DeH; Arcaia escrita por P B Souza


Capítulo 10
Os Numes de Arcaia




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O cerco se um dia havia sido belo e bem organizado, nos últimos quase três ciclos, havia se tornado apenas um bando de homens cansados e enfadonhos, esperando por um combate que não acontecia, disparando catapultas de hora em hora, já sem realmente interesse de quebrar as muralhas.

Vez ou outra um grupo de duzentos até quinhentos homens avançavam contra os portões, tentavam quebrar aquela podre madeira, mas os soldados de Caienu faziam chover pontas de aço das muralhas, e os soldados de Rubrum recuavam, incapazes de continuar morrendo por algo que parecia impossível de se conseguir. Caienu podia ser um caos, mas suas defesas se provaram, diferente do que Arcaia esperava, dignas de uma cidade-estado daquele tamanho. E mesmo sob tanto tempo em cerco, ainda havia água e comida na cidade.

Ali, no campo de combate, sua chegada fora inesperada, mas ninguém fez pouco de sua presença, como poderiam? Todos amavam ela.

Assim que se espalhou pelo acampamento que Arcaia estava entre eles, todos começaram a lutar com o dobro de afinco. E o próprio Príncipe Kedros pareceu renovar suas forças querendo se mostrar digno de algo.

Em uma noite estavam jantando carne de cervo assada com cerveja espumada para beber. Arcaia jantava junto de Kedros e os outros capitães quando decidiu opinar;

— As armas de cerco não derrubaram essas muralhas em menos de um ciclo. Seus homens não quebrarão aqueles portões sem que metade morra, e não vou permitir isso. Já são quantos?

— Mil e Duzentos para menos, senhora. — Respondera um dos capitães.

— Dos mais de três mil que deixaram Rubrum. — Ela ponderou, batendo as unhas sobre a mesa. — E se eu encerrasse esta guerra amanhã?

— E como faria isso?

— Primeiro, precisaria de uma promessa dos melhores guerreiros. Eu diria... cento e quinze. Dentre eles, vocês não devem fazer parte. Mas vocês deveram jurar também.

— Cento e quinze mais os capitães? — Kedros, o general ali, perguntou, temeroso. — O que pretende, Arcaia?

— Kedros, meu amável príncipe. São cento e quinze, os capitães e Você! Caso contrário continuaram o cerco.

— Refaço a pergunta de nosso príncipe. — Disse outro capitão. — O que pretende?

— Por um fim nesta guerra. Já disse.

— Pede nossos melhores guerreiros. Para que propósito, perguntamos. — Kedros inqueriu. — Não posso mandar bons homens para o abatedouro como se fossem gado.

— Nenhum deles ou de vocês vai perder uma única gota de sangue. Sequer desembainharão a espada contra Caienu. Eu terei a cidade rendida antes do fim do próximo dia e nenhuma vida de Rubrum se perderá no processo.

— E de Caienu? — Perguntou um capitão mais esperto entre os outros.

Arcaia sorriu para ele, um sorriso triunfante.

— Nenhuma vida sobrará em Caienu pelo fim do dia.

Os capitães não acreditavam que Arcaia fosse realmente conseguir, mas sob uma proposta tão simplória, eles juraram a ela que os cento e quinze guerreiros iriam servir Arcaia como membros de sua guarda pessoal.

Os capitães e o Príncipe Kedros foram mais difíceis. Cada um dos capitães fez exigências diferentes para prometerem servidão à Arcaia, mas ainda naquela madrugada todos haviam se ajoelhado para ela. Todos, menos Kedros.

Estavam ela e o Príncipe, sozinhos na tenda deste.

— Não irei abdicar de meu trono, meu reinado, meu povo. Uma batalha não vale a vida de um nobre...

— Não é uma batalha, Kedros. É a última batalha. É pelo que seu povo e seu reino serão lembrados. Rubrum pode sair vitoriosa hoje e você se tornar eterno, sua história ecoando na própria história. Ou Caienu pode perdurar e ambas as cidades serem esmagadas pelo esquecimento. É isso que acontecerá. É isso que me assegurarei que aconteça!

— Não destruiria Rubrum...

— Vou destruir Caienu com ou sem seu juramento amanhã ao pôr do sol. — Arcaia disse, definitiva, avançando contra o príncipe. Precisava convence-lo de qualquer forma, e podia ver nos olhos de Kedros que ele resistia às palavras, mas não resistiria à carne. Arcaia encostou o indicador no peito de Kedros, olhou-o nos olhos, e começou; — Ajoelhe-se para mim hoje e viva para sempre. Ou volte para casa e levante os espigões e guarneça as muralhas, porque eu voltarei para Rubrum, prometi para sua irmã que voltaria com uma joia inestimável. Mas se não dobrar seu joelho, voltarei e destruirei até a última construção sobre o mar até que sobre apenas as lembranças que seu povo existiu e nos corpos flutuando congelarei o mar, e para sempre seus restos mortais serão atração para aqueles que ousarem discordar de mim saberem o que acontece quando Arcaia é negada entre os homens. Pois eu sou o futuro, e quem me negar, não viverá para ver o futuro!

Quando terminou, deu um passo para trás, tirando o indicador do peito de Kedros. O colete de couro que ele usava havia se desfeito, congelado e quebrado. Seu peito nu tinha os cabelos congelados com gotículas de água e a pele azulada, o coração batendo tão lentamente que o homem sequer se mexia, seus olhos imóveis observavam atônitos os movimentos de Arcaia. A respiração fraca podia ser escutada como um chiado.

— Não puxe o ar com força, seu pulmão pode trincar! — Arcaia garantiu após tomar um gole daquela cerveja ruim. Então olhou de novo para Kedros. — E então?

Quando finalmente conseguiu se mover, não andou. Apenas deixou-se cair de joelhos.

— Me servirá?

— Poupará meu povo?

— Não serei eu quem destruirá Rubrum, mas sua cidade acabará.

— Suas promessas são vazias. — Kedros afirmou e Arcaia viu o poder que já corria naquele homem.

— Não, meu príncipe. — Levantou-o e então tocando-lhe a pele, despertando-lhe desejo, se aproximou perigosamente. — Minhas promessas são meramente o futuro. E no tempo os homens são apenas passageiros, chegando, caminhando e partindo desta vida. Minha promessa, porém, é que não sejas homem. Seja algo melhor. Algo eterno. Seja meu!

— Me quer de lacaio.

— Te quero como divino. Tão divino quanto eu! Eterno!

E então beijou-o, sabendo que Kedros seria, para sempre, seu. E para sempre cético. Para sempre único. Em ti a magia não funciona, em ti preciso ter fé. Poderia ter deixado Kedros viver e morrer, mas a tentação não era apenas uma arma de Arcaia. Ela também caia em tentação. E Kedros havia, sem saber, lhe derrubado.

No dia seguinte Arcaia foi acordada com a lona da tenda foi aberta e a luz do sol invadiu a cama aonde ela dormia com pernas e braços entrelaçados as pernas e braços de Kedros. Ambos nus.

— General. — O capitão chamou. — Príncipe Kedros. — Repetiu, enfático. E Kedros empurrou a perna de Arcaia para o lado, limpando os olhos, pôs-se de pé indo cobrir o corpo.

— Capitão Nadiro. — Kedros olhou para o homem enquanto Arcaia se cobria com a pele de ovelha que Kedros tinha como cobertor.

— Sabotagem, senhor. Nas catapultas na retaguarda.

— Vamos lá. — Kedros fechou o nó do roupão e saiu da tenda.

— Nadiro. — Arcaia chamou o capitão então.

— Arcaia? — Kedros voltou a cabeça para a tenda quando Nadiro não saiu junto dele.

— Pode ir, meu nobre príncipe. — Arcaia disse se levantando, coberta com a pele de ovelha. — Nadiro tem uma missão mais importante.

Kedros, sem fazer oposição, se retirou e Arcaia ficou a sós com Nadiro, que olhava para ela tentando manter a cabeça focada nos olhos de Arcaia.

— Hoje esta guerra acabará. — Arcaia garantiu pegando suas roupas da mesa, largou a pele com a qual se cobria e começou a se vestir, de costas para Nadiro.

— Não acho que esteja certa, mas quero que esteja, espero que consiga!

— Fé. — Arcaia terminou de se vestir, então se virou para Nadiro e em sua mão algo flutuava. — É o primeiro, e mais importante, passo para a eternidade. Está pronto, Nadiro?

— O que isso fará?

— Te transformará para sempre. E depois de hoje, nunca conhecerá dor, frio, medo. Aceita a eternidade?

— Nada viverá para sempre, tudo um dia acaba. Não acho que esteja certa. — Repetiu ele, esticando a mão. — Mas quero que...

E antes que tocasse, chegou perto demais, e a energia do véu, em forma materializada, sentiu a proximidade de um ser vivo, penetrou por conta própria os dedos de Nadiro, que caiu inconsciente no chão.

Arcaia olhou para o homem sabendo que o processo levaria algumas horas. Faltam cento e dezoito.

O dia foi longo em busca dos candidatos perfeitos para servir a eternidade ao seu lado. Cinco por bastilhão. Cinco núcleos alimentando eternamente, em uma trapaça arcana. Cinco ao meu lado também devem ser. Os Cinco Eternos.

Arcaia escolhera com esmero. Kedros, Nadiro, Ornannis. Quem serão os próximos?

Se perguntava. Entre os capitães escolhera os melhores, mas nenhum despertara em seu amago interesse real. Nenhum deles merecia ser eterno.

Foi só após vaguear e conversar com cada um dos soldados de Rubrum, transformar cada um dos cento e quinze em Numes, e entregar uma missão para cada um dos outros que não seriam imortais, mas morreriam no serviço da missão eterna, que Arcaia foi encontrada por um cavaleiro errante vestido em trapos com o rosto cheio de uma barba emaranhada.

— Finalmente te encontrei. Ouvi falar que estivesse entre nós, não pude acreditar, estava escondido, imaginei que não pudesse retornar depois do que ouvi, Aetya... ela lhe acusou? Que mulher horrível.

Goevro havia surgido, como se da própria terra, insano. Apaixonadamente insano.

Arcaia não entendia até onde seus poderes haviam corrompido a fraca cabeça daquele homem, mas ele ainda tinha utilidade.

— Você conseguiu o que lhe pedi. Ornannis me encontrou em Rubrum...

— Claro, jamais decepcionaria a ti. — Goevro sequer culpava Arcaia pela morte da esposa, que tanto amava.

Como é conveniente que logo você seja o simplório. Pensou, pedindo para Goevro que ele a levasse, pelos caminhos que usava, para dentro de Caienu.

Goevro primeiro recusou.

— Não deixarei que pise nos esgotos, merece muito mais que desejos.

Mas Arcaia ordenou, e ao receber ordens, Goevro, como bom militar, tinha que obedece-las. Levou Arcaia pelas brechas de Caienu ao interior da cidade. Cidade a qual estava reduzida à metade.

Havia defuntos empilhados, fedendo, nas partes mais pobres da cidade. Cachorros comiam os cadáveres, e até mesmo os sobreviventes se alimentavam do corpo dos que haviam morrido, recaindo ao canibalismo. Não há mais comida para todos.

Arcaia percebeu que Caienu pereceria em breve, mais um ciclo até que a cidade se resumisse à poeira de onde havia surgido. Mas não havia esse tempo para se dispor.

Conforme adentravam os bairro mais nobres, o cenário se transformava e as ruas continuavam como outrora, quando havia estado ali pela primeira vez. Barulhentas, fedidas (mas não de defuntos), com crime e prostituição e jogos de pouca sorte livres para todos.

O que deveria ser o palácio, ou ao menos o lugar aonde residia o Rei Damazo, era o lugar mais cheio. Arcaia encontrou boa proteção ali, como na primeira vez. E Goevro disse que havia demorado mais de vinte dias para conseguir falar com Ornannis pela primeira vez, pois era impossível entrar ali.

Mas Arcaia só precisou pedir por favor!

— Goevro, venha comigo. — Goevro, antes um guerreiro, havia se transformado em um covarde apaixonado. Passou pelos guardas tremendo de medo. Seu medo, Arcaia via, era de morrer e perde-la. Pois todo aquele guerreiro ainda vivia em Goevro, mas o medo de nunca mais ver Arcaia fazia-o ter cautela com a própria vida

— O que precisa que eu faça, só dizer...

— Encontre e proteja Eckat Oisetxi, e independente do que ouvir, continuará protegendo ela até me ver pessoalmente! Vá!

E com isso deixou Goevro.

Uma vez dentro daquela fortificação erguida em paredes de rocha, tijolos e grades de ferro chumbadas na estrutura, Arcaia focou em encontrar o caminho para onde ouviu dizer ser os quartos do Rei Damazo.

Era uma das torres. Haviam quatro.

Arcaia subiu até o topo da torre do rei sem encontrar dificuldade alguma no caminho. Lá em cima, no quarto, havia luxo. A cidade, vista pela sacada, era até mesmo bela. Apesar do fedor conseguir subir até ali.

Dentro do quarto havia mesas com frutas, pães, carnes, legumes cozidos e refogados. Um verdadeiro banquete.

— Quem lhe mandou? É uma das distrações de meu marido? — Arcaia se virou, surpresa, ao ouvir a voz de uma mulher. Era Eva Oisetxi, esposa de Damazo Oisetxi. Era a Rainha.

— Seu marido é minha distração. — Arcaia garantiu olhando a mulher.

— Saia. — Eva disse indo para seu armário enquanto soltava os laços de seu vestido. — E mande esquentarem água. Quero me lavar...

— Tenho certeza que isso não será necessário. — Arcaia disse indo até a porta.

— Petulante, não? Vou mandar te açoitar...

Então Arcaia fechou a porta do quarto com uma pancada e Eva deu um pulo de susto, olhando para ela.

— Bata minha porta uma vez mais e esmagarei sua cabeça no batente...

Arcaia rolou os olhos e com um simples gesto de mão Eva foi jogada contra o armário, a pancada fez a mulher cair inconsciente.

— Insuportável. — Arcaia reclamou, indo à sacada. Então olhou para a cidade. — Todos vocês vão obedecer. Todos irão obedecer. Todos obedecerão. Todos vocês me ouvirão. Todos. Todos vocês...

Continuou repetindo até ouvir a porta do quarto se abrir. Lançou um olhar para trás, e o próprio Rei Damazo quem entrava.

— Todos me obedecerão...

— O que você está fazendo aqui? Quem é você? — O rei perguntou, se aproximando. Arcaia olhando-o com um sorriso triunfante.

— Todos sacaram suas armas.

— Me diga já, quem é você!? — O rei puxou uma adaga de dentro de suas roupas.

— E mataram todas as mulheres! — Arcaia apontou para o armário.

Rei Damazo olhou para trás, para o pé da cama, caída no chão Eva ainda estava desacordada.

— Esfaqueiem todas as mulheres. Matem todas as mulheres. Me obedeçam. Matem todas as mulheres já!

Lá fora, além da escada, dentro das muralhas, e nos acampamentos, todos os guerreiros, todos os homens, todos tinham alguma arma em mão. Dentro das muralhas um banho de sangue acontecia. Do lado de fora os soldados de Kedros apenas olhavam um para o outro, parados pois no acampamento não havia mulheres.

E ali, no quarto, Damazo apunhalava a própria esposa vez seguida de vez com o sangue deixando-o tão vermelho quanto um boi escalpelado.

Arcaia deixou a torre sorrindo ouvindo os gritos das execuções em todos os cantos. E quanto chegou na base da construção encontrou carnificina que não lhe trouxe nada além de contentamento.

Vasculhou corredores e jardins em busca de Goevro, que deveria proteger a única mulher que não deveria morrer. Encontrou-os apenas horas depois quando os gritos já haviam praticamente acabado e os homens estavam parados olhando o que fizeram.

— Aqueles com as mãos sujas de sangue devem se matar. — Arcaia disse, então caiu de joelhos olhando para o chão, sentindo uma pontada aguda de dor. Era seu coração, a magia forçava seu corpo, e o corpo desgastado queria ceder. Agora não. Não é hora. Você aguenta mais. Você aguenta. Com uma careta de dor se colocou de pé. Olhou ao redor no jardim aonde estava Goevro, Eckat e mais alguns homens. — Obedeçam.

E no mesmo instante os homens viraram suas espadas e suas facas contra seus peitos. E no instante seguinte Caienu caiu em silêncio. E havia, de pé, apenas três pessoas ali.

— O que você fez? — Eckat perguntou, aos prantos, para Arcaia.

— Pode se matar, Goevro. — Arcaia pediu para o homem, ignorando a princesa, mas então Goevro não obedeceu. — Morra, Goevro.

— Não lhe verei mais...

— Você me serviu, agora pode descansar...

— Quero servir mais. Servir para sempre, não me deixe, não me faça... imploro...

E na humilhação Arcaia viu que Goevro possuía algo mais intenso que qualquer outro homem. Ele faria tudo para estar ao lado dela para sempre. Goevro era o único que havia se apaixonado talvez de verdade mesmo que por efeito da magia. De alguma forma, quando olhava para o homem, Arcaia via que se perdesse aquele servo, jamais encontraria alguém tão submisso. E do mesmo jeito que precisava de Kedros por sua insubmissão, imaginava que, tal como precisara em Caienu, precisaria de alguém submisso no futuro.

— Goevro. — Arcaia fechou os olhos colhendo a energia do véu enquanto sentia sua perna tremer como se fosse perder as forças e desmaiar. — Me encontre quando acordar.

Arcaia encostou no homem, a energia passou de um para o outro, Goevro despencou, inconsciente. E quando voltasse a acordar, acordaria com olhos vermelhos e vida eterna. E serviria Arcaia para sempre, tal como desejava.

Quando a Eckat, Arcaia olhou para a menina.

— Calma, tudo vai melhorar agora. Tudo irá melhorar!


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