Foclore Oculto. escrita por Júlia Riber


Capítulo 16
Capítulo 15




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Tudo fazia sentido, terrível sentido, cada segredo, cada palavra não dita, cada resposta não dada. Cícero Akilah era o Saci. O rapaz que Núbia achava afastar dela a escuridão da vida, era o próprio breu. Cissa era um demônio disfarçado de anjo da guarda.

Núbia fechou os olhos segurando a dor dentro de si.

— Só eu podia pegar o capuz, por ser uma Cabrall — lembrou Núbia.

Edgar assentiu sem sequer perguntar como ela sabia daquilo.

— Sinto muito guria, creio que isso seja uma grande decepção para ti, mas Cícero lhe usou desde o começo. Ele queria sua confiança por isso sempre esteve do seu lado, te protegeu, te fez se sentir segura. Infelizmente notei isso um tanto tarde, demorei em prestar atenção em ti para dizer verdade, mas agora... Quero realmente cuidar de você.

Núbia e Edgar se encararam irresolutos, até a garota se levantar ainda invadida por raiva.

— Não quero nem preciso de seus cuidados, Edgar. Não quero nada de ninguém desse lugar! Você, Cissa, Iara, são todos monstros e eu quero distancia de todos! Odeio todos vocês!

Ela saiu em disparada para o portão do casarão e Edgar respirou fundo, se transformou em fumaça e logo estava á frente de Núbia.

— Onde pensa que vai?

— Não te interessa só saia da frente!

— Núbia tu está nervosa, precisa pensar, precisa me ouvir.

— Eu quero que se dane tudo! Foda-se o que tem a me falar.

Edgar rosnou.

— Bah guria, sou tão paciente quanto você não me irrite!

— Eu estou irritada — bradou ela já sentindo a pele ferver, e suas veias saltarem para fora como costumava acontecer quando estava com ataque de nervos. — Agora saia da minha frente monstro!

Edgar perdeu a paciência e pegou Núbia pelo braço a levando em um canto da sala.

— Me larga! — berrava Núbia se debatendo e tentando se soltar, mas Edgar era bem mais forte que a garota.

—Cale a boca, e olhe — disse Edgar a colocando de frente a um espelho perto da estante.

Núbia só então notou que seus olhos estavam totalmente negros, e aquilo a assustou tanto que imediatamente ela saiu do estado de fúria.

— Você não é muito diferente de mim guria – disse Edgar ainda segurando o braço dela — Na verdade, tu é mais parecida do que pensa. Tu és um monstro! Como eu, como Saci, como todos.

Edgar largou os braços dela aos poucos e tentou controlar também a raiva, voltando a um tom calmo.

— Mas eu posso te ajudar a controlar isso — prosseguiu.

Núbia repentinamente começou a chorar, explodindo com tudo aquilo.

— Eu confiei nele...

Ela se ajoelhou ali no chão desabando em choro e Edgar ficou a observando sem saber o que fazer, nunca foi muito bom em consolos.

— Núbia saia do chão — disse ele em tom baixo, mas Núbia o ignorou —. Por favor, você é maior do que isso, é uma Cabrall, não devia chorar pelo Cícero e sim se vingar.

Núbia soluçou, mas pareceu pensativa.

— Eu... Quero falar com ele.

— Não tem nada para falar com aquele demônio.

— Eu preciso fazer isso Edgar — ela olhou para cima o fitando —. Preciso. Depois juro que... Esquecerei Cissa, e vou tentar ser a Cabrall que você quer eu seja.

Edgar franziu os olhos se interessando pela proposta e estendeu a mão para ajuda-la a levantar.

— Está bem.

Núbia aceitou a ajuda dele e se levantou, ela voltou a se fitar no espelho e tirando a cara enxada pelo choro, estava normal.

Edgar passou a mão sobre a bochecha dela enxugando sua ultima lagrima o que a surpreendeu um pouco.

— Mas seja forte, não se abale a nem uma mentira que ele lhe disser — ordenou ele.

Núbia assentiu seriamente e caminhou para fora do casarão, logo Ângela surgiu devagar.

— Senhor...

— Está tudo bem — disse Edgar. — Só não se intrometa nisso e prepare para o jantar peixe assado.

Ângela franziu as sobrancelhas estranhando o pedido, mas logo se lembrou que aquele era o prato favorito de alguém em especial.

Edgar pegou seu casaco negro que ficava no cabideiro mancebo da sala de jantar e saiu em direção ao bosque. Logo, no meio da mata, ao pé de um abacateiro, Edgar tirou com o cajado as folhas ali caídas, dando lugar a um gancho de metal, em uma portinha de madeira no chão, Edgar puxou este se deparando a entrada de seu calabouço.

Ele desceu as escadas estreitas com cuidado, atravessou o corredor de celas, chegando a ultima, onde Iara estava deitada em sua cama usando somente uma camisola e lendo um livro erótico.

— Que visita desagradável — disse ela sem tirar os olhos do livro. — Prefiro quando é o Noite, trazendo minha refeição.

— Isso não vai mais acontecer — esclareceu Edgar —. Porque irei te libertar.

Iara fechou o livro e o fitou com olhar desconfiado.

— Mas eu não aceitei aquele seu trato maluco.

— Com o tempo irá aceitar — disse Edgar sério —, mas preciso de você agora.

— E quando que você não precisa? — disse ela com uma risadinha convencida. — Homem não sabe fazer nada direito se não tiver uma mulher do lado aconselhando, incrível.

Edgar revirou os olhos.

— Vai me ajudar ou não? — disse ele impaciente.

— Hum... Não estou disposta.

Edgar rosnou, mas tentou ter paciência.

— Te dou o que quiser em troca.

Iara o fitou por alguns segundos depois abriu um sorrisinho maldoso.

— Qual a encrenca dessa vez, meu gaúcho?

...

Núbia correu pela mata, foi á cachoeira, mas Cissa não estava lá, ela então correu até a cabana, e entre as árvores o viu treinando capoeira no quintal. Ele fazia estrelas e treinava a precisão de seus chutes, e vê-lo daquela maneira feria Núbia, pois lhe trazias as lembranças boas de quando treinavam juntos.

— Era tudo mentira — lembrou ela a si mesma. E prosseguiu caminhando.

— Cícero! — chamou ela — ou devo dizer Saci?

Cissa parou o que fazia imediatamente e a fitou com os olhos cinza pasmos. Olhos cinza — pensou Núbia — o traço branco.

— Menina... O que você...

— Núbia — corrigiu ela parando alguns metros a frente dele. — Me chame de Núbia. Quanto tempo pretendia me enganar, hein? Achou realmente que eu não iria descobrir, achou que Edgar não me contaria, ou... achou que eu não acreditaria? É isso não é? Você fez eu me apaixonar por você para sempre confiar e acreditar em você, mas eu não sou burra!

Ela se aproximou e apontou o dedo na cara dele segurando ao máximo para não dar-lhe um soco.

— Se você queria uma garotinha apaixonada, falhou miseravelmente, o que conseguiu foi uma inimiga! Eu quero acabar com você, Cícero!

Cissa continuava a fita-la irresoluto e por alguns segundos Núbia sentiu medo dele agir de maneira violenta, mas a única coisa que fez foi dizer em voz fraca.

— Já me sinto acabado.

Os olhos dele começaram a lacrimejar e aquilo fez Núbia hesitar.

— Pare de atuar — disse ela tentando prosseguir com raiva.

— Eu já parei há muito tempo, eu... Não sei o que Edgar te disse, provavelmente a verdade, mas não toda. Núbia, eu precisava do capuz, mas não porque quero o poder dele, se isso acontecer a alma demoníaca vai tomar conta e a humana... — Cissa suspirou —. Entenda, eu não sou o saci, eu sou Cícero, nasci no momento em que Edgar me trouxe a esse século, minha mãe é Tereza Akilah. O escravo deu origem a duas almas. A demoníaca é saci que todos conhecem. A humana sou eu. E eu, amo você Núbia.

— Você me usou — disse Núbia tentando não se abalar —, você não me ama, você precisa de mim para conseguir seu precioso capuz.

— Precioso? Aquilo é minha maldição! Quero o capuz para destruí-lo, para tirar esse demônio desgraçado da minha cabeça — disse ele tocando a própria cabeça como se sentisse dor —. O capuz atiça o Saci, enquanto um ficar vivo o outro também vai. Mesmo na Bahia, mesmo sendo tratado pelo o povo do meu terreiro, o Saci ás vezes falava comigo e destruir o capuz era a única maneira de fazer esse maldito calar a boca! De viver minha vida. Só por isso quero o capuz. Para ser normal! Então, no dia em que te conheci eu vi essa oportunidade, lembra quando eu fiz o trato com o Curupira? Bem, era isso que falei para ele em tupi. Disse que pegaria o capuz para destruí-lo, assim Edgar ficaria fraco e Curupira poderia completar sua vingança, mas que para isso ele precisava deixar você viva.

— Porque eu era sua ponte.

— Sim, mas isso era arriscado, o capuz compromete uma pessoa, tira o que há de pior nela e o plano podia arriscar sua vida — Cissa parecia destruído, estava tentando achar forçar para prosseguir —, mas eu não liguei para isso no começo, concluiu que era por um bem maior...

Ele bateu o pé nervoso enquanto Núbia só o observava

— Mas eu me apeguei a você, notei que você não merecia ser enganada dessa forma, que eu estava sendo um canalha por te usar assim, depois... Eu me apaixonei, me apaixonei perdidamente por você. Eu te juro menina, juro pela minha vida, que eu quis parar tudo isso, juro que iria te contar toda a verdade, mas... O Curupira ameaçou a vida da minha mãe Tereza se eu interrompesse o plano. Perdão. — Ele pegou a mão dela e a beijou. — Por favor, me perdoa menina.

Núbia afastou-se dele.

— Eu não consigo mais ver você com os mesmos olhos Cissa, eu confiava tanto em você... Mas não consigo mais.

— Confie! Eu amo você — insistiu Cissa.

— Na outra vida, você também dizia amar alguém e a matou — lembrou Núbia.

Aquilo pareceu ser uma facada em Cissa. Ele paralisou, depois respirou fundo.

— Não fale nisso — pediu ele.

Núbia franziu os e olhos.

— Vai negar? Vai dizer que Edgar mentiu? Você é um assassino, um maluco Cícero.

— Eu me arrependo de cada sangue que derramei séculos atrás, te juro que paguei por todos meus pecados ao morrer e usei essa nova vida para ser diferente, eu não sou como antes, eu jamais mataria alguém... Ainda mais você.

 Núbia o encarou.

— Se você realmente mudou, e realmente gosta ao menos um pouco de mim. Vai sumir da minha vida. Vai embora para nunca mais voltar!

— É isso que você quer? — murmurou Cissa com olhar baixo.

Núbia segurou as lagrimas e tentou obedecer à ordem de Edgar e não se abalar.

— Sim.

Cissa assentiu enxugou as lagrimas.

— Então é isso que vou fazer — prometeu ele.

Núbia o fitou esperando mais alguma reação dele, mas ele prosseguiu cabisbaixo. Ela então se virou para ir embora, mas Cissa a pegou pelo braço, a puxou para perto e a beijou.

Ela arregalou os olhos, mas não conseguiu afasta-lo, porém também não o retribuiu. Ele notou isso e logo se afastou; acariciou os cabelos dela e beijou-lhe a testa.

— Adeus — sussurrou ele e em seguida caminhou em direção a sua cabana.

Núbia tocou o próprio lábio ainda sentindo o beijo dele, mas não conseguiu dizer nada, somente seguiu seu caminho.

...

Núbia já atravessava o quintal do casarão e tentava se recompor, não aguentava mais chorar. Precisava ser forte, mais do que nunca.

Chegando próximo ao casarão, porém, ouviu Edgar discutindo com alguém, uma voz feminina e familiar, que fez o coração de Núbia acelerar novamente.

Entrou correndo e viu a dona da voz famílias no corredor de cima, com um vestido branco com fios soltos, longo e refinado. Ela passava as mãos pelo próprio corpo analisando-se enquanto dizia:

— Até que é bonitinho.

Edgar apoiado no corrimão ficava com os braços cruzado a olhando impaciente.

— Devia agradecer, depois de tudo que fez não merecia presente algum.

— Iara! — bradou Núbia do andar de baixo.

A mulher de vestido branco voltou-se á Núbia com um amplo sorriso.

— Oi mocinha. Sentiu minha falta?

— Eu... O que exatamente aconteceu? — disse Núbia com um sorrisinho abestalhado.

Iara começou a descer as escadas enquanto abanava as mãos.

— Ah, o de sempre, Edgar não vive sem mim. Fiquei alguns dias foras e ele consegue fazer uma vila inteira querer caça-lo. Agora aqui estou eu para novamente concertar as burradas do seu avô.

Edgar resmungou e revirou os olhos, mas não discutiu.

Iara já havia descido as escadas e pegou o rosto de Núbia com um sorrisinho caridoso.

— E você, minha lindinha, como está? Soube que Edgar te contou tudo sobre o tal Cícero, isso deve ter te deixado tão mal...

— Estou bem — mentiu Núbia —, Só... Não quero mais tocar nesse assunto.

— Ótimo! — disse Iara a abraçando, mas a garota prosseguiu com ombros caídos e cara emburrada. — Agora mais do que nunca temos que estar unidos, sim?

Núbia assentiu de leve, mas apesar de gostar de Iara não esqueceu-se do que ela fez com aqueles dois pescadores, sem contar que não estava com cabeça para nada, muito menos para um reencontro feliz.

— É, mas... Se não se importa quero ficar sozinha no meu quarto agora.

Iara se afastou e suspirou.

— Claro... Quem sabe seja bom para você pensar. Vai querida, descanse.

Núbia assentiu e subiu as escadas, antes de entrar ela fitou Edgar e acenou com a cabeça para ele que a correspondeu da mesma forma, depois se trancou no quarto e foi até a cama.

Ela agarrou as próprias pernas e enterrou o rosto nos joelhos, querendo somente silêncio e escuridão.

Porém, sentiu um calafrio, que inicio pensou ser somente Thayna andando pelo quarto, mas logo sentiu também um toque quente em seu ombro e um perfume extremamente familiar. Imediatamente ela levantou a cabeça e fitou o próprio reflexo no espelho que ficava na parede do lado contrário a cama, e o que viu ao seu lado fez seu coração quase parar.

Aquela mulher pálida, com um sorriso gentil, toda de branco e com a cabeça raspada estava sentada ao lado de Núbia e fitando a garota com ternura.

— Tia — disse Núbia, baixinho.

Rita de Elis acariciou os cabelos de Núbia, mas ela infelizmente não sentia seu toque.

— Minha querida, enfim pode me ver— disse ela com uma risadinha.

— Como... O que... Faz aqui?

— Eu prometi que cuidaria de você para sempre, não prometi?

Núbia conseguiu abrir um pequeno sorriso.

— Estou tão confusa tia, não sei se o que estou fazendo é o certo, não sei quem é confiável ou não.

Rita deu de ombros.

— Nunca há como saber quem é de confiança até ela nos provar seu valor, minha querida, infelizmente à única forma de acertar é errando.

Núbia assentiu de leve, mas prosseguiu cabisbaixa. Rita então curvou a cabeça para vê-la melhor.

— Olhe para mim — pediu ela.

A Cabrall tentou fita-la, mas vê-la daquela forma só a fazia lembrar de que estava morta.

— Eu... Não consigo, você está aqui, mas sei que está morta e eu não consigo pensar nisso.

— A morte não é o fim Núbia. Olhe para mim, não sinto mais dor, não sinto mais medo. Mas só estarei tranquila quando souber que você está bem, sua felicidade é a minha paz.

— Não consigo ser feliz sabendo que você se foi! — disse Núbia batendo na cama. — Você é minha mãe, sem você me sinto tão... Vulnerável.

— Você é forte minha querida, foi forte junto a mim nos dez anos em que fiz tratamento contra o câncer, esteve do meu lado mesmo sendo só uma criança. Você é muito forte, acredite nessa força, e antes de tudo, confie em si mesma.

Rita se esticou e beijou a testa de Núbia, o que de alguma forma lhe deu uma imediata sensação de paz. Ela fechou os olhos com um sorrisinho e quando abriu novamente Rita não estava mais lá.

— Obrigada — murmurou Núbia em um suspiro.

...

Na sala, Edgar estava sentado em sua poltrona enquanto Iara no sofá acariciava Noite em seu colo, ambos em silencio pensativo. Logo o casal se fitou.

— No que está pensando? — disseram juntos.

Iara soltou uma risadinha e Edgar também conseguiu sorrir um pouco.

— Será que Núbia vai mesmo esquecer o tal Cícero? — comentou Iara.

— Esperamos que sim.

Iara assentiu ainda pensativa.

— Edgar... Mesmo depois de trancar o demônio em Cícero, você ainda se sente manipulado pelo capuz?

Edgar não pareceu gostar da pergunta, mas respondeu mesmo assim.

— Ás vezes acho que sim, mas pode ser paranoia minha. Mudando de assunto, tem algum plano para acabar com essa revolta da vila?

Iara sorriu maldosa.

— Bem, sempre soubemos que isso poderia acontecer, por isso durante esses anos juntamos provas dos crimes de Jorge Montes. Agora é só usa-las.

— Sim, convencer o povo a odiar Jorge será fácil, difícil será conquista-los, traze-los para nosso lado.

Iara se curvou apoiando-se nas pernas dele ficando com rosto próximo ao de Edgar.

— Conquistar pessoas é meu meio dom, querido.

Edgar sorriu de canto.

— Eu sei.


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Notas finais do capítulo

Quero convidar você, leitor lindo do meu coração, a curtir a página no Facebook sobre Folclore Oculto. Link: https://www.facebook.com/folcloreoculto/
Beijos da tia Ju e até a próxima.



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