DeH; Arcaia escrita por P B Souza


Capítulo 6
As Consequências Eternas




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Os salões subterrâneos dos quais Korikmaz havia falado eram reais, mas eram também inutilizáveis.

— Após a ativação eu decidi inundar tudo. — Oric havia dito. — O que não esperávamos era que a água, ao encostar no Vrynfahr, congelasse. Desde então ciclos se passaram, e o gelo continua intacto.

— É o poder canalizado do Vrynfahr. — Explicará Brehan. — Tudo que encosta é consumido por sua energia. Foi também por este motivo que Oric optou por encerrar este lugar.

A primeira ideia que tiveram foram picaretas. Alguns homens fortes e algumas ferramentas e todos eles tentaram, mas quando as picaretas batiam contra o gelo, suas pontas se congelavam, e sem notar isso, na pancada seguinte, as pontas se partiam. E assim estragaram mais de trinta picaretas até que desistissem daquele método, pois era infrutífero.

Quando mãos nuas tentavam encostar no gelo, também eram congeladas e dois homens tiveram que amputar seus indicadores.

Não havia formas de quebrar o gelo, pois o mesmo congelava tudo o que tocasse em sua superfície até estado quebradiço da matéria.

— Descartem as picaretas. Peguem baldes. — Arcaia pediu para aqueles que se voluntariaram a ajudá-la, o que não foram poucos, mas destes Oric selecionou poucos.

Em sua companhia estavam Oric, Brehan e Ozdes, além de Agirfut, que ia e vinha prestando-lhe serviço. Também aprendeu, com isso, que Kaagham ainda tinha mais de dois mil habitantes, porém espalhados e a maioria habitando na costa da cidade, junto ao mar do Norte que sequer possuía um nome e além dos limites era também congelado. A cidade também possuía quarenta soldados do desfeito exército que um dia tivera e oito navios mercantes equipados com os canhões desenvolvidos ali, mas sem pólvora para serem utilizados.

Arcaia ainda via grandiosidade ali, mas também notava que Kaagham abraçara a imortalidade com braços frouxos e decaia lentamente. A cidade morria a ponto que, um dia, sobraria nada além dos Estudiosos ali.

— Agora, não temam. Pois assim como Vrynfahr é fruto de magia, apenas magia poderá abrir caminho até ele. — E com isso Arcaia esticou as mãos e tocou no gelo.

E o gelo, antes tão absoluto quanto metal, derreteu sob seus dedos, e a escadaria se tornou acessível, e Arcaia adentrou na água gelada ainda com fragmentos de gelo boiando enquanto mais e mais derretia, e ela sentia correr pelas suas veias a energia que provinha do véu, a energia que não deveria usar, que fora alertada pelos anciões para não usar. “O caminho do poder não te levará a lugar nenhum que não ruína. Se tiver de usar, faça-o com prudência, mas se fordes sensata, preferirá a morte às trevas que vem com esse poder”. Eles haviam lhe dito.

Mas Arcaia não preferia a morte, preferia concluir seus planos, e para tal precisava daquilo, precisava de Vrynfahr, precisava derreter o gelo.

E assim, dia após dia, eles tiravam a água com baldes, iam embora e o gelo tornava a congelar, mas em nível mais baixo. Apenas para no dia seguinte retornarem ao trabalho e Arcaia voltar a entrar no gelo que se transformava em água e então retornavam para suas casas para se esquentar, e no dia seguinte retornavam ao gelo das cavernas abaixo da cidade. Até que, em mais de oitenta dias de trabalho, o gelo havia sumido, e a água que sobrará chegava apenas aos tornozelos, não tornava a congelar. Oric explicou, Vrynfahr ficava suspenso, portanto a água não tornaria a congelar a menos que encostasse na arma definitiva da cidade.

E ali estavam todos eles, nos salões inundados de Kaagham, com o teto há mais de sete metros de distância do chão e colunas talhadas na própria rocha para sustentá-lo. Corredores por todos os lados levavam para caminhos que levavam para câmaras que se sabe lá o que continham. Arcaia não se dignou a olhar. Seu tempo corria curto, e precisava completar seus desejos. Pois ali, na frente deles, pairava como poeira em um quarto com luz entrando pelas cortinas. Ali pairava uma energia visível e maleável como água, sem cor alguma além de um tom de branco acinzentado, sem luz própria, mas, ainda assim, claro de certa forma. Ali pairava o próprio véu convertido em forma física. Aquilo era poder real, magia visível e incontrolável. Era aquilo que ela usava, mas nunca vira.

— É lindo. — Arcaia disse encarando Vrynfahr em estupefação. Se perguntava se os próprios anciões já haviam visto o véu daquela forma serena e poderosa.

— Olhe para mim. — Oric chamou por ela. — E veja, pois sei que podes ver, aquele dia.

E ele estava certo. Arcaia podia ver as lembranças de Oric como se fossem suas. E ele se lembrava de um dia específico. Se lembrava do dia em que os estudiosos criaram a arma derradeira, trazendo do véu a energia para a forma física aonde qualquer um poderia tocar. Aonde qualquer um poderia se tornar poderoso.

E nas memórias de Oric, ele era um jovem ao lado de seu pai e ali, naquele salão de pedra existiam centenas de aparatos pendurados por todos os lados. Grandes estruturas de metal e cristais, luz irradiando por todos os cantos enchiam o ambiente de brilho e a própria sensação que Arcaia sentia através dos olhos de Oric era boa, como se esperança fosse tão palpável quanto Vrynfhar seria. E então os estudiosos começaram.

Grandes tremores, uivos como se o vento soprasse forte pelos tuneis. Luz sem fim. Oric tapou os olhos, mas seu pai pediu que observasse.

— Nunca verá algo assim outra vez. Olhe, mesmo que te cegue, meu filho. Olhe o milagre que alcançamos. — Segfig havia dito para seu filho.

E Oric abriu os olhos em tempo de ver duas ondas de energia abismais se chocarem em silêncio. Podiam ouvir o metal tremer, ranger, os cristais de Azul trincar, podiam ouvir as rochas se chocando, mas aquela estranha energia que invadia o ambiente em forma de um jato direto e preciso, ondulante, como labaredas horizontais, mas totalmente incolor, meio cinzenta no máximo, era totalmente silenciosa. Era vazia de calor ou de frio, era pura de alguma forma. Mais pura do que se pode imaginar.

A energia vinha dos tuneis, convertia nos cristais, e então se chocava no meio do salão. Lá fora o mundo parecia ruir. Era o preço de mexer no véu.

E então, sem mais, tudo acabou com um grande baque surdo que fez os ouvidos de todos ficarem insensíveis por alguns segundos, e Oric sangrava pelo nariz, mas seu pai sangrava pela orelha, e no chão Dilek, Birkan e Ozdes estavam desmaiados enquanto os outros estudiosos também se recompunham.

Eles falavam, mas suas vozes não podiam ser ouvidas, pois todos estavam ainda desorientados e surdos.

Pela visão de Oric, Arcaia pode ver o que seguiu, pode ver que haviam não sete, mas dez estudiosos. E o oitavo que ela desconhecia caminhava, cambaleando, para Vrynfahr. Ele caminhava com a mão estendida. E então ele não chegou a encostar naquela energia flutuante, ele apenas chegou perto demais, e Vrynfahr encostou nele.

A energia se locomoveu até a ponta do dedo do estudioso, que, no mesmo instante, sucumbiu caindo de joelhos, seu corpo começou a se deteriorar enquanto ele carregava uma expressão plena de felicidade com um sorriso que explodiu em uma gargalhada quando eles voltaram a ouvir.

Arcaia pode ouvir, através das orelhas de Oric, o grito de Eyo.

— PAI! — Ele berrou enquanto Vrynfahr consumia o corpo daquele estudioso por completo. E na memória, Eyo ainda usava a capa de um estudioso do círculo maior. Na memória os dez ainda viviam. Na memória de Oric, a desgraça ainda não havia acontecido.

E então Arcaia foi puxada das lembranças do Rei de Kaagham, passando por um mar de outros dias, passando pela destruição daquele salão, pelas discussões de Segfig com os estudiosos, as revoltas crescentes, pelo assassinato dos outros dois estudiosos e a falsa acusação que o pai de Eyo teria também sido assassinado para encobrirem o perigo de Vrynfhar.

Arcaia viu Segfig negar ativar a arma, viu a cidade ser atacada por um dragão e Oric correr para se esconder, viu o pai de Oric ser executado em praça pública e viu Oric se casar em seguida, e ativar o Vrynfahr para selar o casamento. Viu o sorriso de Eyo quando o Vrynfhar foi ativado.

Mas mais importante, Arcaia havia entendido o medo que o Rei Segfig tinha do Vrynfahr. Ele era um homem sensato, sabia que aquele poder não deveria cair nas mãos de homens como o pai de Eyo, que almejava para si próprio e, se não tivesse sido consumido pela magia, teria se tornado um déspota.

Então Arcaia caiu de volta na realidade, cercada pelas pessoas que olhavam para ela e para o Rei Oric.

— Vrynfahr não salvará o seu povo. — Eyo disse atrás de Arcaia, Oric e de todos. — Essa arma jamais deveria ter sido criada. Mas foi. Criamos nossos demônios, Arcaia. Nossa salvação e nossa desgraça é nossa. Não sua.

— Não toque! — Arcaia berrou para Agirfut, que se aproximava de Vrynfahr com apenas curiosidade. — Se tocar, morrerá. Se chegar perto demais morrerá. A magia lhe consumirá. Seu corpo não suportará o poder.

— Ninguém suportará. — Eyo garantiu, furioso, berrando para todos ali. — E não há como criar outro. Levará dezenas de ciclos escavando e erguendo as torres de contenção e importando mais cristais de Azul, reativando velhas linhas de comércio que se perderam há mais de mil ciclos. E até que consiga, matará quantos no processo? Que salvação você trará, Arcaia? Qual Salvação?

Eyo berrava para ela, furioso.

— Eyo, abaixe sua voz. Não deveria ter descido aqui. — Ozdes disse para o companheiro estudioso. — Não precisa suportar…

Eyo então empurrão Ozdes.

— Eu quero ouvir da boca da bruxa. — Eyo cuspiu as palavras indo até Arcaia como se fosse atacá-la. — Como fará outra arma desta, bruxa?

Arcaia então esticou o braço para frente, para Eyo, que caminhava ainda em sua direção, cada vez mais próximo.

— Pare. — Ela disse, mas ele continuou. E então, como se uma corda estivesse amarrada em sua cintura e presa a um cavalo e o cavalo saísse correndo, Eyo caiu no chão e foi arrastado para trás até a escada, aonde pareceu ficar preso ao chão como se estivesse colado ali. E de sua boca saiam apenas maldições sob Arcaia, xingando-a de todos os nomes possíveis.

Oric olhava para ela com temor então, pois Arcaia tinha a pele pálida como a de um defunto.

— Para a escada, todos. — Ela disse enquanto virava-se para Vrynfahr, olhando a arma de Kaagham em contemplação. E acessava do véu a própria matéria invisível a qual os estudiosos haviam transformado em visível. Usava de todo o conhecimento aprendido naquele momento. — Queres ver como farei, Eyo. Eu lhes disse, eu os alertei. Não preciso de cristais, Eyo. Não sou fraca como seu pai!

— Arcaia? — Oric gritou da escada.

Mas ela já não respondia a ninguém.

Das suas mãos emanava energia e por bruxa se passou aos olhos de todos, pois seus pés deixaram de tocar o chão e seus braços esticados pareciam prestes a se quebrar quando riscos luminosos cruzavam seus dedos girando ao redor de seu corpo, ao redor do salão. Vocês não podem tocar tal poder, tamanha força os consomes, tamanho poder destrói-os. Seus corpos fracos não suportam o abraço do véu. Mas eu sim!

E então a parte difícil daqueles estudos. Fazer o contrário ao que Vrynfahr era.

Pois Arcaia não desejava congelar a ilha de Hero Magmun, mas sim criar isca aos dragões. E fazendo o que os anciões haviam lhe dito para jamais fazer, ela foi além do véu, mais fundo, nas raízes daquela energia, em busca do que precisava para tornar real seu sonho. Nada a impediria.

E então, de súbito, duas coisas ocorreram. Uma para os que assistiam o espetáculo e outra apenas para Arcaia.

Oric e os outros viram Arcaia flutuar, cercada de energia visível como a de Vrynfahr, convergindo em suas mãos, mas então toda aquela energia se tornou vermelha e toda aquela energia vibrante e acalentadora penetrou por seus braços, busto, rosto, pernas, e Arcaia, flutuando, despencou no chão, inconsciente, mas apenas porque seu corpo embora pudesse suportar o poder, não respondia mais a ela naquele instante.

Arcaia ainda estava consciente, mas não ali, não naquele plano, não no mundo dos mortais. Sua consciência vagava pelo véu, profunda, afundando naquele mar de poder infinito que ela só imaginava a extensão. E podia sentir como se fossem garras lhe segurando, lhe puxando para o fundo. Para um abraço letal.

Se eu continuar, não serei mais eu quando acordar. Ela pensou em sua viagem para além. Sabia que aquele caminho levaria a destruição, mas aqueles dedos que lhe agarravam, aquela voz que lhe chamava, aquele poder que lhe era oferecido. Aquela tentação…

Nem mesmo os anciões conseguiram negar-te. Pensou, enquanto afundava ainda mais nos braços do único ser que transcendia a vida, a morte, o tempo. Por que faria de mim marionete? Indagava-se, enquanto mergulhava mais fundo até que a luz branca não fosse mais sequer cinza. Até que estivesse cercada apenas por trevas.

Destruiria meus inimigos, se a ti entregasse meu corpo? Se perguntou, quase cedendo. E em um ímpeto de sanidade recobrou seus sentidos, relembrou que o Monstro Inominável não tomaria seu corpo, mas sim sua existência, e que após a queda não haveria retorno. Há de me largar. As garras então lhe incomodavam e o abraço já não era mais confortável e a oferta já não era o bastante, mas não havia mais luz.

Havia mergulhado fundo nas profundezas do véu, e encontrado o caminho para a única entidade que poderia ser chamada de divina. Aquele ser que habitava na própria chama da vida era o percursor da existência de tudo, composto apenas por trevas, pois havia se separado da bondade para dar à luz aos anciões, e se tornado então o Monstro Inominável. Eternamente aprisionado no véu enquanto sua contraparte bondosa, os anciões, vagam em forma semelhante a humana na terra. Aquele ser transcendente era o caminho ao poder infinito, pois ele desejava ser livre também, pois quando do véu sua contraparte saiu e apossou-se de forma física, as trevas ficaram aprisionadas no vazio, o monstro ficou preso sozinho desde o surgimento do mundo. E então, desde que o mundo é mundo, o monstro tenta sair.

Os anciões lhe contaram, não permita. Não vá além do necessário. Não faça uso do poder que ali reside. Pois há um preço.

E então recordou a voz de Korikmaz, recordou que até mesmo nas trevas pode haver luz

Arcaia sentiu que retornava para seu corpo, e quando abriu os olhos estava deitada no chão, mas sentia que não estava mais sozinha, dentro dela habitava sua essência, como antes, mas também um pequeno pedacinho de algo mais. De algo feito de trevas. Algo que cresceria dia após dia. Havia aberto uma porta que jamais conseguiria fechar.

Mas em suas mãos ela sentia mais poder do que nunca. Sentia o calor, o fogo. Sentia o poder que Vrynfahr carregava, mas em suas mãos possuía algo diferente.

— Conseguiu? — Eyo perguntou, abismado, olhando Arcaia a se levantar. E ela olhou para as próprias mãos quando chamas atravessaram seus dedos como se fossem brinquedos nas mãos de crianças, e ela não sentiu sequer calor.

— Lrafhar. — Ela disse olhando para cada um deles. — O contrário de Vrynfahr.

— Calor absoluto. — Oric disse, fascinado com Arcaia e seu poder.

E no primeiro dia tudo foi perfeito, pois estavam comemorando no jantar um feito memorável. E até mesmo os estudiosos que antes se opunham a ela, agora queriam saber mais sobre Arcaia. Menos Eyo, que mantinha sua distância, pois não entendia como seu pai morrera, mas Arcaia continuará viva.

E ainda no jantar, quando Oric foi roer o osso da costela, perdeu o canino, que quebrou e então a outra metade do dente caiu, e sangue saiu pela ferida na boca. E entre todos, se viam apenas olhares de confusão. Entre todos, menos Berfut, pois Berfut nada olhava, tateava às cegas, incapaz de ver um palmo a frente de seu nariz, berrava “estou cego” enquanto mesmo sob a luz precária das velas e lamparinas na noite, era possível notar com um pouco de esforço que muitos dos que eram joviais, agora eram também cheios de cabelos brancos e rugas apareciam em alguns rostos.

E, de repente, era como se o tempo em Kaagham tivesse voltado a urgir.

Mas não foi está a surpresa derradeira, pois que todos acusaram Arcaia. E então a porta do salão no palácio foi escancarada.

— Algo de errado. — Gritou alguém lá fora.

E ao olharem para fora o que virão chocou-os todos, incluindo Arcaia.

E Eyo veio ao seu lado de imediato.

— Conseguiste, bruxa. — Ele disse, com a voz cansada, enquanto olhava a neve caindo no pátio do castelo. — Matou-nos todos!

Era o Lrafhar agindo. Chegaram a tal conclusão. Arcaia havia criado uma versão contrária ao Vrynfahr jazendo no interior de Jhar Maar Kaagham, e duas forças opostas, quando unidas, se anulavam. A matemática ensinava-os aquele exemplo simples.

Não havia outra explicação, e a própria Arcaia concordava com tal ideia.

— Destrua Lrafhar. — Eyo disse. — Destrua essa anomalia e vá embora.

— Vá embora. — Birkan dizia.

— Nos deixe, bruxa. — Ozgu dizia.

Dilek nada dizia, pois havia perdido os dentes todos e estava já velho demais para falar. Arcaia, porém, não pretendia deixar aquele lugar ainda. O véu favorecia-a ali mais que em qualquer outro lugar. Vrynfahr catalisava energia demais para perder tamanha chance. Então fez contraproposta usando do pouco apoio que tinha de Brehan e Ozdes.

— Dois menos um. A conta é simples. Se um orbe anula o outro, um segundo Vrynfahr será o bastante para equilibrar a balança, inclusive após eu ter deixado Kaagham. — Ela disse, tentando fazer sentido. E conseguiu o consentimento deles por mais alguns minutos.

— Que seja, mas fará isso agora, e então nos deixará. — Brehan ordenou.

E assim Arcaia foi para a praça, pediu para que a deixassem sozinha, pois aquilo era perigoso. E novamente acessou o véu, e novamente sentiu-se abraçada pelas trevas do monstro que vinha antes, mas desta vez, já experiente, retornou com facilidade, e enquanto em um braço havia fogo contido em um si própria, no outro havia gelo. E Kaagham estava salva, ao que parecia, pois, a nevasca havia parado de cair e a idade parara de avançar.

Mas não os tremores.

O chão sob os pés de todos continuava a tremer. Pois era normal quando se estava criando Vrynfahr, ainda na época dos estudiosos, os tremores. A canalização de tamanho poder costumava resultar em tremores e até mesmo tempestades. Mas agora, após a criação, tudo já deveria ter cessado.

Arcaia, porém, percebeu seu erro. E ao olhar para Birkan, Eyo e Dilek, notou que eles também haviam entendido o que acontecia. Há mil e quinhentos ciclos aqueles tremores haviam balançado Kaagham porque mexer com o véu era mexer com as estruturas que fundavam a própria terra. Era mexer com o Monstro. Na véspera ela havia tremido as estruturas da terra uma vez mais e desequilibrado uma delicada balança que talvez estivesse em equilíbrio por puro acaso. E então havia, de novo, drenado do véu para o plano material e corpóreo aquela devastadora energia. Três vezes mais poderosa que outrora. Não havia equilíbrio. Apenas Caos!

Então, sem mais avisos ou sinais, o chão se partiu em dois. E as torres de Kaagham se romperam. Suas rochas brancas e brilhantes se tornaram cinzas em um segundo quando despencaram dos céus e o palácio se quebrou ao meio e as pessoas começaram a correr. Pois o chão sob os pés deles tremia, e o terremoto era impiedoso com Kaagham, pois por duas horas o chão tremeu até que não sobrasse fundamentos. A cidade era sustentada por um falso chão aonde havia cavernas, tuneis e salões inferiores. E todas essas construções ruíram para dentro dos tuneis de Vrynfahr. E a cidade foi engolida pelo conhecimento dos Estudiosos.

E durante o Caos que assolou Kaagham, muitos foram vítimas de esmagamentos e coisas semelhantes que teriam lhes custado a vida. Mas, embora três armas de pura energia do véu causassem a desestabilização dos próprios fundamentos da terra, o conceito grosseiro funcionou; eram todos imortais uma vez mais. E, portanto, todos sofreriam para sempre ali.

Conforme os tremores diminuíam era possível que se juntassem, mas apenas por tempo o bastante para novas ondas chegarem e eles caírem novamente em desgraça, pois as terras de Kaagham afundavam conforme o chão tremia e se rachava, e o mar avançava contra eles, impetuosamente com ondas de cinco metros de altura.

E vendo o que causara, Arcaia percebeu que ali nada mais havia para ser feito ou desfeito. Se virou nos escombros e engatinhando saiu das ruínas para os campos, fugindo, assim como todos os outros, até os limites de Kaagham.

E ali, longe da cidade, encontrou todas as almas miseráveis que haviam escapado do Caos que assolava a cidade, mas para onde eles fugiriam? Alguns descuidados cambaleavam para além dos limites, apenas para sumirem nas garras do tempo.

E ali estava Oric, Rei de Kaagham, com seus cabelos brancos e suas rugas, sua coroa desbotada e seu olhar cansado.

— Matem está mulher! — Eyo também estava ali. E ordenava acima dos gritos de desespero enquanto, no horizonte, a cidade se desmantelava. — Ela quem destruiu tudo. Ela é a bruxa estrangeira.

Dos que sobraram com forças, quatro homens se predispuseram. Suas espadas opacas brandidas no ar e os gumes pedindo por sangue.

— Oric. — Arcaia chamou pelo rei, que olhou com desprezo para ela enquanto o próprio Eyo tomava a espada do Rei. — Não permita. Sua esposa não quereria isso.

E então lhe atacaram.

Arcaia se defendeu com os braços, e a primeira espada lhe acertou o cotovelo, congelando e estilhaçando-se em centenas de pedaços ao passo que a segunda lhe acertou o antebraço, mas esta sequer realmente lhe acertou, pois derreteu como aço em forja e seu cavaleiro soltou o punho vermelho em chamas, amaldiçoando-a.

Sobraram dois e Eyo. E os dois olharam para Arcaia com medo demais para atacar. Ela soube que eles não lhe feririam, mas Eyo sim. Eyo tinha inveja, soberba, ganancia, ódio e desprezo em seus olhos. E não havia nada que Arcaia pudesse fazer além de lutar de volta.

— Eyo, eu não quero te destruir...

— Já o fez. — Eyo avançou então.

Foi para o ataque como um cachorro louco, consumido pelo ódio. Arcaia desviou do primeiro ataque com maestria, a espada passou pelo seu corpo e ela pode sentir o vento contra seu resto, empurrou Eyo pelo ombro e tomou distância dele.

— Não quero sangue em minhas mãos, Eyo. Seu povo morre hoje pela ganancia que seu pai teve. Que você tem. Pela imortalidade que você almeja. Pela maldição que seus desejos impuseram neste povo. — Arcaia disse olhando para Eyo que avançava novamente contra ela.

Desta vez, porém, Arcaia deixou-o vir. Agarrou a espada pelo gume sentindo o metal cortar seus dedos até que olhasse nos olhos de Eyo e então o frio estourou em mil pedaços a lâmina e mão de Arcaia encostou no peito de Eyo, jogando-o para trás com tanta violência que o mesmo ficou há centímetros do limite de Kaagham.

E Eyo pode sentir a morte lhe beijar a face enquanto cuspia sangue com as costelas de seu peito estilhaçadas.

— Não tomei nenhuma vida nesta cidade. — Arcaia disse para Oric. — Eu lhes disse. Sou o futuro. Sou as consequências de suas ações. E se perpetraram podridão por mil e quinhentos anos, é podridão que colherão. Não sou eu a agente da desgraça que cai sobre vocês.

Chegara então Dilek, ao lado de Oric.

— Eyo, não o faça. — Dilek disse para o homem que ele seguia cegamente. — Pare, por favor.

Arcaia se virou para os limites de Kaagham, e Eyo se levantava, agarrado a um fragmento da espada.

— Bruxa...

Arcaia desta vez cansou, avançou contra Eyo da mesma forma que Eyo avançou contra ela.

E Dilek avançou contra ambos, se entrepondo.

Naquele instante Arcaia não pensou em atacar, mas apenas em andar, e com sua força acima da de qualquer homem, Arcaia deu mais um passo. Dilek puxando Eyo para trás, Arcaia empurrando-o para frente. Eyo então notou o que a bruxa fazia, e notou que era tarde demais para evitar. Alguém morreria.

Dilek sentiu uma mão lhe puxar. Pensou ser Arcaia, mas era Eyo. E no segundo seguinte Eyo usou Dilek como base para se puxar de volta para Kaagham enquanto Arcaia empurrava ambos para fora. Eyo conseguiu escapar o frio, se salvou. E Dilek viveu o bastante para ver os olhos de Arcaia na sua frente, e atrás dela Oric, Eyo e todos os outros. E então ele nunca mais viu nada.

Arcaia estava em pé, do lado de fora dos limites de Kaagham, abraçada pelo vento e pelas cinzas de Dilek, o Estudioso que nunca fez nada além de seguir Eyo.

— Na única batalha de sua vida, sacrificou Dilek para se salvar. — Arcaia disse para Eyo, que estava seguro nos limites de Kaagham. — Eu poderia lhe matar mil vezes, poderia destruir Vrynfahr e pôr fim a sua existência. Mas agora, Eyo, eu lhe desejo vida eterna para se culpar e ser culpado por todos os dias pelo que aconteceu hoje.

— Eu lhe mataria...

— Dê um passo e tente. — Arcaia desafiou. — Korikmaz quando executado proferiu que havia coragem também na covardia. Então prove, saia de Kaagham e eu retornarei e me renderei ao destino que desejar para mim. Profira uma sentença e sacrifique-se pela memória de Dilek. Sabe que cumprirei minha palavra. Uma assassina por um assassino. Uma barganha justa. Sacrifique-se pelo bem maior como eu estou disposta a fazer. Seja o bem maior.

Eyo continuou parado, encarando Arcaia, mas agora sem resposta alguma.

— Deixe-nos. — Oric pediu, em fúria e desespero, como um sussurro. — Vá enquanto pode, mulher. Trouxeste apenas ruína e desgraça. É verdade o que Eyo diz. É uma bruxa e nada mais. Vá, enquanto permito. Vá. E jamais volte! Vá… antes que de nós nada sobre.

Arcaia então pensou em criar grande diálogo, mas para Eyo queria dizer apenas mais uma palavra, palavra que ressoaria eternamente em sua memória, ela sabia. Só havia uma coisa para dizer que afetaria Eyo até suas estruturas da mesma forma que Kaagham. Deixá-lo-ia em ruinas por toda a eternidade.

— Covarde.

Nunca havia desejado afeição daquele povo, e sentia muito pela desgraça que os assolava agora, mas não via motivos para se culpar. Nem mesmo quando olhou para a cidade e tudo o que viu foi destruição e ruína, centenas de ilhas, fragmentadas, com o mar invadindo a terra. Já não havia florestas, bosques, campos, plantações ou cidade. Era apenas destruição.

Sem mais se virou e deixou-os. Deixou para que aprendessem uma lição simples. O simplório jamais deverá mexer com poderes além da própria compreensão.

Precisava retornar a sua ilha, retornar para Magmun. Já fazia quatro ciclos que havia deixado Hero, mas tinha conseguido o que havia se proposto a fazer indiferente do preço.

A primeira parte de sua jornada estava concluída. Em suas mãos carregava calor e frio. Carregava a isca e o repelente às betas. Carregava salvação e ruína. Carregava o futuro, tal como prometera.

Mas em seu coração também carregava trevas, as quais lutavam para sair. E a luta lentamente se mostrava por seu corpo. Pois depois de Jhar Maar Kaagham, Arcaia não usava mangas curtas. Notou que seus braços possuíam marcas, marcas jamais vistas, diferentes de cicatrizes ou doenças. Eram marcas de magia. De quem usou demais, de quem tem que pagar um preço.

Pagarei de bom grado. Mas primeiro destruirei meus inimigos.


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