Jailbreak escrita por Bruna


Capítulo 1
Enfim, liberdade.


Notas iniciais do capítulo

Avisos dados. História não indicada para pessoas sensíveis.
Aproveitem a leitura ♥



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t=0

Local: origem – topo da ponte.

 

Foi em um momento assim que tudo começou.

Não lembro quando; não sei o porquê. Só aconteceu.

Estava eu sentada em uma sala de espera de algum profissional. Um médico? Advogado? Não tenho certeza. As paredes eram creme com rodapé azul bebê. Minha irmã ao meu lado, sua barriga já tomando forma.

É claro, é a sala de espera de um médico... para a minha irmã e seu embrião indesejado.

Ela estava em desespero – o rapaz a chantageou para estar aqui. A família não deu apoio, ninguém queria aquele bebê. Ofereci minha companhia a ela, uma mão para segurar. Sinto que esse momento deveria me despertar alguma emoção, porém...

Nada.

Vejo o sofrimento nos olhos dela; sei que ela deseja que eu interrompa o que ela está prestes a fazer – já que ela mesma não consegue encontrar forças para fazê-lo. Mas não posso. Não consigo.

Seguro sua mão após ela sair da sala de “cirurgia” (açougue seria o termo mais correto). Ela chora copiosamente enquanto aguardamos ela se sentir bem o suficiente para irmos embora.

— Sinto muito. – Digo-lhe, numa tentativa de conforto. Minha voz está sem emoção alguma.

Eu deveria sentir algo.

Deveria esboçar alguma reação. Algum tipo de solidariedade verdadeira. Oferecer algum conforto sincero.

Mas a única coisa sincera em mim, naquele momento, era a apatia.

A mesma apatia que sinto nesse momento, enquanto encaro a queda de – se as medições estiverem corretas – 30 metros.

São 30 metros até um rio turvo.

30 metros até a esperança de conseguir sentir algo de novo.

 

t = 0,8s

Local: aproximadamente 3,14m do ponto de origem.

 

Até agora, ainda não senti medo.

O vento acaricia minhas costas, o céu brilha em um azul doentio. Não há nuvens, não há pássaros, não há barulho.

Minto.

Há gritos.

E, agora, há também um medo infantil.

Tento fazer a lembrança voltar para o fundo da minha mente... Mas ela está aqui, diante dos meus olhos.

Debaixo desse mesmo céu azul.

 

E então, tenho sete anos novamente.

Estou brincando com minhas bonecas no pátio de casa. É um dia abafado, o céu está limpo, não há vento. Minha mãe foi para a cidade e deixou meu tio cuidando da minha irmã – nessa época, com dois anos – e de mim.

“Estrelinha” – ela disse, antes de sair – “Voltarei logo. Qualquer coisa, seu tio está aqui para cuidar de vocês duas”.

Como qualquer criança confia em seu tio, eu confiei no meu.

Confiei quando ele me chamou para dentro de casa e nos trancou lá dentro.

Confiei quando ele disse para ir até o quarto de minha irmã.

Confiei quando ele fechou a janela e trancou a porta do quarto.

Confiei quando, com uma voz doce, ele disse “meu bem, tire essa roupa. Está quente”.

Confiei quando ele disse que “está tudo bem, o titio não vai te fazer mal”.

E quando ele tirou a roupa.

E me pediu para tocá-lo.

E quando me agarrou pelos braços, me jogou na cama e me penetrou.

E então, eu gritei.

E ele me bateu.

E eu sangrei, e chorei, e implorei a Deus para que aquilo acabasse logo.

E me desesperei. Ele é meu tio... por que me machuca tanto?

E, então, ele acabou. Comigo.

“Que tal deixarmos isso como nosso segredinho, estrelinha?” – Disse, vestindo-se. – “Eu odiaria ter que incluir sua irmã nessa nossa brincadeira tão cedo”.

E sangrei. E doeu. Não só fisicamente.

 

t=1,3s

Local: 8,3m da origem.

 

Por anos fui vítima daquele homem. Cada vez mais machucada, cada vez mais invadida, cada vez mais menosprezada.

Com 13 anos, o agredi. Mordi seu pênis, o fiz sangrar uma parte de todo sangue que ele me tirou em tantos anos.

Nunca vi minha mãe gritar tanto.

Comigo.

Por provocá-lo.

Por ser essa pequena putinha que machucou seu doce e adorado irmão.

Por ser essa vadia oferecida que o provocou até ele não resistir a seus “instintos carnais”.

Por ser uma prostituta que não seria nada na vida. Uma manipuladora que só queria atenção. Uma desgraçada que tentou destruir a família. A filha ingrata que não pensou na sua mãe.

E vi, nos olhos da minha irmã, gratidão.

E, no meu peito, uma ânsia de matar aquele filho da puta.

E o céu continua azul. E o medo foi embora.

Ele não pode nos encontrar do lugar onde está.

Ele não pode mais me machucar. Nunca mais.

Nunca.

 

t=1,7

Local: 14,16m da origem.

 

O tempo é relativo.

Tenho certeza que Einstein não fez a pesquisa dele para chegar uma entusiasta e dizer que o desprezível e infinitesimal tempo da existência dela aqui nessa rocha é relativo.

Mas parece que estou caindo há horas.

Detalhes desinteressantes da minha adolescência já passaram pela minha mente. Uma vida no meio do nada. Tentando reconquistar o amor de minha progenitora.

Tentando conquistar o respeito dos outros adolescentes.

Tentando mudar aquele rótulo de puta que ganhei graças àquele certo familiar.

Tentando sumir em meio ao sangue das minhas próprias veias, escondida no banheiro da escola, trancada no meu quarto, deitada naquela mesma cama que mantém uma mancha de sangue impregnada no colchão. Uma lembrança constante daquele primeiro dia. Do primeiro abuso de tantos outros que se sucederam.

Uma adolescência usando casacos e blusas longas mesmo no calor. Tentando passar despercebida, tentando esconder quem eu era.

Tentando acabar com a dor.

 

Falando em dor... lembrei-me da primeira vez que senti um alívio de tudo isso.

Devia ter meus 15 anos.

Havia uma garota nova na escola. Ela sorriu para mim no primeiro dia. Disse “bom dia” no segundo.

Sentou ao meu lado nas aulas.

Conversou comigo uma semana depois.

Contou-me sobre sua vida. Mostrou-me algo pelo qual valia a pena viver.

Eu a aceitei. A deixei entrar e me conhecer.

Linda. Seu nome era Linda.

Seu sorriso era como um fio de luz no meio de toda a escuridão.

Seus olhos, um ponto colorido em um mundo repleto de tons de cinza.

Sua voz era como ouvir o som da própria esperança.

É claro que a amei. Amei-a mais do que a mim mesma, em muitos momentos.

Ela limpou minhas feridas. Cicatrizou meus cortes – até mesmo os mais profundos.

Era como minha própria morfina, doses perfeitas. Acabava com a dor. Eu conseguia viver, conseguia respirar, conseguia sentir.

Mas, assim como qualquer medicação, em certo ponto ela se tornou droga.

Viciei na sua presença, no seu sorriso, na sua voz. Precisava dela a cada segundo ao meu lado. Sem ela, eu não era nada.

E, assim como todas as outras pessoas, quando contei a ela o que sentia... Ela se afastou.

 

Boba, como eu fui, achei que sua amizade era amor romântico. Cometi o erro de me apaixonar pela única amiga verdadeira que tive em anos.

Tinha que me desintoxicar da presença de Linda.

E não foi algo fácil.

Fiz coisas das quais me envergonho profundamente. Persegui-a. Não aceitei seu relacionamento com um homem. Culpei-a por toda a dor que voltei a sentir.

Não se preocupe, Linda. Isso tudo vai acabar. Falta pouco.

 

t=2,29s

Local: 25,7m da origem. Poucos milissegundos para impacto.

 

Meus monstros nunca estiveram debaixo da cama. Nunca se esconderam no escuro, não me traziam solidão. Eles me faziam companhia, me deixavam em pânico, destruíram minha sanidade lentamente, pedaço por pedaço, ao longo dos anos.

O trabalho deles sempre foi minucioso – não deixavam nada intacto.

E eu construí uma fortaleza com eles.

Paredes de medo, móveis de ódio, sombras de paixão. Na minha fortaleza ninguém penetrava.

Exceto uma pessoa. Minha irmã.

 

“Nicole,” – ela dizia – “não culpe os outros por você ser alguém... diferente. Nosso tio pediu desculpas. Ele se arrependeu. Por que você mantém esse rancor por ele?”

Ela não entendia. Era muito nova quando tudo aconteceu.

“Ele me fez coisas, Nicole. Ele me tocou, mas nunca passou disso. Me dava doces para que não contasse à nossa mãe. Às vezes, nos piores dias, eu tinha que tocá-lo... e certa vez ele gozou em mim. Você lembra, não lembra? Você foi quem me limpou”.

Coloquei as mãos no rosto para esconder as lágrimas.

“Eloisa... Não fale sobre o que você não sabe”. – Era o que eu sempre dizia. Mas nada a parava.

Ela me conhecia muito bem. Ela sabia de tudo. Como colocar para fora da sua vida alguém que você fazia de tudo para proteger?

 

Depois de algum tempo, ela parou de insistir. Nossa relação foi sendo destruída conforme os anos passavam.

Me afastei da família. Fui embora na primeira oportunidade.

Mas Eloisa... Sempre voltava por ela. Bastava uma ligação.

Como a ligação que recebi há algumas semanas.

Ela estava em desespero. Seu namorado estava chantageando-a para fazer um aborto. Ele não queria filhos e sumiria no mundo assim que ela quisesse continuar com “aquela história”.

Chorando, implorou para que eu a acompanhasse até a clínica. Nossa mãe estava querendo expulsá-la de casa. Nossa família inteira virou as costas para ela.

E eu, claro, era a escolhida para estar com ela nesse momento.

Acolhi-a em meu apartamento. Levei-a até a clínica. Deixei-a em casa dois dias depois do procedimento.

Hoje recebi outra ligação dela.

 

“Nicole?” – Não era a voz de Eloisa.

“Sim? Quem fala?”

“Nicole, você matou Eloisa! Por que fez isso? Não bastava ter destruído nossa família com aquelas mentiras sobre seu tio? Voc-“

O telefone caiu de minhas mãos.

Vi meu mundo ruir em poucos segundos. Minhas muralhas caíram por terra. Minhas motivações para sobreviver não existiam mais.

E, no auge da dor, lá estava: nada.

A apatia.

A sensação de que estou ocupando espaço.

De inutilidade.

De desperdício.

E a apatia consegue ser pior que a dor.

 

t=2,47s

Local: 30m do ponto de origem.

Impacto com a água a 87,3km/h.

 

O ar é expulsado dos meus pulmões com o choque na água. Sinto uma dor lascinante nas costas, como se tivesse quebrado alguma coisa.

E começo a afundar.

Enquanto sinto a água doce queimando minhas vias respiratórias, vou perdendo a consciência.

A útilma sombra de pensamento que tenho é o rosto de minha mãe, antes eu sair da casa dela.

“Talvez você devesse se matar”.

Espero que você esteja feliz, mãe.

Sorrio, finalmente livre dessa prisão.

 

...

 

Laudo de Exame de Corpo Delito

EXAME NECROSCÓPICO

Hora da morte:

Entre 12h e 14h do dia 03 de janeiro de 2017.

Causa da morte:

Afogamento.

Detalhes secundários:

Perfuração pulmonar causada por costelas quebradas devido ao impacto com água. Foi encontrado sangue nos pulmões da vítima.

Identificação:

Desconhecida.

Local do sepultamento:

Desconhecido.

Discussão e conclusão:

Não haviam sinais de violência física. Tudo aponta para um caso de suicídio. Vítima não portava documentos. Se o corpo não for reclamado em até 48h, será sepultado em cemitério público sem identificação.

 

— É uma pena – O responsável pelo necrotério disse, em voz alta. – quando a Jane Doe é tão bonita... E eu não posso fazer nada.

Ele acariciou o rosto da jovem, cobriu-a com um lençol branco e empurrou-a para sua gaveta.

— Espero que ninguém venha identificá-la, Jane. Quem sabe assim podemos nos divertir um pouco antes de entregá-la aos vermes.


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Notas finais do capítulo

Já sabem. Reviews?



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