DeH; Arcaia escrita por P B Souza


Capítulo 7
PARTE II; Capítulo 6: O Retorno e a Joia em Chamas




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Deixar Kaagham foi fácil, mas o caminho não lhe trouxe misericórdia, pois a culpa habitava seus pensamentos como o frio habitava a Ilha da Garvia. E toda nevasca lhe trazia a dor de ter destruído a maior das cidades que já conhecera naquelas ilhas, e condenado seu povo às ruínas. Não queria, claro, se culpar por aquilo. Sabia que as consequências das ações dos outros não recaiam em seus ombros, mas a vida de inocentes pesava em sua consciência indiferente de quem fossem os culpados.

Não retornou pelo que caminho que havia feito, pois sequer sabia aonde estava no meio daquele tormento gelado. Os tremores não eram as únicas consequências de suas ações, pois as tempestades se tornaram mais fortes e violentas, atacando Kaagham como se a própria natureza almejasse Vrynfahr para si. Mas o poder de tal arma barrava qualquer tempestade que viesse para Kaagham.

Arcaia, porém, partiu para sudoeste, contornando as montanhas da Garvia pela faceta Oeste, ao passo que havia vindo pelo lado Leste das montanhas, junto ao Altar do Servo. Por aquele novo caminho teria caído em perdição, pois ao encerrar as montanhas um grande vale se mostrava para leste e ela teria seguido, pois estava exausta demais para se lembrar que no final do Vale Verduro se encontrava o Lar do Gigante.

Foi quando antes da noite veio tempestade tão forte quanto se podia imaginar. Arcaia estava deitada junto de uma pedra e acordou com o vento lhe puxando, assim como puxava a pedra. No horizonte via a nevasca retumbar das montanhas da Garvia, vindo em sua direção como uma onda gigantesca de vento, neve e frio. E quando chegou, Arcaia nada pode fazer. Seus pés saíram do chão, suas mãos tentaram em vão agarrar-se em algo, mas nada além de vento passava por ela. Os olhos não conseguiam se manter abertos no vendaval com a nevasca e ela estava sendo jogada no ar como folhas lançadas de um telhado e levadas pela brisa. Seus gritos nem mesmo ela escutava. Como poderia? O vento uivava bem mais forte. E quando caiu no chão, junto caiu a neve, e lutou para não sufocar em desespero quando foi soterrada em fria e macia neve.

Cavava em desespero, subindo ou descendo. Para onde estou cavando? Não possuía mais senso de direção, só se sentia presa com neve em baixo e em cima e dos lados e o ar, escasso, parecia não ser o bastante para seu pulmão.

Estúpida. Pensou, fechando os punhos. Não precisava cavar. O desespero havia tomado o melhor dela por tempo o bastante. Lrafhar correu pelos seus dedos em um segundo, e no segundo seguinte a neve se derreteu, mas tão quente se tornou que a água não chegou a lhe molhar, pois evaporará em um único instante enchendo o ar de vapor e Arcaia estava afundando conforme a neve acumulada derretia e seus pés então encostaram no chão da Ilha da Garvia. Na própria terra.

E havia, na sua frente, o caminho livre. E para frente andou sem sequer saber, até o sol nascer para onde andava. No amanhecer pode ver que o chão ao se redor era repleto de ossos cadavéricos de corpos ainda conservados, de homens como de animais, conservados pelo frio extremo de Vrynfahr em Kaagham.

Arcaia usou o Lrafhar para abrir caminho aos seus passos até chegar na costa. E ali estaria perdida, entregue aos desígnios do destino se dependesse ainda do acaso para completar sua viagem.

— Teria me jogado ao mar e nadado até a exaustão. — Disse para ninguém, pois havia cruzado a ilha toda, até o Campo dos Grandes. Sabia que mais ao sul encontraria a Primeira Luz, um povoado ao redor de um pequeno bosque, mas não queria encontrar mais ninguém. Então sem mais, abaixou uma das mãos e ergueu a outra, e Lrafhar silenciou para dar espaço à Vrynfahr, e o calor se tornou frio e a areia se encheu de gelo e as ondas quebravam em neve e Arcaia andou sobre a água e a cada passo água se transformava em gelo de seus pés até a base do mar, congelando tudo que havia no caminho, fosse peixe ou tubarão.

E estes dias, a mingua enquanto atravessava o Mar Ébrio, Arcaia usou para se punir. Sozinha atravessou o mar em seu caminho de volta para a Ilha Magmun, refletindo sobre o que havia feito em Jhar Maar Kaagham e como aquilo repercutiria em sua história, pois sabia que sua aventura, sua vida, sua existência, seria contada para gerações por vir. Então decidiu se punir na solidão também dos pecados que cometeria ao dizer aqueles que perguntassem que sua ida para Kaagham era também para trazer justiça a um povo impregnado pelas mentiras de homens que se achavam dignos de uma imortalidade fajuta, e, por isso, não houve opção se não punir a todos pelos erros da Guilda dos Estudiosos, pois era ela futuro e consequência.

E não importava o quanto lhe perguntassem, essa seria a história que diria, pois daquele momento para frente, aquela era a verdade de Arcaia.

Apenas trinta e nove dias após deixar Kaagham que Arcaia chegou na costa da Ilha Magmun, nos berços de uma civilização ainda tão acanhada que parecia inocente até mesmo nas escolhas, desprovidas de malícia.

Aquele povo que encontrou, não sabiam falar a língua que ela falava, e os balbucios que eles mesmos pronunciavam, Arcaia jamais havia ouvido antes. Tomaram-na por divindade, isso ela tinha certeza, pois chegará caminhando sob o mar que congelava para ela, e então fizera fogo das próprias mãos e espantara o frio que trouxera consigo.

Naquele povoado que surgia, ainda desprovido de construções em rocha como Kaagham, ela foi acolhida, mesmo sem trocar uma única palavra, e a ela ofereceram de tudo que tinham e saíram para caçar. E Arcaia estava tão carregada de culpa por Kaagham, que não suportou comer nada que lhe ofereciam, mesmo fazendo dias que de nada se alimentava. Seu corpo era magro e seus ossos podiam ser vistos, grosseiros como se fossem lhe rasgar a pele.

Mesmo assim, não se sentia fraca, pois alimentava-se do véu e da energia deste, se alimentava daquele poder que jamais cessava. E o poder se alimentava dela.

Negou então a comida, e partiu daquele lugar que nunca soube o nome logo na madrugada quando todos foram dormir em suas casas de madeira, mas jurou ao deixar suas fronteiras que jamais retornaria ali e jamais permitiria que seu império ali chegasse, pois queria preservar aquele povo puro, tal como eram. Mas se aquele povo um dia perdesse a inocência por caminhos que não conduzissem a ela, e após se tornarem vis, buscassem confronto, Arcaia não hesitaria em destruí-los.

Então notou aonde estava; era a Floresta de Eregriam (que mais tarde seria chamada de Mata Cinzenta no seu começo ao Sul, de Floresta do Chavelho ao Oeste nos Tentáculos e de Floresta do Sempre Cinza ao Leste, no começo da Cordilheira Fim do Lahra, que era aonde Arcaia encontrou tão isolado vilarejo).

A composição geográfica da ilha ainda mudaria muito no decorrer do Império Magmun, mas suas bases estavam definidas para toda a Eternidade indiferente dos nomes que os homens dessem. E Arcaia havia decorado cada um dos locais.

Atravessar a floresta lhe tomou mais dezenas de dias, mas foram os melhores dias da viagem, pois encontrou paz entre a vida selvagem e encontrou equilíbrio. A solidão lhe dava espaço para pensar, e toda vez que caia nas lembranças, abstraia das memórias algo para refletir, aperfeiçoar e aprender. Fosse algo bom ou ruim.

Dormiu encostada em árvores, comeu das raízes e de caça fácil, fez fogueiras pequenas, e bebeu de córregos e nascentes até que a floresta acabasse em um campo verdejante sem fim, repleto de rochas grandiosas saindo pela terra criando formas infinitas as quais Arcaia gostaria de apreciar uma a uma, mas enquanto o lado aventureiro de seu ser prezava pela visão que seus olhos contemplavam, Arcaia tinha de conciliar também seus interesses políticos com seus planos.

— Meu tempo se esgota, não devo me prolongar aonde não há necessidade.

Na mente de Arcaia, os planos para a completar sua promessa tomariam mais tempo que o tempo que lhe restava. Sequer sabia se conseguiria de fato entregar sua promessa completa em sua totalidade, mas se falhasse, ainda assim entregaria como se completa, e encerraria os detalhes finais depois, em segredo. Serão invisíveis aos olhos de todos de qualquer forma. Pensava ela, enquanto avançava pelas campinas verdejantes que muitos ciclos depois seria chamada de Planície Vermelha, pois nada sobraria além de securas pedras e terra infértil, seca e habitada por nada além de vento quente e piratas da terra.

Arcaia prosseguiu até encontrar um oásis nas pedras, como uma enorme cratera, a pedra mergulhava para o interior da ilha descendo rumo a um lugar aonde ruínas de uma civilização aguardavam ser redescobertas. E Arcaia não precisou de muito esforço para lá descer, pois haviam rampas de acessos, como vias, aonde carruagens poderiam facilmente trafegar. Havia espaços amplos abertos nas rochas, cavernas, haviam casas talhadas na própria rocha, e no final, entre as cachoeiras do oásis e a própria água, havia uma ilha no meio da cratera. E na ilha nada havia além de um jardim que crescia selvagem sem o cuidado do homem. Mas no chão haviam homens, seus corpos restavam de prova de sua existência ali, e também haviam, lá e cá, pegadas gigantescas, tal como sombras negras jogadas contra as paredes da enorme cratera, como se grande incêndio tivesse ocorrido ali, mas em tempo imemorável.

— Dragão. — Arcaia reconheceu, enquanto chegava ao centro da cratera, ao centro da ilha isolada. E ali havia uma única placa de rocha cravada no idioma Erah, a mais antiga das línguas. — Autaká. — Ela leu o nome no topo, a caligrafia lhe era estranhamente familiar. — Não fizeste isso, Hirxun. Pensei que fosse brincadeira. Esqueci-me; anciões não possuem senso de humor.

Arcaia abriu um sorriso àquilo olhando a placa com o nome dos cinco anciões; Qeomon, Gaudun, Hirxun, Amoheux e Vainihr. Mas ali eles eram retratados como os cinco irmãos demoníacos que criaram os Tanniyn, as quimeras, as melusinas, os dragões e os humanos. Das cinco criações, dos cinco monstros enviados para habitar as ilhas, haviam sobrado apenas dois; dragões e humanos. Gaudun e Hirxun estão disputando pela glória eterna uma vez mais? Se perguntou se lembrando dos anciões e como com eles aprendera.

Mas ali, Autaká, era a prova da interferência deles. Da interferência direta dos anciões na vida de todos eles. A própria religião puritana que regimentava o mundo quando Arcaia fora tirada de seu lar, sequestrada, arrastada como escrava e teve sua vida destruída, era derivada daquele pedaço de pedra que os anciões escreveram há milhares de ciclos atrás.

Ao pensar na ironia, Arcaia sentiu-se tola, vítima do acaso, mas sem jamais ser imprevisto. Os anciões haviam, desde antes, sem sequer eles mesmo saberem, definido seu destino para tragédia. Vocês arruinaram minha vida antes mesmo de minha família existir.

Uma lágrima rompeu do seu olho esquerdo enquanto os seus lábios se abriam em uma risada cheia de dor com as lembranças invadindo seus olhos como visões que não são bem-vindas.

Em Ipeiros, do outro lado do oceano, ela havia aprendido que a primeira religião das ilhas era uma invenção dos anciões para instaurar ordem em uma sociedade que se dilaceraria se não fosse mantida sob controle.

— O homem jamais saberá como se portar, Arcaia. Por isso existimos. Sempre haverá a necessidade de algo superior ao homem puxando as cordas das marionetes, ou seria caos. E no Caos o Monstro retornará. — Vainihr, um dos anciões, havia lhe dito. — Mas cuidado, das sombras, um mestre inteligente pode controlar todas as marionetes sem jamais ser descoberto. No entanto, um fio que se puxe demais, a marionete arrebentará, e então estará livre de seu controle, e uma vez livre, ela poderá libertar outras, e recaímos no Caos.

— O que quer dizer, Ancião? — Ela havia perguntado.

E àquilo Vainihr fechou os olhos, pensativo.

— Quero dizer que o homem precisa ser controlado, mas jamais aceitará o ser. Livre, causará destruição, mas jamais se subordinará, nem mesmo a nós. E o pequeno fio de controle que possamos ter está, a todo instante, prestes a se romper. Arcaia, achas que lhe controlo? Ou achas que rompeste seus fios?

Quando Arcaia abriu os olhos, a placa estava na sua frente e as lembranças ainda lhe assombravam.

Vainihr havia sido mais que seu anfitrião enquanto fora feita cobaia no Castelo Negro. Ele fora um amigo quando não precisara, e havia lhe contado o que ninguém jamais contaria. E agora ela via, agora, olhando para aquela placa de rocha sólida Arcaia via centenas de milhares de fios pensos do céu, controlando cada um dos homens por todas as ilhas. Ilusões de liberdade, de escolhas.

E o pior de tudo. Sob sua cabeça ela via um fio tensionado, prestes a estourar.

— Puxou demais, Vainihr. — Ela disse, temerosa de se libertar. Pois temia como seria ser livre.

A ideia de sua vida toda ter sido controlada podia soar assustadora, mas soava também acalentadora. Era a segurança de que havia um plano. Tomar as rédeas significava criar seu próprio caminho.

— Os homens precisam de alguém para puxar os fios. — Ela repetiu suas lembranças. — Por que não pode ser eu?

Aquela rocha dava início a religião, guiando os homens nas diretrizes básicas de uma sociedade. A frase que abria o texto dizia: “Do âmago da terra saíste os monstros que habitam esta terra onze vezes maldita. Em esperança de manter puro o paraíso que descansa em esplendor do outro lado do horizonte, a terra foi inundada, e assim nasceu os mares, isolando a terra maldita que pisam da terra pura aonde a paz eterna aguarda os dignos. É de ti e dos teus o dever de expurgar a maldade para redimir seu povo dos erros de outrora. E quando a maldade for expurgada e a terra for limpa, os mares se secaram e serão bem-vindos nos reinos de eterna paz”.

Para Arcaia a piada era não apenas de mau gosto, mas também uma mentira. O texto indicava Ipeiros como o paraíso, mas tal continente era mais infernal que ali e os anciões sequer conseguiam controlar o povo de lá. Mas aquela rocha havia assegurado duas coisas; um objetivo claro com uma recompensa no final, e um mestre para seguir. Era o nascimento de uma religião.

E dali, Arcaia temia, teria se difundido duas vertentes que resultaram na Religião do Dragão que os Kognar apoiavam, e a religião Puritana, na qual ela fora criada.

Arcaia queria entender, queria rever tudo para entender até onde sua desgraça era culpa das criaturas que haviam também lhe salvado.

Dezenove ciclos antes de seu nascimento o Império Magmun havia atacado o Reino de Vetra, que seguia a Religião Dragão sob comando dos Reis da casa de Vertram e Kognar.

Arcaia crescerá então em um país corrompido por temores de uma invasão em resposta.

E foi então, em 2184 da Segunda Era, quando Arcaia possuía apenas 13 ciclos, que o Reino de Vetra invadiu a Ilha Magmun e o Império Magmun, trazendo destruição para todos os Puritanos em forma de vingança.

Durante a guerra Arcaia morava sozinha com sua mãe, pois seu pai havia sido convocado para servir no exército real. E ela era uma boa moça, cuidava da fazenda junto de sua mãe, ordenhava as vacas e colhia os cereais sempre que necessário. Mas do que isso importava?

Quando o exército de Vryul Kognar, um dos generais do Rei Jeryin Vertram, chegou, Arcaia viu sua mãe se pôr na sua frente, implorando para que não a fizessem mal. E viu sua mãe cair morta com um corte do ombro a barriga e sangue lavando o chão.

— Prêmio de guerra. — Ela disse ao se lembrar das palavras que Vryul disse sobre sua condição ali.

Fora feita prisioneira então, levada para o acampamento e estuprada incontáveis vezes pelo próprio Vryul que alegava, sempre, sentir saudade de sua esposa, e dizer que Arcaia a lembrava de sua esposa. Por esta razão também ele demorou para entregar Arcaia ao seu rei. Mas ainda assim o fez.

Arcaia sentia-se morta já nos primeiros dias, pois sequer lhe foi permitido velar sua mãe, e o corpo ela nunca soube o destino. Ainda naquela época, Arcaia passou para as mãos de Jeryin Vertram, o Rei que organizará toda aquela ação, que fora financiada com moeda Kognar.

Quando na frente do Rei, Arcaia ainda tentou pedir, mas nada conseguiu. Descobriu que a Religião Dragão era movida por desejos da carne, não por esperança e bondade, e que dali nada teria além de dor. Descobriu naquele acampamento militar que os Vertram, tal como os Kognar, não possuíam nada de bom. Uma nação depravada sem propósito para existir se não pilhar, estuprar, matar e recomeçar o ciclo em qualquer outro reino de bem. Qualquer outro reino Puritano.

— Meu imperador estava certo em tê-los atacados. O único erro foi a misericórdia de não os ter destruído. — Arcaia disse se lembrando da noite em que escapou das garras de Jeryin.

O acampamento fora atacado por piratas sorrateiros e ateístas, adoradores de ouro e, portanto, incapazes de verem valor na vida das pessoas. Arcaia fora então raptada enquanto o Rei Jeryin fora degolado. Levada para um navio aonde teve de servir de objeto de prazer mais vezes até se sentir tão enojada do próprio corpo que tentou se matar, mas não encontrou coragem para afundar a faca no próprio peito.

Pega em flagrante, foi acorrentada ao mastro como punição, e chicoteada. E naquele dia implorou que se existisse justiça, que aqueles homens fossem punidos, pois ela nada fizera para merecer tamanha provação. Qual era o sentido de tamanha dor para uma simples menina?

Arcaia nunca entendera, nunca até aquele instante, olhando a rocha de Autaká.

Ainda no navio, naquele mesmo dia, uma tempestade levou a embarcação a pique. Homens foram jogados para fora, engolidos pelo mar revoltoso, até que o próprio navio afundasse, e Arcaia, presa ao mastro, se afogasse nas águas de um mundo que desconhecia só para acordar sob a ponta da espada de uma criatura trevosa que servia a mestres ainda mais negros.

De alguma forma havia sobrevivido a todas aquelas provações e ao ser naufragada, sobrevivera também ao afogamento. De alguma forma havia também flutuado até a costa de Ipeiros. Aonde cinco entidades de poder infinito lutavam uma guerra milenar contra seus irmãos do outro lado do continente. E para tal luta eles precisavam de um feitiço definitivo; um corpo novo criado sem mãe ou pai. Uma ambição de criar um casulo para a chama da vida. E para isso era necessário primeiro saber manipular a chama da vida.

Os anciões, porém, jamais arriscariam as próprias vidas, portanto precisavam de cobaias. Dezenas de cobaias e Arcaia era apenas uma delas. Viu uma a uma, todas morrerem ao tentarem, fracassarem, desapontarem os anciões. Menos ela.

Havia um motivo para sua desgraça. Havia um motivo para sua história lhe ter conduzido até ali, até o acampamento, até o navio, até Ipeiros, até os anciões, até Hero Magmun, até Jhar Maar Kaagham, até Autaká e aquela pedra que lhe causava tamanha dor.

Sua vida era a maior de todas as vidas, seu destino era o maior de todos os destinos. E estava apenas começando.

— Sem saberem, vocês criaram as circunstâncias que me trouxeram até esse momento. — Arcaia disse se abaixando até a pedra e encostando em sua base. — Eu deveria odiá-los por terem destruído minha vida e a de todas as pessoas que perecem nessas guerras por causa das suas criações mentirosas de falsos paraísos. Mas também me deram algo; me deram o poder de romper as cordas, as minhas, e a de todos do meu império.

De seus dedos Vrynfahr surgiu, e a pedra com os ensinamentos dos anciões perdeu todo seu calor, decaindo em frio absoluto até que se tornasse quebradiça como cristal trincado. Arcaia olhava com olhos vazios enquanto as lágrimas escorriam livres pelas suas bochechas vermelhas de raiva.

Odiava os anciões pelo que haviam feito, mas era grata pelo mesmo motivo, pelo que haviam feito!

Então, com um simplório empurrão, a rocha tão sólida que havia durado milênios e até mesmo dragões, se rompeu em milhares de pedaços amontoados até os pés de Arcaia.

— Vocês serão esquecidos. — Amaldiçoou-os enquanto deixava as ruínas de Autaká. — E nos restos das lembranças de suas histórias, eu me erguerei. Eterna.

Arcaia deixou Autaká desejando nunca mais retornar àquele lugar aonde toda a desgraça havia começado, e desejando nunca permitir que tal lugar fosse novamente habitado. Temia que ali a semente daquela desgraça que os anciões haviam plantado ainda pudesse germinar novos demônios.

Continuou seu caminho, mais certa do que nunca de seu dever e de sua obrigação. Porque sim, era sua obrigação livrar todos daquelas cordas malditas que manipulava-os para a desgraça e ruína. Era sua obrigação livrar todos das cordas dos anciões.

Não havia outro caminho além de uma linha reta e constante para seu destino final. Ali estava a montanha imponente que almejava alcançar, no horizonte, se erguendo em tamanho e imponência, livre de neve no topo, pois era um vulcão outrora. Agora, diziam, era uma caverna vazia.

Arcaia descobria em breve. Mais quarenta e sete dias andando e contornando Lacro Drakavo, ou Vulcão Dragão no idioma atual.

A lenda da Religião Dragão dizia que fora daquele vulcão que o primeiro dragão havia nascido, expelido por lava e fogo, a fera saíra, grandiosa e espalhando terror assim que nascerá. E nascerá porque na véspera uma batalha teria ocorrido no sopé do vulcão e o sangue carregado de maldade dos homens alimentou a terra e as chamas, que regurgitou a maldade do sangue dos homens na forma pura da vilania; na forma de um dragão. E assim eles acreditavam. Os dragões eram representações da maldade dos homens.

Era uma ideia irônica e especialmente cruel para com os Kognar, e ela não resistiu a tal ideia. Encontrou, e mesmo que não tivesse encontrado, teria cavado com as próprias unhas, uma entrada para o cerne do Vulcão Dragão. E lá encontrou a descida para o cerne da própria terra, para o coração da própria existência daquele mundo. De onde vinha a lava, o fogo, e, talvez, os dragões.

Aquela era uma das indagações que Arcaia nunca obteve resposta. De onde realmente vinham aquelas feras? Claro, se reproduziam como toda praga, como os humanos. Mas o primeiro deles… fora Gaudun, fora expelido da terra por maldade e sangue, fora acaso?

Arcaia não se importava realmente com essa resposta, desde que fossem extintos, não haveria necessidade de conhecer suas origens.

Então ali, tão fundo quanto podia descer no coração do vulcão, podia sentir o calor das paredes, podia sentir o calor do fogo que consumia sem piedade. E com um estalar de seus dedos tudo esfriou.

Era hora.

Precisava se separar de Lrafhar. A isca deveria descansar ali, criar um domo de calor insuportável, criar o clima que atrairia todos os dragões como o de Kaagham expulsava-os.

Mas como?

Todas suas tentativas eram infrutíferas. Controlava a magia e a ordenava, mas Lrafhar não saia de seu corpo sem retornar em seguida, e o esforço lhe cansava como se lhe sugasse mais que apenas energia. Foi então que percebeu, revivendo a lembrança de Oric Sirin. Notou que não se separaria de Lrafhar ou Vrynfahr sem pagar o preço.

— Você viverá, será doloroso, mas já suportou dor. Conhece dor. Viverá. E depois retomará o que é seu, você viverá. — Dizia para si mesma na solidão do vulcão.

 

E então podia ouvir a voz de Vainihr como um eco.

 

Naquele dia estavam ele e ela no salão panorâmico de onde Arcaia podia observar toda a desolação que os outros anciões haviam perpetrado contra aquela terra já sofrida que Vainihr e os outros governavam ao Sul de Ipeiros.

— O que fazem é pelo bem do povo? — Ela perguntara então inocente e curiosa.

— Tudo que fazemos é pelo bem maior.

— E isso não seria o bem do povo?

— Você, Arcaia, é o povo. Torturamos tu e os teus, condenamos nossas cobaias a mortes horríveis. — Vainihr explicara então. — Miséria e desgraça assolam o mundo, e tudo que fazemos é não para ver nosso povo sorrir, não importa estes pequenos detalhes com quais vivem os homens simples, pois para nós, anciões, existe uma questão maior, um inimigo maior que a fome ou o frio.

— O monstro...

— Sim. O bem maior é a vida, por pior que seja. Pois quanto mais fordes, menos poderoso ele será. E se fordes não mais, então teremos falhado, e não haverá bem do povo ou bem maior. Nossa história começa e termina com Ele. E por isso fazemos o que fazemos.

— E os outros anciões? Os que combatem com vocês…

— Abordagens diferentes para os mesmos problemas. — Vainihr garantiu. — No final queremos todos a mesma coisa. Assim como você.

— Não sabe o que eu quero. — Arcaia sorriu então, admirada com a presunção do Ancião.

— Quer a vida eterna, pois não é uma mulher ordinária como os soldados que vão a guerra. Nega? — Arcaia se calou ao ouvir aquilo. — Vê, o que aprenderá conosco, caso sobreviva até o final, lhe permitirá viver através do tempo, mas terá um preço. O que ensinaremos não deve usar nunca, Arcaia, ou condenará sua existência às garras do monstro. Prometa-me…

— Não pode pedir isso de mim. — Arcaia demandou.

— Posso pedir, mas não posso te forçar. — Vainihr pareceu lamentar. — Quero-te bem, Arcaia, e lamentaria fortemente lhe ver destruída pelas trevas. Quando os testes acabarem poderemos ainda reverter seu estado original, mas nem mesmo os poderes dos anciões funcionaram para sempre se permitires que as trevas cresçam dentro de ti. Já viveu mais que a maioria, e após os testes viverá mais uma vida inteira em um corpo novo. Contente-se. A imortalidade não é uma benção, Arcaia. Não inveje este que lhe fala, pois eu daria a ti minha condição apenas para findar…

— Então o faça. — Arcaia pediu, ansiosa.

— Se o fizesse, como viveria sabendo que lhe condenei à Ele, apenas para salvar a mim mesmo? — Vainihr soou doravante — Não, querida. Só prometa que viverá, envelhecerá e morrerá. Ou, temo eu, chegará o dia em que serás tão poderosa quanto almejas, mas então não serás mais tu, e o pior; sequer notará.

Arcaia tinha os olhos fechados quando saiu de seu devaneio, e sentindo a respiração fluir segundo a segundo, sentia o ar deixando seu pulmão. És sábio, mas não é perfeito, Vainihr. Está errado sobre mim. E com isso Arcaia abriu os olhos, mas abriu algo mais. Algo profundo dentro de si mesma.

E de seu corpo Lrafhar se soltou, mas junto soltou-se parte de seu próprio corpo. Arcaia cambaleou para trás, sem ar, sem visão, sem sentidos, caindo. Sentia-se beirando a morte enquanto as mãos tateavam o ar em busca de ajuda, sua boca espumava e a baba grossa e espumosa escorria pelo seu queixo conforme se virava e se debatia no chão, em dores infinitas.

Havia sacrificado parte de si mesma para um objetivo maior, para o bem maior. E quando retomou o controle de seu corpo podia se ver destruída. A dor lancinante entregava a verdade de sua condição. Estava morrendo. Se separar de Lrafhar havia custado caro. Havia custado mais do que esperava que fosse. E agora já não sabia se seria capaz de se separar de Vrynfahr.

Se levantou, olhando para aquela arma flutuante, suspensa no salão subterrâneo do vulcão. E então cogitou algo que deveria ter pensado desde o começo; e se um curioso viesse por qualquer caminho que fosse e tocasse Lrafhar, e por qualquer motivo que fosse, seu corpo suportasse a magia e não fosse consumido. Se tal desgraça ocorresse tudo estaria perdido.

— Estou fraca. — Ponderou. — Mas haverá de funcionar. — Não havia tempo a perder. As torres ainda precisavam ser erguidas, seus guardiões escolhidos e o casamento consumado.

Da mesma rocha esbranquiçada, transmutada, de Kaagham, Arcaia transformou os arredores dos salões, paredes, teto, chão. Tudo. Criou paredes daquela pura rocha branca que Oric chamava apenas de isolamento. Pois sabia, nada além de magia podia atravessar aquelas rochas. E magia não era tão facilmente encontrada ali em Magmun.

Mesmo com motivações fortes, nem mesmo Arcaia tinha poderes infinitos, e quando já não aguentava mais, continuou a produzir a transmutação da rocha negra do vulcão para a rocha branca que lacrava os caminhos. E quando terminou já ouvia novamente em sua cabeça a voz forte do Monstro lhe chamando, mas ignorava o chamado.

Lançou um último olhar para aquele mundo subterrâneo, para as colunas que sustentavam o teto do vulcão até seu cume por onde a luz do sol entrava como uma coluna luminosa. Havia espaço o bastante para uma civilização inteira florescer ali. Arcaia podia ouvir água correndo, distante, como se de uma cachoeira, podia ver terra, podia ver rochas, podia ver cavernas e nichos dentro da própria caverna. Se tivesse tempo montaria uma cidade aqui, e seu povo adoraria Lrafhar como uma dádiva, e saberiam o valor da vida e da morte. E prosperariam em harmonia.

Mas não possuía tempo, então com um saudoso olhar de despedida, deixou A Caverna e aqueles planos para o acaso, pois no futuro tal civilização viria a existir pelas mãos não de Arcaia, mas de outrem.

E ela continuou seu caminho para a tarefa final. Era já fim de 2384, e Arcaia tinha seis ciclos para entregar o que prometera a Hero.

E conforme caminhava até a Cidade de Caienu, caminhava sorrindo, estava esperançosa, pois no horizonte já podia ver um dragão vindo para sua armadilha.

Havia funcionado.


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