tão leve seu andar e Joaquim ficou tão abestalhado olhando-a se aproximar que esqueceu-se da secretária e seu comportamento peculiar.
Lúcia saiu e fechou a porta enquanto a mulher estendia a mão para Joaquim com um sorrisinho.
— Prazer, sou Iara Tupânae, espero não estar incomodando o senhor.
Joaquim conseguiu enfim fechar a boca e apertou a mão dela.
— Nã-não, quero dizer, sim, mas não tem problema.
— Licença — disse Iara sentando-se a frente da escrivaninha de Joaquim. — Eu ouvi o que o senhor disse lá de fora e não lhe culpo, realmente Fim do Mundo faz jus ao nome.
Só então Joaquim pareceu voltar a si.
— Sim, mas o que eu esperava escrever em um jornal do interior, não é mesmo? Mas, a senhorita mora em fim do mundo, então?
— Sim, num sitio próximo á vila.
— E o que a trouxe aqui?
Iara arrumou o cabelo e colocou a cima da mesa de Joaquim uma pasta que levava nas mãos.
— O que trás alguém a um jornalista, senhor Joaquim? O seu jornal é o único veiculo de comunicação da região e o que há nessa pasta interessa não só o local onde moro. Envolve todo seu público.
Joaquim arrumou seus óculos redondos e coçou a barba mal aparada fitando a pasta cinza a sua frente.
— Se não for nem um conto de terror, eu estarei interessado.
Iara curvou-se para frente, com um sorriso maldoso.
— É um conto de terror realista, meu caro. Imagino que o senhor há muito quisesse um escândalo político, deve estar cansado de noticiar roubos de galinhas e supostas aparições de lobisomens.
Joaquim abriu a pasta com cuidado e viu ali relatórios, contratos e alguns boletos bancários de grandes quantias.
— O que exatamente é isso, senhorita Iara?
— Recibos, relatórios, cópias de documentos originais do senhor Jorge Montes e seus colegas, prefeitos das cidades vizinhas. Como o senhor bem sabe, tais homens só tem o titulo “prefeito” porque oficialmente Fim do Mundo, Cantinho, Lugar algum e Matagal são municípios e nós chamamos de vila por sua falta de estrutura, mas o senhor também, como um homem culto, sabe que como municípios, todos recebem verbas estaduais e federais. E eu te pergunto, Senhor Joaquim, onde estão tais verbas se as vilas prosseguem as mesmas desde o século passado?
— Desvio de dinheiro — disse Joaquim sério e Iara sorriu, amava homens inteligentes.
— Para as fazendas dos prefeitos, os jatinhos, joias, essas coisas.
— Eu sempre desconfiei, na verdade estava tudo tão obvio, mas... eu não tinha provas.
— Agora tem — disse Iara apontando para a pasta,
Joaquim parecia eufórico, mas logo sua expressão se tornou sombria.
— Mas... Se eu fizer isso... Eles somem comigo, é assim que funciona as coisas em lugares isolados como este, dona Iara. Quem se revolta contra os lideres assina a própria sentença de morte.
Iara assentiu lentamente.
— Digamos que a grande maioria da população é ignorante, aceita o que vier e veem como principal objetivo da vida, trabalhar e morrer. Mas há pessoas diferentes, que veem o mundo de forma ampla, que são grandes de mais para caber em um único cercadinho de ideias e tais pessoas ou são os líderes, ou são aqueles que derrubam os líderes. Senhor Joaquim, o senhor é sábio de mais para simplesmente se calar e fingir que nada acontece, o senhor não é líder de nada, o que significa...
Joaquim assentiu seriamente.
— Eu... Sei que tenho a obrigação de abrir os olhos da população, mas... Isso é muito arriscado.
— O senhor terá a proteção do casarão Cabrall — prometeu Iara.
Joaquim franziu os olhos.
— Cabrall... Já ouvi falar muito desse nome, não é essa família que a vila quer caçar?
Iara desviou o olhar.
— É... Mas é porque a vila está cega, como boas ovelhas que são, e Jorge os manipula, mas é ele, o prefeito é o lobo, é dele que as ovelhas precisam temer.
— Se eu não me engano, Edgar Cabrall matou o filho do prefeito — continuou Joaquim.
— Mentira — disse Iara com uma risadinha — xi, tudo mentira. Olhe, Edgar é sim muito poderoso, mas ele nunca cometeu nem um crime contra vila, nunca a roubou, como Jorge fez, muito pelo contrário, ele sempre investiu dinheiro em fim do mundo.
— Por nada? — disse Joaquim com olhar desconfiado.
— Não... Edgar fez isso, pois aquele lugar é seu lar e sempre defendemos nosso lar!
Joaquim não parecia convencido, mas pegou os papéis da pasta e começou a analisá-los.
— Eu agora me recordo de também já ouvir seu nome, Iara, esposa de Edgar certo? Suponho que esses papeis sejam o escudo de vocês, a forma de contra-atacar Jorge.
— O senhor é muito inteligente — disse Iara com um sorrisinho maldoso — eu gosto disso.
Ela lambeu os lábios enquanto o analisava maliciosamente, mas felizmente, ele não viu isso.
— Eu não sei se seria ético publicar essas corrupções só para ajudar nessa guerrinha particular de duas famílias.
— Não é uma simples guerra entre famílias, acredite.
Joaquim colocou os papéis na mesa e arrumou os óculos.
— Vou pensar nesse caso, agradeço sua visita, mas já pode se retirar.
Iara de inicio fechou a cara, mas logo mudou de expressão e encarou Joaquim nos olhos.
— O senhor vai publicar sim as verdades sobre Jorge, o senhor sempre quis essa notícia, é sua chance de ser um jornalista de verdade e ainda, de salvar esse povo da ignorância — Iara começou a se apoiar na mesa, se aproximando de Joaquim e deixando o decote mais amostra. E Joaquim naquele momento sentiu-se confuso, não conseguia parar de olhar para toda aquela beleza. Em seguida tudo a volta pareceu desparecer e só haver Iara e ele no mundo. Iara tocou no rosto do jornalista o que o fez sentir um calafrio na barriga e uma imensa vontade de beijar aqueles grandes lábios.
—Você vai publicar tudo que há nessa pasta e irá centralizar as críticas em Jorge e se algo der errado, me liga, deixei meu número com sua secretária. Tem a minha palavra — prosseguiu Iara em tom suave, ela então o beijou de leve e se afasto. — Vai sujar a reputação de Jorge e jamais irá tocar no nome dos Cabrall em seu jornal, de acordo?
Joaquim assentiu abestalhado.
Iara abriu um sorrisinho e se levantou e Joaquim fez o mesmo ainda hipnotizado.
— Eu... Te amo — disse ele.
Iara revirou os olhos.
— Sente-se e durma um pouco Joaquim, quando acordar vai fazer exatamente o que mandei.
Joaquim assentiu, sentou-se imediatamente e deitou a cabeça na mesa e em segundos estava adormecendo.
Iara deu uma risadinha, amava seu poder. Depois saiu da sala e encontrou a secretária Lúcia sentada em sua cadeira com um sorrisinho e repetindo várias vezes.
— Ela quer falar com o senhor, ela quer falar com o senhor, ela quer falar com o senhor...
Iara fez cara feia.
— Droga esqueci de você ne queridinha. Bem, Lúcia — Iara fitou a secretária nos olhos, mas ela prosseguiu repetindo a mesma frase — quero que você acorde, esqueça minha ordem, esqueça de mim.
Imediatamente Lúcia parou de falar, ela chacoalhou a cabeça, pareceu confusa e quando fitou Iara a sua frente tentou sorrir.
— Oh, senhorita, boa tarde, não a vi ai, quer falar com Joaquim? — disse ela simpática.
— Não, obrigada — disse Iara indo em bora e deixando a secretária ainda mais confusa.
...
No casarão, envolta da mesa de jantar, Iara, Edgar, Núbia e até Ângela, se reuniram para falar sobre o decorrer do plano enquanto bebiam algo.
— A semente está plantada — disse Edgar após beber um gole de seu vinho misturado.
— Amanhã mesmo os podres políticos de Jorge estrão nos jornais — disse Iara com uma risada maléfica e logo bebeu seu champanhe.
Ângela e Núbia, que tomavam sucos de laranja, trocaram olhares e sorriram.
— Se tudo que Ângela falou sobre Malvina for verdade, amanhã mesmo o povo da vila só vai falar sobre os erros dos Montes — comentou Núbia.
— Sim, vão sim — disse Ângela. — Malvina é uma fofoqueira.
— Admito que estou muito orgulhosa de você, Núbia — disse Iara — entrou para família, já está até participando das nossas falcatruas!
Núbia abriu um sorriso sem ânimo, pois não gostava daquele ponto de vista. Ela só havia ajudado o plano de Iara e Edgar porque também morava naquela casa e era natural que lutasse para prosseguir ali sem ser queimada viva pelos vizinhos, mas pensar que aquilo a fazia igual a seus tutores não lhe agradava em nada.
— Eu disse que tu eras mais parecida conosco do que imaginava — disse Edgar.
— Querem comemorar minha primeira falcatrua? — ironizou Nubia — Minha passagem de jovem comum para sociopata?
— Dramática — resmungou Edgar o que fez Iara rir e Núbia o fuzilar com os olhos.
— Querida, só estamos felizes por você estar do nosso lado — esclareceu Iara. — Como uma família, sim?
Núbia assentiu para não causar mais intrigas, porém não comentou aquilo.
— Ângela também foi de grande ajuda — observou Edgar, o que fez Ângela contrair os ombros, um tanto acanhada.
— Só queria retribuir a proteção dos senhores, queria sim.
— Você sempre foi um amorzinho — disse Iara mandando um beijo para Ângela. — Vamos brindar? A derrota de Jorge.
Ela ergueu sua taça e Edgar, Núbia e Ângela não viram outra opção a não ser fazer o mesmo.
...
Mais tarde, após brindar a desgraça de alguém e rir das piadas maldosas de Iara, Núbia subiu para quarto. Ela foi até o guarda roupa pegar uma roupa de dormir, pois entraria no banho, mas se deparou com algo que fez toda sua tristeza retornar. No ultimo cabide havia uma única camisa branca e masculina, colocada ali com todo cuidado. Era a camisa de Cissa que Núbia sempre esqueceu-se de devolver.
Ela pegou a camisa e aproximou do próprio rosto sentindo o perfume que lhe dava muitas lembranças, mas principalmente, do primeiro beijo dela com Cícero, a noite em que usara aquela camisa, seu corpo foi de encontro ao de Cicero de uma maneira nunca feita antes, aquela camisa havia presenciado o momento de derrota de Núbia com seus sentimentos, quando ela se entregou as vontades, quando mostrou o desejo que tinha por Cicero.
Núbia jogou a camisa no guarda roupa, pegou uma camiseta grande de banda qualquer que usava para dormir e fechou o guarda roupa com força.
— Amanhã boto fogo nessa camisa — prometeu Nubia a si mesma. — Não quero lembrar mais dele.
Ela foi ao banheiro e enquanto a água morna do chuveiro caia-lhe pelo corpo nu, sentia a esperança que as águas levassem com elas os sentimentos que tinha por Cícero, porém sabia que isso jamais aconteceria. Núbia mordeu os lábios e socou a parede do box, fazendo seu punho sangrar, no entanto não ligou para dor. Ela somente observou seu sangue escorrer pelo chão até o ralo, enquanto pensava “quando vou esquecê-lo, como vou esquecê-lo?”.
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E aí, vocês acham que a Núbia vai perdoar Cícero? Comentem!
Beijos e até a próxima.