Olhe nos meus olhos escrita por Kikyo


Capítulo 3
Marshmallow e Chocolate




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Eu não sei... Qualquer coisa eu te ligo mais tarde” – foi a resposta ao meu telefonema animado. E eu não gostei do “qualquer coisa” , odeio “qualquer coisa” de todos os jeitos possíveis, eu quero que se dane o “qualquer coisa”. Mas quando uma mulher quer acreditar que existe amor onde não existe, passamos por cima de “qualquer coisa”. Respondi que tudo bem e fui para casa com aquele vazio geladinho no peito, que nada mais é do que seu corpo lhe mandando spoilers sobre uma dor não tão delicada que está por vir. “Furada, corra”, mas não. Não corri. E fiquei esperando um telefonema, sendo mais sadomasoquista do que a fã mais fervorosa do Mister Grey. Eu esperei. E esperei. E esperei.

Mary rivas

 

 

Regina andava de um lado para o outro na sala, olhar perdido no nada.

— Vai fazer um buraco no tapete. - Mariana observou.

— Compro outro. Preciso redecorar essa casa mesmo. - Regina colocou as mãos na cintura— Já está anoitecendo e nada de notícias! Caramba!

— Calma mãe. - Jesus desligou o Xbox— Será igual na série que eu vi, em que uma loira, à noite, trás o filho perdido de volta pra casa em um fusca amarelo.

— Se sua mãe aparecer aqui com um fusca, eu separo dela.

— Isso não é hora pra brincadeiras, Jesus. - Blandon falou observando sua mãe nervosa.

— Eu sei, quero apenas tirar um pouco dessa tensão. A gente conhece a Lara à 24 horas, mas isso não abstrai a preocupação dela ser criança, então... - Deu de ombros

Regina olhou ao redor. Seus três filhos estavam com ela na sala. Não faziam nada além de estarem ali, compartilhando a angústia do silêncio das notícias. Sim, isso é família, ficar junto mesmo que não possa fazer nada. Entre eles não há a fase de perguntar se a presença era incômodo ou acréscimo, apenas ficavam ali.

 

 - Desculpa gente. Só estou nervosa.

 

— Vai dar tudo certo, mãe. Ela é pequena, mas é esperta.

— O problema é exatamente esse Mariana,  ela é pequena.

 

O telefone tocou.

— Você quer me matar, Emma?!

 

— Depende, qual o valor do seu seguro de vida?

 

— Não estou pra brincadeiras, tem notícias? - Regina falou ríspida.

 

— Não teria ligado se não tivesse. - Emma respondeu no mesmo tom, odiava a rispidez da esposa.— Um caminhoneiro entrou em contato com a polícia, uma garota estava pegando carona na estrada. Estão em outra cidade.

 

— Aí meu Deus, que perigo. - Regina passou a mão pelos cabelos, olhando atônita o chão.

 

— Ela é uma criança, desconhece esse perigo. - Respirou cansada— tenho que ir buscá-la.

 

— Josh vai com você?

 

— Ele não é mais meu parceiro, amor. Te falei que ia trocar - Soltou o ar tremido.

 

— O que aconteceu, Emma? O que você aprontou?

 

— Não aprontei nada.

 

— Posso ver você coçando a nuca e  sorrindo nervoso daqui. Não minta pra mim, você sabe que odeio isso.

 

— Merda. - Respirou fundo, as vezes sua esposa a conhecia bem demais - Killian pediu pra ser meu novo parceiro.

 

— Espero que você não tenha aceitado. - Regina batia o pé no chão nervosa, mão apertando a cintura.

 

— Não sou eu que decido isso, você sabe. - Emma estava na defensiva, não queria brigar, mas não estava gostando do tom agressivo de Regina.

 

— Ele é seu ex marido, pai do nosso filho. - Respirou fundo, aquele não era o momento de discursões— Quando você chegar falamos sobre isso. Você está indo viajar sozinha com o Killian?

— Amor, calma. Ele irá ficar cuidando das papeladas, apenas eu vou buscá-la, está sendo tratado como caso pessoal pelo departamento, algo como "perder a filha no parque", não deu 24 horas desaparecida ainda.


— E você vai sozinha? - Soou venenosa, as vezes não controlava o ciúmes.

— Você quer que eu vá ou não? - Emma quase gritou, perdendo a paciência.

— Quero… - Regina decidiu amansar o tom, mesmo que seu interior estivesse fervendo de raiva. Não era hora de briga. - Quero querida, desde que você volte. Me ligue o tempo todo com notícias... - Franziu a testa pensativa— apenas quando não estiver dirigindo. E não coma besteiras.

— Não vou

— Estou ouvindo o som do pacote de hambúrguer daqui, Swan - Levantou a sobrancelha, adorava fazer isso com a esposa.

— É... Te manterei informada.

— Não sairei de perto do telefone.

— Já não ta saindo faz horas - Jesus gritou, recebendo um olhar feio da mãe. Mas Regina sorriu ao ouvir a risada de Emma.

***

Quando Emma recebeu a notícia que Lara estava no hospital, seu coração perdeu uma batida, não percebeu quando a preocupação com uma estranha ficou tão forte. Se acalmou apenas quando falaram que Lara estava apenas visitando uma pessoa.

 

— Amor, -  ligou para Regina— Lara está bem. Está no hospital APENAS visitando alguém.

 

— Quem?

 

— Não sei ainda… - abriu sua Pepsi - Estou tomando água com gás - justificou o barulho— Vou entrar agora na recepção pra saber mais detalhes desse “alguém”.

 

— Obrigada querida. Me deixe informada. E Emma… Você não bebe água com gás.

 

Swan sorriu indo a recepção, como era difícil enganar sua esposa. Mostrou o distintivo - como se precisasse devido a farda- pegou os papéis e subiu ao terceiro andar, de escada pra queimar as calorias do refrigerante. Entrou no quarto indicado  e paralisou.

Lara estava deitada na cama, acolhida a um garoto de no máximo 12 anos. Sem demora olhou os papéis,. Mesmo sobrenome. Só poderiam ser irmãos.

 

Vagarosa entrou no quarto, havia outros pacientes, todos dormindo em suas camas solitárias.

Se aproximou dos irmãos e tocou de leve o braço esquerdo do rapaz, o direito estava engessado.

O rapaz de cabelos claros abriu os olhos, primeiro assustado, depois contente. Um brilho de reconhecimento passou por sua íris azul.

 

— Você deve ser Emma, a policial. A salvadora da Tigra. - Sorriu

 

— Apenas sequei ela. - Olhou Lara agarrada ao irmão— Que bom que ela fala com você. Conosco é só silêncio.

 

Abraçou mais forte a irmã, como se a protegesse— Ela só está com medo, já passou por coisas demais. - Olhou Lara— Já perdeu coisas demais. Uma criança não deveria passar por essas coisas.

 

Emma olhou aquele pequeno homem, ainda era uma criança, mas parecia disposto a dar a vida pela irmã. Ele também havia passado por coisas demais. Realmente, crianças deveriam não passar por tantas coisas.

 

— Cuida dela. - Ele pediu, surpreendo Emma. - Quando sair daqui vou pra algum orfanato e nao vou poder ajudá-la. Cuida dela. Ela merece um lar.

 

— E você? O que merece?

 

— Mereço que ela fique bem. Eu me viro. - Tentou sorrir...

 

— Foi você que colocou fogo na casa, Nicholas?

 

— Foi meu padrasto. - Sussurrou como um segredo— Ameacei contar o que ele fazia e ele quis nos silenciar, como nos filmes. - Arregalou os olhos e olhou para os lados. Emma deu um passo a frente, mostrando que estava ali, que estava tudo bem. Nico se acalmou.

 

O padrasto quis apenas não ter mais nenhum peso, nada que o prendesse. Típico do narcotráfico latino, Emma pensou, olhando os irmãos abraçados. Era de certa forma dolorido ter que separar os dois. E era mais dolorido imaginar o que eles haviam passado, ambos carregavam esse semblante de medo. Crianças não deveriam conhecer o medo e a violência tão cedo.

 

— Farei uma ligação e já volto. - Emma anunciou, saindo do quarto.

 

***

 

Já era noite, Lara e Emma estavam sentadas em algumas cadeiras do corredor do hospital, aguardando a chegada de Regina. O teto já havia deixado de ser interessante há algum tempo, no entanto, nenhuma conversa conseguia ser mantida.

 

Emma teve uma ideia que Regina desaprovaria com certeza. Foi à máquina e pegou dois chocolates quente e em outra pegou um pacote de marshmallow. Assistiu com satisfação a empolgação e o arregalar de olhos da menina.

 

Conversaram amenidades e beberam do seu chocolate um pouco, mas a menina não olhava nos olhos de Emma, estava encolhida, olhos no chão. Culpa. Era sinal de culpa.

 

— Tudo bem se sentir triste por não estar com seu irmão. Tristeza é uma força que pode fazer pessoas decentes fazerem coisas ruins. Mas, não faça mais isso, ok? É muito perigoso. Você sozinha, caminhoneiros…

 

— Eles estavam indo pro mesmo lugar que eu, que tem demais dar carona?

 

Emma observou os olhos inocentes de Lara, realmente ela não via maldade   que tantos vivem diariamente. Teve vontade de guardá-la num potinho e levar no bolso, protegê-la do mundo.

 

— Existem pessoas ruins, Lara. - Emma abaixou a cabeça, olhando seu copo. - Muitas pessoas ruins no mundo. Eu trabalho com isso, proteger pessoas boas de pessoas ruins.

 

— Não tinha uma pessoa como você pra proteger minha mãe. Uma pessoa que protege pessoas boas. - Quase nao conseguiu terminar a frase, sua voz sumiu

 

Emma lembrou do que leu no relatório, mais uma vítima do tráfico. Há muitas vítimas do tráfico, poucas são inocentes como a mãe daquela menina, que agora chorava.

Abraçou Lara, que se encolheu em seu abraço, como se buscasse proteção. 

 

— Já faz seis meses e essa dor não passa. - Lara falou entre soluços.

— Perdi meu pai há dez anos. As vezes parece que faz anos, às vezes parece que foi ontem. - Abraçou Lara mais forte, compartilhava sua dor— Não vou dizer que a saudade irá diminuir ou que você irá parar de imaginar que quando chegar em casa ela estará lá, te esperando.
Mas posso dizer que se você não pensar nela o tempo todo, não quer dizer que você a esqueceu, que não se importa.

— Tem certeza? - Olhos molhados encararam Emma.

— Tenho. Porque as pessoas que se foram só estão realmente mortas quando  esquecemos o quanto elas foram boas. Do que fizeram por nós, ou até mesmo o que fizemos por ela. É assim que as pessoas nos marcam, nos tocando com seus atos.

— Então, não vou esquecer, tenho muitas lembranças boas.  Mas... as vezes evito falar da minha mãe. - Apertou os lábios com os dentes.

— Por que dói?

— Porque os outros não agem normal

 

Os outros agem indiferente, Emma pensou, como se a nomeação da pessoa que você tanto amou e não está mais por perto fosse um tabu ou nada demais. Enterramos nossos mortos e fingimos que eles nunca existiram— Te entendo, mas não precisa ter medo de falar dela, as pessoas precisam saber o quanto sua mãe foi boa.

— Você conta lembranças do seu pai pras pessoas?

 

Emma afirmou com a cabeça, um turbilhão de memórias a atingiu.

 

— Conta uma. - Lara se empolgou, sentando novamente no banco.

— Me conta uma sua que eu conto uma do meu pai.

— Hum - pensou— Meu minha mãe me deu um elefantinho que agarrava na blusa, como um abraço. Era pequeno, broche, eu acho que é o nome. E ele veio com a Tigra. Então, no mesmo dia ela comprou um shampoo de elefante e ela passava em mim. Lembro dos seus dedos no meu cabelo, do cheiro de maçã.

— O perfume da Regina é de maçã com canela, por isso você chorou com ela no banho?

— Vou ter que ir embora e, Regina me lembra tanto minha mãe. Não quero ir embora, é como perder mamãe de novo. E isso dói. É difícil até respirar. - olhou por alguns instantes Emma, a analisando — Agora é sua vez de contar.

— Meu pai gostava muito desse chocolate com leite e marshmallow - mostrou o copo de plástico fumegante.— Viemos de uma cidade muito fria, diferente dessa aqui. As vezes sentávamos em frente a lareira e falávamos de tudo e nada ao mesmo tempo. E ele sempre roubava um marshmallow de mim.

— Seu pai era legal?

— Muito. você ia amar conhecê-lo

— Ele amava você?

— Muito. Quando o amor te toca uma vez, você sempre o reconhece. Ele te marca de alguma forma e te muda. Por isso você consegue amar uma esposa ou esposo, ou filhos...

— Por que ficou séria? O amor não era pra ser uma coisa alegre?

— É apenas saudade.

— Você quer me contar.

— Não vale a pena, sabe por que? porque você tem razão. O amor é pra ser uma coisa alegre. - Emma roubou um marshmallow de Lara que gargalhou, escondendo seu copo.

É isso ai. É assim que as crianças devem ser, alegres e sorridentes, mesmo as que sofrem. O riso afasta as coisas ruins ou simplesmente, faz elas serem menos pesadas, pensou Emma.

— Por que pegou o meu? Tem mais lá - Lara sorria escondendo seu copo.

— Por que o seu ta mais perto. E se Regina perguntar, comemos sanduíche natural com suco de laranja sem açúcar.

 

Lara riu mais uma vez.

Todos possuem passado, e alguns, jamais saberemos o pretérito.  Não que todos tivessem um passado de tristezas, mas, passado, sim, todos os tinham. Se pudermos ao menos deixar o presente mais leve e alegre, talvez haja esperança para o futuro. Emma pensou, brincando de tentar roubar outro marshmallow.


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Notas finais do capítulo

Sei que da vontade continuar lendo, e ficar parando assim é o ó (falo por experiência, pego um livro e nao largo ate terminar) mas, se possível. Deixe um comentário