“Eu posso morrer a qualquer momento”

As palavras de Ravena abriram um momento de confusão e descrença naqueles presentes na enfermaria, visíveis ou não.

Escondido, Garfield Logan na forma de um pequeno besouro verde sentia um soco emocional que com certeza doía. Toda aquela conversa que tiveram na madrugada... ela já sabia que ia morrer. Ele não sabia, mas queria saber. Ali, no cômodo branco, ele se arrependeu ainda mais de falar sobre Terra e seu coração partido, já que um problema ainda maior estava sentado ao seu lado no telhado. Durante todos aqueles anos, ele não conseguia evitar o sentimento devastador que era perder, ou ainda encarar a possibilidade de perder um de seus amigos. Eles só haviam escolhido a carreira errada para isso.

Richard Grayson, sentado ao lado da maca da amiga, não sabia o que sentir. Sua experiência com emoções era comparável com as de Ravena. Não que ele fosse proibido de sentir, como ela. Bruce Wayne, o morcego de Gotham, o treinara bem o bastante para se controlar, embora houvesse uma certa brecha quando se tratava de raiva. Ele sabia o que era perder alguém. Seus pais, o seu “irmão mais novo”, Jason Todd, chegou perto de perder sua amiga, Bárbara Gordon, mas tudo aquilo era fruto de fatores completamente externos aos indivíduos. O caso de sua amiga titã parecia ser muito diferente. Mas ele não sabia o que era, ou como agiria. Não. Só sabia que precisava extravasar o fogo que queimava seu estômago.

Foi preciso menos de um minuto para o líder titã explodir com aquela que se declarara em uma situação arriscada:

— Você sabia disso e saiu em missão, se colocando em risco dessa forma?! Você é impossível, Ravena! – Ele gritou, sua preocupação lhe tirando do eixo. Ravena olhou para Dick, sem saber o que dizer. Se fosse uma situação normal, ela iria revidar no mesmo tom. Aquela não era a situação de “você não fez o que eu disse para você fazer”. Aquela era a primeira vez que admitia em voz alta o que estava acontecendo.

— Pensei que não seria papo de líder, Richard. – Ela disse, sem tirar os olhos dele, a gravidade do assunto estava muito bem estampada em seu olhar. Ela sabia que tinha se colocado em condições terríveis. Só não sabia que se usasse sua magia iria se desgastar tanto. Mas ela não precisava ouvir aquilo, ela sabia exatamente o que estava fazendo.

— Não é, e você sabe! Como pôde ser tão...?! – Ele, então, parou de falar. Ao ver os olhos ametista pesados de saber, sabia que não era o momento de explodir, por maior que fosse sua preocupação com a amiga. Se queria ajudar, precisava saber o que estava acontecendo. - Por quê?

Mutano, ainda chocado, ouviu a pergunta. Sentiu uma espécie de alívio. Não o alívio de “vai dar tudo certo”. Era o alívio de “finalmente vou saber”. Não que mudasse algo, porque saber nem sempre era bom. Ele havia descoberto aquilo ali mesmo, descobrindo que sua amiga estava morrendo. Mas se tem uma coisa que ele tinha aprendido na vida de combatente de crime é que saber poderia levar a soluções. Ele tinha esperança.

A voz rouca da empata cortou o ar:

— Qual o motivo da minha vida ser como é? Você sabe a resposta. – Ela não queria dizer o nome e sabia que não seria necessário, não com Asa Noturna. Ele mesmo não ousaria dizer o nome.

O besouro verde também sabia. Poderiam duvidar de que ele tinha lógica para entender, mas após entrar acidentalmente na mente de Ravena e após experimentar na pele o quase fim do mundo, não tinha como desassociar o problema de Trigon, o demônio conquistador de mundos. Também conhecido como pai de Ravena. Só de pensar nele sentia medo e, naquela situação, o medo era da perda.

— O que ele quer dessa vez? – Dick perguntou, firmemente. Lembrando-se dos eventos que seguiram o décimo sexto aniversário da empata, sabia que aquilo provavelmente não era apenas sobre ela. Algo ruim aconteceria.

— A mesma coisa que da última vez. – Ela desviou o olhar do amigo, com a lembrança. Falar daquilo só tornava toda a situação real. Ela não queria que fosse real. Ninguém gostaria que aquilo tudo fosse real.

— Você vai...? – Ele sabia que ela deveria ter morrido da última vez e que algo, para a completa sorte da equipe, deu errado na passagem de Trigon para o mundo deles, fazendo com que Ravena se tornasse uma garotinha. Uma garotinha privada de seus poderes.

— Não eu. Outra pessoa, que ainda nem nasceu. Nós não podemos coexistir. – Não era difícil pensar na sua própria morte, pelo menos não tão difícil como imaginar outra criança passando pela vida que ela passara. Além de colocar seus amigos e o mundo a mercê da fúria de seu pai mais uma vez.

— Para outro portal nascer, você tem que... – Ele continuava olhando para ela, mesmo que ela não retribuísse. Não quis dizer a palavra e não teve de dizer. Ela assentiu silenciosamente em resposta.   - Não há nada que possa ser feito?

— Eu não sei. – Voltou a olhar para ele. - Sei que existem pessoas que podem me esclarecer sobre isso. – Os nomes que passaram em sua cabeça haviam olhado para ela quando ela chegara na terra. Não houve demora em sentir que existia algo maligno em Ravena. Ela não os julgava por não terem ajudado, mas precisava deles.

— Quem? – Os olhos de Richard brilharam em esperança. Queria saber os nomes, para poder ajudar também. Garfield, por outro lado, não precisava saber quem eram essas pessoas, desde que qualquer coisa pudesse ser feita para mudar o destino de Ravena.

— Essa é a parte que é difícil. – Os rapazes não sabiam como dizer quem eram as pessoas que poderiam ajudar, ser mais difícil para ela. Ravena, por outro lado, só queria poder descobrir o que fazer de outra forma. - Se eu quiser saber, eu vou precisar de tempo. E eu não sei quanto eu tenho. – Nada na vida dela acontecera sem que sacrifícios fossem necessários. Alguns eram muito piores que outros, mas o daquele momento trazia tristeza. - Preciso deixar os titãs.

Aquilo era diferente do que ela havia afirmado para Garfield. Ela já havia pensado nisso. Ela já sabia que deixaria os titãs. Não adiantava o quanto qualquer um questionasse ou protestasse, a decisão já estava tomada.

— Ravena... – Richard não esperava que chegasse àquele ponto. Mas, não teve tempo de falar algo para convencê-la a ficar. Ela não queria permitir que nada a tentasse a agir de outra forma.

— Eu vou poder me dedicar somente a descobrir uma forma de parar... isso. – A realidade era aquela, se permanecesse na torre titã mas não pudesse agir como titã, enquanto faria pesquisas que funcionariam muito melhor pessoalmente, sua atenção não estaria necessariamente na pesquisa. Cada ferimento, cada risco que seus amigos corressem em missão, seria um lembrete a ela: você não pode fazer nada. - Richard, se tem algo que você entende melhor que qualquer um...

— Eu sei. – Dever. Responsabilidade. Assuntos pessoais. Enfrentar seus próprios demônios. Era um fato conhecido a qualquer um da equipe que Richard e Ravena eram parecidos. - Quando você parte? – A pergunta deixou clara que não havia objeção da partida dela.

— No máximo em três dias. – Ravena respondeu. Se Garfield estivesse em forma humana, já estaria suspirando. Não podia acreditar que a amiga ficaria tão poucos dias na Torre antes de ir embora.- Há tempo de encontrar alguém para ocupar meu lugar.

— Essa conversa é sobre você, não os titãs. – Dick disse, sua voz, embora soasse com seriedade, tinha pinceladas de carinho, pouco perceptíveis. Ser precisasse dizer adeus, não seria diferente daquilo. - Nós precisamos que mantenha contato.

Para Garfield aquilo era mais do que óbvio. Sumir completamente do mapa quando você pode morrer a qualquer momento parecia um movimento digno de Ravena. Sem informações, não saberiam se ela estava viva ou morta. Aquela era uma agonia em que ele apostava que nenhum dos titãs estava disposto a experimentar.

— Eu entendo. Mandarei e-mails de tempos em tempos. – Objetiva, olhava para Dick em gratidão.

— Ótimo. – Olhou diretamente para Ravena uma última vez antes de colocar a máscara no rosto, cobrindo seus olhos novamente. - Quando pretende contar aos outros?

— Só vou avisar sobre essa viagem. – Não queria que eles soubessem. Salvar o dia todos os dias já era o bastante sem ter um membro da equipe morrendo. Problema dela, ela lidaria.

— Então, só Gar e eu vamos saber a verdade? – Ele perguntou, a sobrancelha escura levantada por achar bem pouco usual que ela contasse um segredo ao metamorfo verde.

Este mesmo metamorfo sabia a verdade. E ele sabia também que se sentia magoado por ela não dizer tudo aos amigos. Embora, novamente fosse algo esperado, vindo de Ravena. Quantos anos ela escondeu sua origem e seu destino antes do ocorrido com Trigon? Mesmo assim, ele considerava essa atitude errada.

— Só você. – Ela corrigiu Richard, sem conhecimento de que o titã verde os espionava. - Garfield só sabe que eu penso em deixar os Titãs. – Ela olhou pela janela para ver Jump City na luz do meio da tarde. Ainda olhando para o vidro, pode ver seu próprio reflexo translúcido. - Eu não quero que eles saibam a verdade.

— Eles são sua família. Nós somos. – Richard colocou a mão no ombro dela. Não era como se ela não confiasse neles. Só não queria ser a pessoa que trazia um sentimento de impotência aos heróis. Para pessoas como eles, impotência tinha um poder de tirar a moral e enche-los de dúvidas.

— Eu sei. – Ela voltou a encará-lo, firme. Era o modo de dizer que não contaria a verdade e aquela era sua última palavra.

Depois de um pouco de silêncio, como em sincronia, os rapazes sentiram que era o momento de deixar a enfermaria.

Mutano silenciosamente se aproximou da porta, mas ainda podia ouvir tudo:

— Eu vou chamar o Vic, certo? – Ouviu quando Dick se levantou e se virou para sair pela porta.

— Certo. – E quase foi descoberto. - Richard? – Se não fosse por Ravena, que o chamou. - Obrigada.

E foi a última coisa que Garfield ouviu antes de se rastejar para seu próprio quarto com o pesar do saber em sua consciência.