DeH; Arcaia escrita por P B Souza


Capítulo 5
A Cidade de Ossos


Notas iniciais do capítulo

Mais uma semana, mais um capítulo!
Boa leitura.
E já viram a nova capa? O símbolo de fundo é totalmente original, desenhei-o. E tem um significado que será explicado futuramente.



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Havia tempo, mas Arcaia não quis esperar um veredito que poderia muito bem ser contrário aos seus interesses. Pois que sem demora conseguiu encontrar na fraqueza de Korikmaz a entrada para os arquivos dos estudiosos de Kaagham.

Era uma livraria sem precedentes para sua época, tal como as construções de Kaagham eram inimagináveis em qualquer cidade. E antes que Arcaia se dignasse a perguntar como edificaram tão alto, encontrou a resposta nas páginas mofadas daqueles exemplares escritos à mão por diferentes mãos no decorrer dos ciclos. Muitos dos livros eram escritos pelo próprio Korikmaz, mas a maioria não era daqueles Estudiosos, mas sim dos antepassados, apenas reescritos no decorrer dos ciclos.

E dia após dia ali ela ia, escondida, por caminhos ensinados por Korikmaz, para dentro do castelo e do castelo para os arquivos e ali estudava com interesse verdadeiro, lendo e relendo para decorar, para jamais esquecer, e depois reproduzir.

O que os estudiosos haviam criado era, sem dúvida, uma arma mais que um escudo. Quanto mais Arcaia lia, mais sua mente se impressionava com a criatividade daqueles homens que ousavam depreciar a magia, mas usavam dela no Vrynfahr chamando-a de ciência. Tão espertos para serem tão ignorantes.

O que alimentava o núcleo energético daquela arma magnífica era algo coletado do próprio véu, não que os estudiosos acreditassem nisso, mas Arcaia sabia a verdade. E independente do nome, o poder era real e isso que a ela importava.

Entender como eles conseguiram canalizar todo aquele poder, porém, era complicado. Em uma das noites, em um jantar com Korikmaz, contou-lhe sobre suas dúvidas e a isso recebeu uma resposta que a encheu de curiosidade.

— Quando Vrynfahr foi feito, foi feito em um laboratório subterrâneo abaixo da cidade, em túneis, câmaras e antecâmaras com um grande salão. As torres são catalisadores tanto quanto bloqueadoras da energia emitida pelo Vrynfahr. Apenas a rocha branca é capaz de isolar a energia emitida. As torres que se vê dos limites de Kaagham são como grandes bambus, ocos no interior, mas com cristais de Azul nos topos. Facetas refletoras no interior levando até o cerne da cidade, ao âmago de Kaagham aonde Vrynfahr foi criado.

— Posso ver tal local?

— Temo que não será possível, tal lugar jaz sepultado. — Korikmaz disse então. — Tais assuntos sequer deveriam ser discutidos. Devemos nos concentrar na votação e uma forma de conquistar os votos faltantes, então terá suas respostas, doce dama.

E de Korikmaz conseguiu pouco mais além disso, mesmo nos dias que seguiram. O estudioso evitava até mesmo tocar nos assuntos que circundavam a concepção criativa à física de Vrynfahr.

Mas Arcaia não deixaria sua curiosidade em branco. Pesquisou fundo sobre tudo o que pode no tempo que teve. As rochas brancas eram também metamorfoseadas através de processos químicos possibilitados apenas com catalisadores daquela energia que eles desconheciam o nome. Os catalisadores eram cristais de Azul, um dos poucos minérios que interferiam diretamente com o Véu e a própria fonte da magia. De certa forma aquela rocha esbranquiçada era inexistente no mundo, criação dos Estudiosos para bloquear e inibir a expansão descontrolada da energia do Vrynfahr. E estudando os mapas da cidade Arcaia via também que todas as torres eram conectadas por tuneis que levavam para o mesmo lugar, e todas as torres eram posicionadas em posições simétricas com pares contrários do outro lado, formando um arranjo elegante e organizado.

Em um jantar, no final do Ciclo 2383, estavam Korikmaz, Brehan e Ozdes com a companhia de Arcaia. A votação para decidir se Arcaia receberia os direitos de estudo seria feita ao final do ciclo e ao nascer do novo ciclo ela teria acesso aos segredos de Kaagham ou seria expulsa da cidade para nunca mais retornar. E pretendia seguir a decisão fosse ela qual fosse, pois pretendia, até lá, já ter conseguido o conhecimento que queria.

— O nome que sugiro é Birkan. — Ozdes disse. — O homem é sensato. Tem visto que Arcaia só quer o bem de seu próprio povo, não faria pouco da vida dos inocentes que podem morrer se a autorização lhe for negada.

— Dilek seria uma surpresa assim tão grande? — Korikmaz disse. Eles discutiam quem seria a votar que Arcaia ficasse, entre os quatro estudiosos que até então haviam votado para sua saída.

— Surpresa seria Ozgu ou Eyo. — Afirmou Brehan. — Esses nunca votarão em seu favor. Ozgu te chama de bruxa e lhe vê como uma ameaça. Eyo lhe vê como aproveitadora que quer roubar o que Kaagham tem de melhor. A própria criação de Vrynfahr ele atribui a ele próprio, mesmo tendo sido um esforço mutuo. Dilek é um seguidor das palavras de Eyo, abdicando das próprias pretensões para apoiar seu amigo por motivos que desconheço. Birkan, no entanto, é sensato a seu modo. Ele não simpatiza com Arcaia, mas poderá simpatizar com as vidas inocentes em jogo.

— A imortalidade congelou não só o tempo, Korikmaz, mas também a empatia. Birkan não vê mais a vida como vida, apenas como… algo que passa. — Ozdes disse.

— E você, Ozdes. — Uma voz intrometeu-se na conversa então. E vindo pelo corredor Oric se fez presente no salão. — Vê uma vida como?

— Majestade. Não sabíamos que se juntaria a nós…

— Não iria. — Rei Oric interrompeu Korikmaz. — Mas com a votação sendo dentro de cinco dias chegou a meu saber que traição vem ocorrendo sob meu telhado, Korikmaz.

Arcaia então percebeu do que aquela visita se tratava.

— Por favor, Majestade, vocifere essas traições que diz ocorrer. — Brehan pediu enquanto Korikmaz olhava para Arcaia, temeroso.

Ela via medo nos olhos do estudioso que havia burlado as regras para agradar a seus desejos por simples afeiçoamento à vida. Arcaia não sabia dizer se Korikmaz a apoiava por ter caído em suas graças, tal como Berfut e Agirfut, ou se a apoiava porque entre aqueles que ali viviam, Korikmaz ainda se sentia vivo, ainda queria ver a vida em sua forma finita.

A imortalidade podia ser uma praga no interior de um homem, consumindo todos os motivos de viver e prendendo-o a vida que então começa a odiar, que então começa a ver como maldição. No entanto Korikmaz ainda via a vida como algo pleno, belo e passageiro, que deveria ser protegido a todo custo, fosse do frio, do tempo, ou dos dragões. E por tais razões ele havia permitido que Arcaia estudasse os papéis, mas evitava falar sobre o próprio Vrynfahr em um ato de lealdade mesmo que corrompida a Oric.

— Jarfad é testemunha das acusações de Ozgu. — Oric disse.

— Majestade, quer dizer que Jarfad é espião de Ozgu.

— O que não configura crime. — Oric disse olhando sério para Arcaia. — Mas suas visitas às seções privadas da biblioteca e o acesso a documentos secretos sobre Vrynfahr são claramente crimes uma vez que deveria aguardar a votação…

— Meu povo morre enquanto aguardo a decisão de vocês. A eternidade não chegou para eles. O tempo do meu povo é limitado e repleto de fogo e cinzas e dor. Me culpa por querer pôr um fim a isso? Não era por estas razões que seu próprio pai alertou-te dos perigos de ativar Vrynfahr?

— E é por isso que considero seu exílio imediato. Mas para ti, Korikmaz, não haverá misericórdia. Eyo e Ozgu estão certos sobre ti.

— Korikmaz é o único dentre os estudiosos que compreende o valor da vida, Oric. Ele compreende o valor do tempo. E por isso me ajudou quando ninguém mais o fez…

— Não. Por favor, deixe-o dizer. — Korikmaz interrompeu Arcaia. E então, com olhar cansado encarou Oric. — Majestade, o que aconteceu é crime meu e apenas meu. E de bom grado aceito a punição. Já é tempo, creio, de pôr um fim a isso. Ainda digo que fico feliz por no final ter feito algo que na história verão; foi algo bom.

— Não cabe a você julgar a bondade de suas ações. — Oric disse, nervoso com Korikmaz.

— Não, mas como ajudar inocentes pode ser algo ruim?

E com isso o jantar foi encerrado até a manhã do dia seguinte.

Guardas não vieram buscar por Korikmaz ou ele foi levado para uma cela. Não havia para onde fugir, já que a punição era a própria fuga e ali não havia necessidade para balburdia, pois eram todos mais sábios que o tipo que requer guardas. Arcaia não precisou olhar o interior do homem para saber que Korikmaz jamais planejou tentar escapar seu destino e, quando o primeiro raio de sol nasceu, ele ainda não havia dormido.

— Se sacrifica por mim. — Arcaia disse, ao encontrá-lo no pátio traseiro do castelo, olhando o nascer do sol. — Nunca antes alguém faz algo do gênero.

— Nunca antes encontrou alguém imortal. — Ele disse tentando soar humorístico.

— Na verdade encontrei alguns. Eles me ensinaram muito do que sei, incluindo a magia que Ozgu tanto teme.

— E eles nunca se sacrificaram por ninguém, suponho.

— Na verdade eles eram deuses de certa forma. Os predecessores de tudo que habitou nesse mundo. E os conheci em sua queda, pois haviam sacrificado tudo por um bem maior. Até mesmo suas essências eram nada além de uma sombra do que outrora foram, e de mim precisavam, logo eu, que era apenas uma mortal entre deuses.

— E por que precisavam de ti? — Korikmaz parecia sereno, mas ainda em busca de conhecimento, como se seu espírito de Estudioso não pudesse negar uma boa história.

— Além destas ilhas, além deste mar, existe um mundo diferente aonde outros inimigos aguardam serem derrotados. Aonde dragões não são mais do que formigas. É lá que esses deuses habitam. E seu povo precisa de salvação, assim como o povo daqui. Eu compreendo a imortalidade, pois sou o resultado da criação de tal feitiço, uma magia obscura demais para se acreditar, mas eles precisavam para algum motivo que desconheço, algum motivo maior que nós. Não há trevas sem luz, e às vezes das trevas surge a luz. Então não sou realmente apta para julgar ou questionar os deuses de além-mar. Apenas deixei-os para cuidar da terra deles, e vim eu cuidar da minha.

— Se existe luz nas trevas, então haverá espaço para ignorância no saber e inocência na culpa. Tal como ingenuidade na malícia. — Korikmaz suspirou olhando para Arcaia. — Não importa o quanto pensemos em bênçãos. — Ele olhou para o céu, devaneando. — A única benção é o final. Estive acordado a noite toda, pensando sobre o último dia de minha vida. É estranho imaginar o final depois de tanto tempo. Sempre desejei, mas agora… também sempre temi. Era só sair andando. A verdade… é que somos covardes demais para isso.

Arcaia ficou em silêncio ao lado de Korikmaz até que chegassem Oric e Eyo. E juntos os quatro foram para os limites de Kaagham aonde podiam ver a grama secar e a neve surgir e o gelo surgir e a vida se encerrar. E mesmo ali há tão pouco tempo, Arcaia se sentia presa àquele lugar como se deixar os limites fosse, realmente, impossível de se imaginar. Ela não queria ir embora.

— Korikmaz, aqui se encerra sua vida. Arcaia, aqui deverá partir para nunca retornar. — Oric disse para os dois.

— E se permite a pergunta. — Eyo olhou para Arcaia com suas inquisições. — Aprendeste algo de meus livros?

Arcaia sorriu olhando para Korikmaz, e então para Eyo.

— Não são seus. E assim como Korikmaz, seu dia chegará. E sim, aprendi muito. — Arcaia olhou então para Oric. — Aprendi o que causou as falhas. E aprendi como concertar. — Então ela se virou para Korikmaz e tomou sua mão na dela, olhou-o nos olhos.

— Caminhará comigo? — Nos olhos estreitos de Korikmaz gordas lágrimas se formavam e escorriam pelas bochechas enquanto seus últimos minutos de existência se encerravam. Para um homem que viverá tantos ciclos, o fim parecia tão rápido e súbito.

Arcaia fez que sim com um sorriso leve e uma expressão tranquila no rosto, e juntos caminharam…

— Arcaia. — Oric chamou então. — Não vá. — Os dois pararam então, e Korikmaz sentiu Arcaia puxar sua mão conforme ela voltava para Kaagham, mas ele não se mexeu, pois era ela quem ainda tinha uma missão a cumprir.

— Venha. — Ela pediu olhando para Korikmaz, que ainda assim não se mexeu. Korikmaz então beijou-lhe as costas de sua mão.

E com um sorriso de quem encontra paz, disse;

— Sim, somos todos covardes. Mas há espaço para coragem também na covardia.

E com essas palavras Korikmaz se virou para a neve, para o frio, e caminhou de olhos abertos, feliz de encontrar seu fim, pois nada haveria de ser eterno. E antes que se desse conta, já não existia mais.

Arcaia olhava a poeira se desfazendo no ar, levada pelo vento que não adentrava o domo que circundava os limites de Kaagham.

— Sacrificaste seu amigo, Eyo. Me odeias tanto assim? — Arcaia perguntou, se virando para o rei.

— Encontrou a correção?

— Sim. — Ela disse, a voz seca e desprovida do apego que antes tinha, pois sentia-se enojada com Oric. — Eu posso concertar Vrynfahr, mas preciso vê-lo.

— Isso é impossível. — Eyo garantiu, temeroso. Sua voz subitamente tomada por uma real insegurança.

— Pode ser arranjado. — Oric porém parecia esperançoso.

— Majestade. — Eyo olhou para o rei com temo. — Escuta-me agora, uma vez concertado o efeito temporal cessará. Não vê. Morreremos todos. Condenará todos.

Oric olhou para Arcaia que nada disse sobre aquilo, mas seu olhar entregava que Eyo estava correto. Àquilo Oric nada respondeu, apenas frustrou-se e deixou Eyo e Arcaia ali nos limites de Kaagham, se virou e retornou, sozinho, para o palácio.

— O que você fez, bruxa? Enfeitiçou a mente de Oric…

— Você já sabia. — Arcaia disse para Eyo. — Vocês todos sabiam. Os estudiosos. É algo banal, simplório. Desde quando sabem como concertar este erro?

— Não ouse nos acusar…

— Desde. Quando. — Arcaia pronunciou cada palavra separadamente quando deu um passo à frente e Eyo sentiu-se ameaçado de uma forma íntima e poderosa, uma forma cruel que não denota dor física, mas algo além.

— Poderíamos viver para sempre aqui, livre da pobreza, doença, fome. Uma sociedade criada com base no conhecimento. Evolução eterna. Somos homens do saber…

— Não foi erro algum. — Arcaia percebeu então. — A eternidade era planejada. Vocês condenaram todos a algo que desejavam, de forma gananciosa e caprichosa, como crianças incapazes de ouvir não. Destruíram uma cidade…

— Kaagham não está destruída, é eterna, diferente do resto do mundo…

— Eternamente vazia. — Arcaia interrompeu sentindo raiva crescer a cada instante que olhava para Eyo e via o retrato do egoísmo. — Que vantagem terá concertar Vrynfahr agora? Tão longe do momento em que foi ativado? Que vantagem há em executar centenas de pessoas para provar um ponto? Quem é você para decidir isso, Arcaia? Uma estrangeira…

— E por isso não será minha a escolha, mas sim de seu Rei. Oric quem decidirá.

— E quem é Oric? Um bufão, ignorante demais para entender o valor da imortalidade. Você não entrega uma espada para um bebe porque ele não sabe o que fazer com ela assim como se entrega a imortalidade para homens como Oric, porque eles a desperdiçarão!

Arcaia então sorriu.

— Pela primeira vez, Eyo. Eu concordo com você. Mas o erro foi de vocês, tão espertos. Veja, eu sou o futuro. Já lhe disse. Eu não venho condenar, vocês se condenaram. Eu sou apenas a consequência de seus atos. Pois como eu disse, não há como escapar do futuro, nem mesmo aqui!

E com isso Arcaia deixou Eyo ali também e retornou ao castelo, pois precisava falar com Oric. Mas não o encontrou ali. Brehan, o estudioso apaixonado por Arcaia, quem lhe contou aonde ele estaria se estivesse chateado.

Arcaia então saiu a cavalo até os limites de Kaagham aonde a esposa e filho de Oric tinha deixado a cidade quando ainda eram vivos, há muito ciclos atrás. E lá estava o Rei, parado em seu desespero, pensando nas suas possibilidades.

Arcaia, porém, sabia que dependia de sua estada em Kaagham para completar seus planos. Então não hesitou em contar para Oric a verdade sobre Vrynfahr e como a distorção temporal fora planejada desde o começo, assim como os documentos falsos que ela leu alegando ser um erro e a própria busca por uma correção, pois os estudiosos desejavam imortalidade, e para consegui-la não se importaram com mais ninguém além de suas próprias necessidades.

Àquilo Oric chocou-se, e então decidiu com muito pesar;

— Continuará os seus estudos pelo tempo que for necessário, Arcaia. E em segredo concertará Vrynfahr. E quando descobrirem o que está fazendo, já será tarde demais. E então Kaagham será habitada por ti, e logo por ninguém, mas quando partir, diga deste lugar para o povo. Avise que aqui há segurança e paz. E que assim, sob nossos ossos, possa surgir a Kaagham que meu pai e o pai dele sonhavam criar e que eu, tão tolamente, quase destruí.


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