O despertar escrita por Tha


Capítulo 2
II – Lutando contra o que?


Notas iniciais do capítulo

Opa, tudo bom?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/723217/chapter/2

Fu.gir: sf. Afastar-se; distanciar-se de uma situação de perigo, de alguém (eu) ou de alguma coisa ameaçadora (eu de novo)

Antes

— Hoje tem esquenta – Clove se apoia no batente da porta da minha sala de aula e cruza os braços – A gente vai né?

— Claro, vou ver com o Jason se ele tá livre da academia essa noite.

— E vocês... opa aí, desculpa – Um cara quer entrar na sala e ela se afasta um pouco – Vocês estão numa boa?

— Isso foi semana passada, acho que exagerei um pouco.

— Amiga, ele estava tendo pensamentos promíscuos com a ex dele, que por acaso, tá morta.

— É, meio tenso mesmo – Coço a cabeça – Você que é a perita em mentes e tal, conversa com ele.

— Qual delas é a Amberly?

— Ela foi enfermeira na guerra, se apaixonaram na ambulância, você sabe, amores épicos. Na hora que fez dezoito algum manifestante cortou a garganta dela.

— Credo, que horror.

— Destino é uma merda – Franzo os lábios e sopro a franja que caiu no olho.

— Você nunca me disse como tá lidando com isso, com as vozes, as visões, saber que seu namorado já teve umas... cem antes de você.

— Estou lidando ao estilo Allyson Hale, o que não vejo, não é problema. E enfim, elas são eu, de alguma forma esquisita. Além do mais, é estranho, mas não escuto mais as vozes, sei que deveria me preocupar, mas estou aliviada – Sorrio checando se minha garrafa está bem fechada para não exalar o cheiro de ferro, que para uns é horrível, mas para mim é como os aromatizantes que meu pai costumava colocar no carro – Que dia Miriel volta com Kyla? – Queria urgente mudar de assunto, não queria admitir que sim, Jason já se apaixonou mais vezes do que eu posso contar enquanto eu tive apenas um namorado por três anos porque era feia demais antes disso até para beijar alguém em alguma festinha.

— Acho que amanhã, Miriel tem que resolver questões com Riverland. Tenho que ir para a minha aula, e parar de atrapalhar seus colegas de classe. Vai ficar bem?

— Vou sim, pode ir, além do mais – Balanço o celular na mão – Para que servem essas coisinhas? É sério, eu tô bem.

— Ok então, te amo.

— Também.

Sorrio, mas quando ela sai, eu respiro fundo, tentando controlar as mudanças de humor que estão chegando cada vez mais rápido. Me sento na parte mais alta do auditório e puxo o sangue por um canudo. É isso, mais um dia de faculdade, normalidade. Já enfrentei coisas piores, então vou conseguir isso também. Por ela.

♕♕

— Esquenta? – Jason pergunta enquanto mexo na espuma da banheira – Mas o que é isso?

— É uma festa pré jogo – Ele entra na banheira e lhe dou um pouco mais de espaço – Eles acendem uma fogueira bem grande e falam mal do outro time que vai jogar mais tarde.

— É bem... universitário.

— Sim – Rio e me inclino pra arrumar o cabelo dele – Nós vamos?

— Certeza que não quer ficar aqui? Eu faço tudo o que você quiser – Jason sorri e juro que repenso minha decisão.

— Obrigada pela carona, aliás.

— Toda vez que te busco fico na esperança de que você veja o quanto essa casa é legal e venha morar comigo.

— Mas e aí, nós vamos? – Ele pega a taça de champanhe em cima da mesinha e me dá, tentando me bajular.

— Não sei não, Flor, não pode ir sem mim?

— Queria que você fosse – Bebi um gole da minha bebida e afundei lentamente na água, deixando somente a boca pra fora, depois abri um sorriso devagar.

— Ei – Ele me chama e apenas me levanto para abrir os olhos – Nós vamos, mas não me force a beber cerveja.

— Não forçarei – O beijo e quando me afasto pra pegar mais loção de banho ele me puxa pela mão e cola o peito em minhas costas – Jason.

— O que? – Ele beija meu pescoço e tento manter o foco na conversa.

— Quando você era um caído, como conseguia conviver com a fome? – Fico mexendo em sua mão, tentando parecer distraída.

— Por que a pergunta?

— Só estou curiosa.

— Tinha amigos que me ajudavam a arrumar sangue.

— E como ficava perto de mim?

— Tivemos pouco tempo juntos, sabe, quando estávamos bem, Adam, quer dizer, Darko, te transformou naquela... Allyson irreconhecível e... enfim, às vezes o desejo me consumia, parecia me rasgar – Jason faz círculos no osso da minha clavícula, me deixando infinitamente mais calma, além de agradecida por não precisar olhar pra ele e me lembrar de tudo o que fiz, que eu matei minha melhor amiga duas vezes – Mas então eu pensava que se te machucasse, morreria, que eu tinha que fazer até o impossível para impedir isso, então eu me controlava com doses diárias pequenas.

— Ah.

— Aquele lugar mudou você, não foi?

— Não quero falar sobre isso.

— Flor, você disse que quase fez besteiras, não sei que tipo de besteiras, mas precisamos falar sobre isso algum dia.

— Já disse que não quero falar sobre isso – Repito empurrando ele, que bate as costas na quina da banheira e geme de dor – Ai meu Deus, ai meu Deus, me desculpe – Me aproximo passando a mão pelos seus ombros molhados – Você tá bem?

— O que é que tá rolando?

— Não tá rolando nada – Sorrio tentando amenizar a situação e o beijo, mas ele segura meus braços e franze as sobrancelhas.

— Allyson.

— Por que a gente não se veste e vai pra Ballard? – Saio da banheira sem me preocupar em me secar ou pegar a toalha para me enrolar. Sei que se ele me ver assim, vai esquecer o que aconteceu.

— Sei o que está fazendo – Jason apoia os braços na borda e não para de me olhar.

— Sabe? – Me viro e arrumo o cabelo para ficar apenas em um lado dos ombros – E está dando certo?

— Com certeza.

Rio e me viro para encarar meu reflexo apavorado no espelho.

♕♕

— Olha só quem resolveu sair da toca! – Clove grita, mais para Jason do que para mim – Já estava me perguntando quando a lua de mel ia acabar.

— Espero que nunca – Meu namorado sorri enquanto fala com todo mundo.

A noite estava fria, mas isso não impediu os universitários de saírem de casa para beber. A fogueira já estava queimando majestosa e os barris de cerveja quase todos usados, a música estava alta o bastante para fazer meus ossos tremerem e isso, pelo menos, era uma sensação boa no meio de todas as outras que estavam me assombrando cada vez mais.

— Tá tudo bem? – Jason sussurra no meu ouvido quando me abraça por trás.

— Claro – Tento não estremecer enquanto estou grudada a ele. Seu calor humano agora é convidativo e irresistível.

Aproveite a noite, Ally, os jogos vão recomeçar— A voz em minha cabeça diz, e se parecia com a voz de...

— Hazel? – Me viro observando todos ao meu redor, todos passando por nós indo até o campo.

Se lembra do último jogo que você foi assistir? De como Jason pareceu assustador?

— Onde você está?!

— Flor? – Jason segura meu pulso quando estou prestes a correr.

— Ela está aqui.

— Quem?

— Hazel. Ela está aqui, eu posso... eu posso ouvir.

— Ally, é sério – Clove toca meu ombro – Isso já tá passando dos limites.

— O que já está passando dos limites? – David chega com uma lata de cerveja na mão.

— Essa obsessão em manter a Hazel aqui.

— Eu ouvi a voz dela! – Grito de novo, com mais ênfase dessa vez, fazendo todos se virarem para mim: Jake, Nick, Kaleesa, e até alguns rostos distintos andando perto de nós.

— Flor, ela morreu, você tem que aceitar – Jason afaga meus ombros.

— Eu vou levar ela para o dormitório – David anuncia e pega minha mão.

— Eu mesmo levo – Jason cerra os dentes.

— Deixa – Digo com um olhar de súplica pra ele.

— Flor... ai meu Deus, Ayla?

— Tudo bem, já chega – Digo – Ou você para de ficar vendo suas antigas namoradas, ou isso não vai dar certo, definitivamente.

— Olha ela lá – Jason me puxa e aponta para a multidão.

— Me solta.

— Mas ela tá lá.

— Cara, solta ela – David se aproxima e de repente o silêncio reina entre nós. Ninguém sabe o que dizer. Eu não sei o que dizer. Então me deixo ser levada pelo David – Você tem que se controlar, Rainha do Baile.

— Estou tentando, juro que estou.

— Tente mais um pouco, tudo bem? Só mais um pouco.

— Só não consigo... conviver com a culpa – Uma lágrima chega sem aviso, e depois outra. Então paro no meio do caminho e me viro para ver como estão todos – Não sei o que vou fazer se machucar um deles. Ela devia ter me dito como lidar com isso ao invés de me dar ordens.

— Não precisa ficar aqui – Ele me abraça e me sinto melhor – Não precisa sofrer assim.

— Ela me pediu que...

— Hazel tá morta, Ally, você tem mesmo que aceitar. Sei que as vozes estão ficando piores porque você é Jaguar, mas...

— Só vamos pro quarto, não posso encarar Jason por hoje, não se o machucar.

Agora

— Você quer um chá? – Pergunto quando Clove deixa a bolsa em cima do sofá.

— Quero te levar de volta pra casa.

— Sabe que não posso voltar – Coloco água em uma chaleira e ligo o fogo – Sabe que se eu voltar, ela vai me caçar, vai acabar com a minha vida, tudo isso que eu construí...

— Toda essa mentira, você quer dizer – Ela tira o casaco também e larga em cima da mesa de centro.

— Não é uma mentira, tenho uma vida aqui, uma vida de verdade onde ela não pode se intrometer.

— Você está com tanto medo que nem consegue dizer o nome dela.

— Eu não tenho medo, Clove – Me viro já farta de toda aquela conversa – Eu não sinto nada. Sabe o que é isso? Sabe o que é não sentir remorso, medo, amor?

— Foram quatro anos! – Ela grita e abre os braços – Quatro anos nessa sua fantasia. Você tem que voltar, Jason precisa...

— Jason morreu pra mim.

— Você não quer realmente dizer isso, Allyson, você pode ter pintado o cabelo, arrumado amigos novos, mas não se esqueça que você tem um passado. Um passado onde você se preocupava com as pessoas que amava, com ele.

— Um passado onde ele desiste de mim não é um passado que eu queira relembrar – Desdenho e me volto para o fogão, colocando as duas mãos espalmadas em cima do balcão e respirando o mais fundo que consigo.

— Você é a única...

— Não diga essa palavra – A interrompo no meio da frase e o silêncio reina novamente. Até meu celular tocar – Oi Cam, não posso...

— Já saiu? Sabia que devia ter esperado você, ouça, sobre aquela nossa conversa, fui um idiota, vem para a festa.

— Não vou poder ir hoje, uma... colega antiga veio me fazer uma visita.

— Traz ela também! – Cameron grita por cima da música e rio imaginando ele bêbado no banheiro da casa dos Sigma.

— Vou ver o que posso fazer.

— Isso aí gata!

— Quem era? – Clove pergunta de braços cruzados.

— Meu colega de quarto – Jogo o celular em cima do balcão – Quer ir a uma festa?

— Só se você tirar esse óculos horroroso.

— Vem, pode usar uma das minhas roupas – Consigo colocar um mínimo sorriso nos lábios e sigo para o banheiro. Talvez se Clove ver o quanto estou bem aqui, ela desista de me levar de volta a Ellicot.

A casa estava lotada de universitários bêbados e suados pulando ao som de alguma música eletrônica. O DJ tinha um copo ao seu lado, no qual ele bebia algo desesperadamente, deve estar chapado. Havia barris de cerveja espalhados e um balcão de destilados na cozinha.

Sempre fui uma garota festeira, a música ensurdecedora, os corpos girando, os sorrisos inebriados — isso era meu estilo. Mas hoje em dia minha noite de sexta ideal seria em casa, aconchegada no sofá, assistindo a uma comédia com Cameron. Previsível, comedido... normal. Com vinte e quatro anos e um apartamento aconchegante no centro de Nova Iorque, comprava roupas no outlet da Forever 21 e gastava boa parte da grana que minha mãe mandava no iTunes; o normal e eu finalmente conseguimos nos entender. Até meu passado bater na minha porta usando roupas de grife.

— Podemos conversar? – Ela pergunta me cutucando enquanto adentro ainda mais na casa da fraternidade.

— Agora não.

— Allyson...

— Cam! - Grito para o moreno e aceno com a mão. Ele está com Vanessa e Tamara.

— Vem aqui! – Grita de volta, claramente bêbado.

— Oi, gente, essa é a Clove. Clove, esses são Cam, Van e Ta.

— E aí – Clove parece a vontade, mas sei que algo a está incomodando muito, sei também que esse algo sou eu e minha "missão" em Ellicot – Precisamos mesmo conversar.

— Bebe um pouco, Clove, tá parecendo até a Ally quando chegou aqui – Tamara empurra um copo azul em direção à minha amiga e ela se assusta um pouco com a facilidade da Ta em persuadir as pessoas.

— Se forem falar sobre aquele assunto – Cam sussurra perto de nós e segura nossos braços, nos levando direto para o jardim – Eu quero saber.

— Mas o que...

— Cam faz parte de um dos grupos da resistência – Explico antes mesmo de ela completar a frase. Falar a palavra "nephilim" pode ser um pouco comprometedor, e minha magia já está fraca ultimamente, qualquer um que saiba o que é, vai sentir minha escuridão de longe.

— E eles não estão sendo muito claros ultimamente – Meu amigo resmunga se sentando ruidosamente na grama.

— Nenhum deles é.

— Você precisa parar de fugir – Clove diz sem rodeios – Mexa-se, Ally, precisamos de você.

—Eu acho que já deixei bem claro há quatro anos atrás que não faço mais parte desse grupinho idiota de super-herois, eu cansei.

— Jason está com problemas e você é a única Jaguar.

— Sabe que não sou a única.

— Bom, a outra está com ele.

— Não tenho culpa se ele está com problemas – Dou de ombros e tiro pedaços de grama da minha coxa, parecendo o mais distraída possível enquanto meu coração entra em colapso – Porque ele não pensou nisso antes de me deixar sozinha, chorando, esperneando, desesperada há anos atrás?

— Sabe que ele não teve escolha – Ela pega minha mão mas eu desvio.

— Claro que ele não teve escolha, já olhou pra ela? Se lembra dela?

— Claro que me lembro.

— Então diga, Clove.

— Sei que todo mundo se afastou – Minha amiga diz, mais calma e mansa dessa vez – Mas não pode se esconder pra sempre, meu Deus.

— Diga! – Me levanto e cruzo os braços. Ela faz o mesmo, mas tem um olhar de pena no rosto.

— Allyson... – Cam coloca a mão no ombro, mas puxo com rispidez e franzo as sobrancelhas.

— Não, ela tem que dizer, vive falando que eu tenho que enfrentar. Se liga, Clove! – Abro os braços, começando a atrair atenção demais. Atenção é sempre um problema – Vamos! Porque você não...

— De você! – Dessa vez é ela quem perde a paciência – Está se escondendo de você mesma.

Sorrio e bato palmas enquanto Clove suspira pesadamente e coloca as mãos na cintura.

— Jason me trocou pela única pessoa que ele nunca poderia trocar – Acuso – Aquela Allyson, aquela que tem exatamente a minha cara, que faz tudo como eu, só que melhor, aquela que tem nas mãos todas as ex namoradas dele. Então, nossa, me desculpa se decidi recomeçar em um lugar onde as pessoas não sabem que eu sou e não têm medo de mim e dos meus surtos psicóticos.

— Você é Allyson Hale – Clove se aproxima – Você é a única Jaguar da Terra, você é a Filha da Profecia, você é minha melhor amiga. Você não foge dos problemas, você come eles no jantar. E você vai tirar essa tinta do cabelo, fazer as suas malas e vai voltar comigo para Ellicot e resolver essa merda. Ou eu não me chamo Clove Farley.

— Acho que vai ter que trocar de nome, porque eu não quero enfrentar isso demais – Aperto os lábios, sigo para dentro da casa e roubo o copo de alguém.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O despertar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.