Fluminatte. escrita por Miss B


Capítulo 3
II — Infância, adolescência e lembranças de um casamento arranjado.


Notas iniciais do capítulo

Você tem que ser forte.



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ANTERIORMENTE, EM FLUMINATTE...

“Garth e Rosabelle perdiam seu primogênito em um lago desconhecido em seu próprio palácio."

Após o enterro na cripta da família Valaharis, contaram a Arthur que ele seria o herdeiro ao trono. O garoto pôs a língua para a irmã Alesea. Ele era mais que ela, ele seria o duque. Alesea ficou vermelha de raiva. Veremos, Arthur.”

   Alesea já havia superado a morte de Sebastian. Demorou para aceitar, para parar de se culpar por não ter salvo a vida dele quando teve sua chance. Remoía aquela sensação e aquela lembrança todos os dias, sempre que parava um minuto em silêncio. Sempre que seu pai contava as histórias de seu avô, Sebastian I, o velho do quadro pendurado na parede principal do salão de baile. Garth coçava a barba ruiva sempre que Alesea perguntava o porquê de não ter salvado o irmão. Sempre dizia “Você estava nervosa, ficou em choque, é normal, filha. Não se culpe.” Mas ela se culpava. E muito. E esse era o problema de Alesea. Ela pensava demais e fazia de menos.

   Foram meses para conseguirem que fizessem-na sair do quarto do jardim, seu quarto, onde se trancava por dias apenas esperando as servas lhe servirem comida e água. Era o que volta e meia acontecia. Uma dama batendo-lhe à porta para entregar-lhe frutas, perguntar se queria água, ou leite, ou um suco. Ela sempre dizia que não, até a fome apertar e ela ser obrigada a aceitar.

   Assim que ela conseguiu se libertar da paranoia, recebeu a notícia de que havia outro irmão a caminho. Anthony já tinha um ano quando Abraham nasceu, os cabelos negros da mamãe e os olhos castanhos da vovó. Gene recessivo, deveria dizer, já que os olhos azuis de mamãe e os olhos verdes de papai não se manifestaram, como nos outros filhos. Alesea se afeiçoou a Abraham como com mais ninguém. Ele era inteligente. Aos quatro meses, já andava no cercadinho, já sabia identificar quem eram seus irmãos.

   Um ano depois, já com nove anos, nasceu Ariel, a menina ruiva, os cabelos da cor dos de papai, e ela era muito parecida com Annabeth. Não tão inteligente quanto Abraham, não audaciosa como Arthur. Não preguiçosa como Anthony, o quarto mais velho. Ela era doce, seus olhos transmitiam alegria apenas em estar enxergando.

   Aos onze anos, nasceu Alaska, a menina de cabelos acobreado-escuros, olhos azuis e rosto pequeno e delicado, como uma flor. Mas Deus sabe que de flor não tinha nada. Aquela garota só tinha espinhos, mas bem lá dentro, um brotinho crescia calmamente.

   Aos doze, Anelise, a outra ruivinha. Ela era tão parecida com o pai que só um idiota para negar. Nem Arthur tinha essa semelhança, e lhe diziam que sempre foi o filho mais parecido com o pai fisicamente. Seu caráter era repugnante.

   Mamãe passou um pouco mal depois do nascimento de Anelise. Ficou alguns dias de cama, Alesea ainda lembra. Ela sangrou demais, ficou fraca e pálida. Os filhos e principalmente o marido ficaram preocupados. Rodeavam-na de coisas, de ervas medicinais eram feitos chás para a duquesa. Trina, a dama de honra de Rosabelle, colocou a filha mais velha, Trinity, para trabalhar e ajudar a mãe a curar a governante da província. A menina virou amiga de Alesea. E curou sua mãe.

   O médico disse ao duque secretamente que ela não poderia mais engravidar. E, se acontecesse, seria de alto risco. A criança poderia morrer, ou pior: Rosabelle poderia morrer. Horrorizado, Garth assentiu, se precisasse nunca mais transar com sua mulher, o faria. Para que ela pudesse viver uma vida longa ao lado dele, e ver sua menininha ruiva crescer e correr pelo Palácio da Crista. Queria que ela visse Alesea crescer e virar uma adulta como ela, doce e gentil, e queria que ela visse Arthur ganhar a coroa quando Garth morresse ou ficasse fraco demais para continuar. Queria que visse os filhos se casando, e que envelhecesse de um jeito sereno. Queria que seus olhos azuis fossem os últimos a se fechar para o além-túmulo.

[...]

   Era o aniversário de quinze anos de Alesea. Sua irmã mais nova, Anelise, tinha 3 anos. O palácio estava em festa. Alesea usava um vestido roxo e rosa confeccionado diretamente de Fürstair, como presente de Alois, também presente na festa.

   — Espero que tenha gostado do vestido. — disse Alois, sorrindo. Seus olhos já mostravam algumas rugas. Seus olhos cansados desbotavam sua cor azul. Tinha uma bengala adornada em sua mão. — Demorou pra conseguir um com suas medidas. Você é toda delicada.

   Alesea deu um sorriso para Alois, amigo da família havia tantos anos. Sua mulher, Gwinevere, estava ao seu lado, de mãos dadas com Marie, a menina de dez anos, filha do casal. Estava grávida novamente. Sua barriga parecia saltar fora do vestido, e seu cabelo loiro estava preso em fios dourados como seus cabelos.

   — Está perfeito, e é lindo. Obrigada, Alois, Gwin, Marie. — a menininha deu um sorriso à Alesea. — E bebê. — tocou na barriga de Gwinevere, que deu uma risada.

   A festa era pra Alesea, mas ela sentia-se mais sufocada que homenageada. Todos fingiam se importar especialmente com ela, e uma montanha de presentes caros agora atolava seu quarto. O único que estava ali só para beber era Arthur. Encostado na mesa de vinho, segurando uma taça desajeitadamente, piscava para as damas que passavam de um jeito muito cafajeste.

   Dada uma brecha para a aniversariante, saiu. Levantou-se de seu trono ao lado da mãe, e foi ao jardim, onde encontrou um garoto sentado em um banco branco. Tinha olhos esverdeados, cabelos negros. Assim como ela, parecia sentir-se sufocado. Ela o observou atentamente. Quem seria ele? Cerrou os olhos para observá-lo melhor. Pelo tom de pele, ele não é de Lakeland ou Norta. Deveria ser de um lugar onde havia mais sol. Alesea deveria estar parada sem movimento algum, pois o garoto a percebeu. Sorriu para ela.

   — Sente-se mal? — ela tentou disfarçar, chegando mais perto dele.

   Relatou a mesma que se sentia bem mas que tinha a cabeça nas nuvens, na verdade em qualquer outro lugar do mundo além da Europa. A presença da jovem foi como uma âncora para seus pensamentos. Fixado e olhando pra ela, proferiu-lhe com sensatez:

   — Um baile tão cheio de gente vazia pra um aniversário de alguém tão cheia de coisas boas... Sempre me falaram muito bem de ti, donzela, mas o que me abala é que dentre tantas pessoas lhe prestigiando, nenhuma com seus presentes ou fala tenta realmente corteja-la.

   Findou sua frase e alcançou o cotovelo a altura dos ombros enquanto a mão deslizava pelas vestes azul marinho, onde retirou um pedaço de pedra talhada e entregou a aniversariante.

   — Não é uma joia que brilha, não tem destaque, mas é justamente opaca pra que a tua beleza seja a ser saudada.

   A tarde vinha para continuar a festa, e queria logo tomar um ar fresco. Convidaria ela uma vez que não estivesse lidando com os estorvos dos outros convidados. A menina baixou os olhos, dando um pequeno sorriso em resposta. Fez uma reverência ao mesmo, pegando a pedra e observando-a.

   — Vou guardá-la com carinho. — olhou para ele. — Qual seu nome, milorde?

   Respondeu enquanto se direcionava ao parapeito dá sacada afim de tomar um ar, entonado forte no início e espirando ao final:

  — Lorde Tessier! Tomarei-um-ar Tessier! — disse brincando.


   Tentou convidá-la com os olhos, e quando se virou, o vento fez com que a roupa fizesse forma para frente, abrindo os braços de forma convidativa. Pensou ao mesmo tempo que encontrou a forma dela a sua vista como ela era linda. Alesea deu uma risada, subindo com dificuldade no parapeito ao lado dele. O vestido e o sapato dificultaram.

   — Lorde Tessier, é uma honra! — ela gritou através do vento para que ela lhe fosse clara. Olhou para a névoa. — Filho dos Tessier de Fürstair?

   — Caso existam outros, me informe, odiaria não saber que tenho parentes longe de mim. — deu uma risada. Seu sorriso não era bonito, mas tinha um quê de graça. — Prazer, Kevin Tessier.

   — Alesea Valaharis. Ao seu dispor. — fez outra mesura assim que saiu do parapeito.

   Kevin olhou para o céu, e logo para Alesea.

   — Perdoe-me, preciso ir.

   — Vai tão cedo? — ela respirou fundo, dando de ombros levemente.

   — Se não partir logo, não volto homem, senão um velho ríspido, ou pior: nem volto. Não concordo com isso, eu me sinto inútil quando não trabalho. Acho a vida nobre bonita, mas um tanto entediante. A próxima vez peço a uma criada para fazer necessidades por mim, tamanha futilidade encontra-se nos serviços que nos prestam na maioria das vezes. Aristocracia fede. — Kevin cuspiu para o lado contrário de onde estava Alesea. — Mas eu estudarei lá por um bom tempo. Tentarei voltar, casado de preferência.

   A menina assentiu, olhando para o céu nevoento, sem proferir palavra. Tinha pensado em como seria legal casar com ele. Mas todas as suas oportunidades, pensamentos e sonhos tinham acabado. Respirou fundo, ainda em silêncio.

   — Mas sou novo ainda, posso mudar de ideia. Você daria uma noiva muito bonita, quem dera houvesse alguém para cantar todas as manhãs pra mim. — Alesea olhou para ele com um “como você sabe?” estampado no rosto. — Duque Alois. Enfim, me focarei em ajudar os outros. Sem aquelas coisas de... Adulto, sabe?

   Ela assentiu novamente. Durante aquela noite, eles dançaram juntos no salão. Alois estava de camarote, sorrindo ao ver os dois passando em dança. Não demorou muito, o pai de Kevin, um senhor parrudo e com barba enorme e castanha apareceu atrás dele, pigarreando. Kevin assentiu, e logo se despediu de Alesea com um beijo em sua mão.

   — Volte pra mim, o.k.? — ela olhou ele nos olhos. — Prometa.

   — Não posso prometer. — suspirou, olhando levemente para Alois. — Me escreva.

   — Como saberei onde está?

   Mas Kevin começou a se afastar sorrindo. A aniversariante seguiu seu olhar anterior e olhou para Alois, que ergueu sua taça à ela.

   O resto da noite foi tão chata quanto o começo dela, sem Kevin. Ao final da última dança, Rosabelle chamou sua filha para lhe contar uma coisa: estava grávida novamente. Alesea não sabia se sorria ou chorava. Tinha medo, tinha muito medo.

   E nove meses depois, seu medo se confirmou.

   — Alesea! — Rosabelle bordava quando sentia sua bolsa estourar e uma dor horrível começar. — Alesea, chame seu pai!

   Em instantes, Garth levou a esposa até o quarto, onde parteiras já esperavam. Alesea ficou a mãe, segurando sua mão enquanto ela gritava em agonia. O pai não teve coragem de ficar, e saiu para ficar com os filhos. Ele não estava bem, mas não deixava isso transparecer. Sua vontade era chorar. Mas não o fazia. Dizia aos filhos que ia ficar tudo bem, e que logo teriam seu irmão nos braços. Um ruivinho, ou um moreno como a mãe?

   O grito final de agonia da mãe se deu no momento em que o menino nasceu.

   — É um menino! — as parteiras comemoravam e sorriam, enquanto a cor do rosto de Rosabelle desaparecia.

   Alesea sorriu para a mãe abertamente, indo pegar o pequeno que chorava no colo da parteira.

   — Veja, mamãe! É um lindo menino! — ela pôs o bebê nos braços da mãe, que deu um sorriso curto e esforçado.

   — Alec. — disse a duquesa, olhando para os olhos do filho. — Alec, eu... te abençoo... em nome do Pai... — ela levantou a mão para fazer-lhe o sinal da cruz, quando seu braço tombou ao lado do corpo, seus olhos fecharam e seu último suspiro foi dado.

   — Mãe! — Alesea gritou, mas a mãe não atendeu. Pegou o menino que chorava nos braços soltos do corpo da progenitora. — Mãe!

   Alec voltou a chorar abertamente, balançando-se no colo de uma Alesea que chorava. Afastou-se do corpo da mãe, vendo as parteiras tentarem recuperá-la, sem sucesso. As lágrimas dela gelavam seu rosto quente. Olhou para os olhos do novo irmão, Alec, enquanto ouvia o pai abrir a porta com um sorriso e fechá-la com lágrimas.

   — Rosabelle! — ele mancou até a cama, segurando o corpo inerte da esposa, abraçando-a, soluçando. — É minha culpa, querida, eu fiz isso com você, me perdoe, querida...

   Mas Rosabelle não respondeu. Nunca mais.

   Alesea olhou para o bebê Alec, que parou de chorar ao olhar nos olhos da irmã. Eles tinham uma semelhança imensa, Alesea e ele. Ela tocou na testa dele.

   — ...do Filho. E do Espírito Santo. Amém. — beijou a testa do irmão, enquanto os irmãos entravam chorando e sentavam nos pés da cama da mãe.

   Alesea deu meia volta para sair dali, e tombou com Arthur, que não parecia nenhum pouco abalado. Estava encostado na porta, os braços cruzados. Seus olhos pararam no lençol ensanguentado que agora cobria Rose.

   — A vida é passageira e a morte é uma carruagem, né? — olhou para a irmã mais velha. — Só falta o papai e, bum, eu sou o duque!

[...]

   Foi difícil dizer adeus. O enterro de Rosabelle não foi aberto a todos. Os governantes das outras províncias foram convidados, mas os de Fürstair não compareceram. Alois, Gwinevere, Marie e o bebê, Nicolai, ficaram em casa. Não achavam mais forças para encarar a morte. Filip havia morrido uns meses antes.

   Os restos mortais da duquesa de Lakeland foram guardados na cripta ao lado da de Sebastian.

   Assim que Alesea chegou em casa, escreveu uma carta para Kevin, contando o que havia acontecido. Carta, essa, que nunca foi respondida.

   No primeiro ano, Alesea entrou na vibe de uns amigos, filhos de nobres de Lakeland. Começou a fumar ópio junto com eles, entrar em “festinhas”, dar-se aos meninos que participavam. Os drogados e bêbados com que convivia se chamavam John, Luke, Julie e Martin.

   Até John morrer, intoxicado pelo ópio e o vinho, Alesea permaneceu indo a festinhas, levando Arthur junto, praticando incesto. Então ele morreu. E ela parou. Eles pararam.  

   Foram dois anos difíceis, principalmente para Garth e Alesea. O pai estava tão imerso em si mesmo que nunca realmente cuidou de Alec. A obrigação foi passada para Alesea, que cuidou do mesmo sem nem perguntar duas vezes. Ele era um tipo de filho para ela. Ela o salvou quando ele tentou correr (e quase caiu) na escada. Ela o protegeu do inverno. Ela o guardou quando a gripe atingiu Lakeland e levou seu pai, que morreu sozinho, tossindo, sentado de frente para o quadro no quarto que era do casal, onde estava uma Rosabelle sorridente e um Garth carinhoso.

   Quando pressionado a assumir o cargo de duque no lugar do pai, Arthur recuou e fugiu. Um covarde, no mínimo. Alesea se viu obrigada a tomar providências sérias, mas Anthony, o outro menino na sucessão após Arthur, tinha apenas 11 anos. E ela, com 18, decidiu que faria o que fosse necessário para proteger os irmãos.

   Foi aproximadamente um ano e meio para que os trâmites da igreja fossem liberados para que Alesea casasse com seu pretendente, um garoto de Norta, filho de um lorde rico e poderoso que lhe pagou metade das terras para que ele fosse um duque importante. Seu nome era Samuel Heartmid, 21 anos, casou com uma Alesea de 19.

   Os dois concordaram em não consumarem o relacionamento até que lhes fosse ordenado um herdeiro. E assim foi.


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