Victor Frankenstein escrita por Broken_Watch


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Se desejam uma sugestão de música, eu escrevi ao som de Reason (Presence of Music - http://www.presence-of-music.com/cn13/cn24/reason.html) então acredito que seja uma boa.



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Londres, 1880.

Dois tiros. Foi o que bastou para ceifar a vida de Kiku Honda, fruto de uma tentativa de roubo falha nas ruelas da capital. O ladrão escapou com seu revólver, mas deixou um imenso vazio no peito do acompanhante do japonês, Arthur Kirkland. O loiro pegou o moreno nos braços, ainda incrédulo com o que aconteceu, sacudindo o corpo sem vida atrás de uma resposta em vão. As lágrimas começaram a descer do seu rosto, enquanto pensava numa maneira de explicar o falecimento para os familiares dele, em sua primeira visita ao ocidente.

Certamente seria responsabilizado por isso. E a culpa iria persegui-lo. “Não, jamais! Jamais...!” O inglês estremeceu, carecendo de bom senso. Subitamente se lembrou dos seus livros de ocultismo – e neles, tinha esperança que algum feitiço ou ritual realizasse o milagre de soprar vida no corpo vazio de Kiku Honda. Sendo assim, carregaria o corpo sozinho até os porões de sua casa.

Depois de um torturoso jeito de abrir sua casa e chegar até o porão pela inexperiência de fazer isto com alguém nos braços (geralmente ele era a pessoa carregada, pelos exageros com bebidas), finalmente colocou o japonês em uma cadeira, ajeitando-o adequadamente. Se não fosse as marcas de tiro no peito – um fatal em seu coração – qualquer um poderia pensar que na verdade, Kiku estava apenas dormindo.

Arthur apenas conseguiu suspirar frente a esta ironia, logo depois se sentando e pondo-se a pesquisar noites a fio enquanto se lembrava de quando se conheceram. Uma vez, pelo seu trabalho, teve de viajar para o Japão e morar por 1 mês. E apesar do encanto com a cultura oriental, sua adaptação teria sido difícil sem Kiku. Muito introspectivo e quase inacessível, ele era um habitante que fazia um enorme contraste com o inglês e mesmo assim eles partilhavam experiências e formaram um laço que até o momento de partida, nenhum dos dois conseguiu traduzir e descrever. Ao menos, antes de partir, o sentimento de saudade os fez trocar endereços, e desde então se tornou a principal forma de comunicação entre os dois. Demorou muito, até que finalmente Arthur entendeu o que sentia pelo japonês... Amor.

Descobrir-se apaixonado por alguém há quilômetros distante de ti, e ainda do mesmo gênero, era um assunto extremamente delicado. Tão delicado que quase chorou de alegria ao descobrir que no final das contas, era um sentimento recíproco. A êxtase do momento levou Arthur cometer o que ele considera agora o maior erro de sua vida: Convidar o japonês para conhecer Londres. O inglês rangeu os dentes em frustração.

No terceiro dia, o corpo de Kiku começou a demonstrar sinais de deterioração – era a morte avançando mais rápido que a pesquisa do inglês. A putrefação que parecia mais uma zombaria irritava-o profundamente. E nem era o cheiro de carne podre em si... Mas sim o fato de que seu amado de tornou algo efêmero, sem vida. Ao quarto dia, entretanto, Arthur estava desgastado e não conseguia mais avançar. Sua única solução parecia sair daquele cômodo deprimente e tomar um pouco de ar. O som do tiro ouvido na madrugada daquele roubo pareceu ter se tornado uma fofoca entre os moradores da região, mas o loiro não conseguia nem focar em escutar os boatos de seus vizinhos. Tudo parecia turvo e sem nexo, até que no meio de tudo, notou estar de frente a uma vitrine de livraria. E um dos livros em destaque, sem dúvida, era Frankenstein.

 “Frankenstein...” murmurou Arthur, procurando a história em suas memórias. Aos poucos, se lembrou de Victor Frankenstein, querendo ultrapassar Deus e confeccionando uma criação viva. O resultado, entretanto, era de longe o esperado. Infelizmente, teve de suspirar ao lembrar que o que tentou realizar em seu porão era praticamente o que tentara fazer com Kiku. “O erro de Victor foi começar uma criatura do zero...” ele se defendeu em busca de seus atos serem dissociados aos dele. Mas após pensar a fundo, descobriu uma nova forma de dar vida ao japonês. Arthur sorriu, voltando até sua casa correndo.

As partes mais degradadas eram o peito, unhas e olhos. Com cuidado, ele deitou o moreno em uma mesa gigante perdida no meio dos entulhos. Além da mesa, achou agulha, pinça, fio, tinta e um par de olhos de vidro (que ele comprou há muito tempo atrás em caso de ser obrigado a substituir um por uma razão qualquer). E com as habilidades que tinha e um pouco de sorte, começou uma cirurgia para cuidar das partes deterioradas do corpo. Arthur perdeu um dia inteiro removendo as balas, fechando feridas, pintando as unhas com tinta e trocando olhos reais pelos de vidro. Entretanto, aquilo era... Reconfortante. O resultado final deu ao moreno um aspecto melhor, com apenas a pele pálida contrastando com aquilo tudo. O inglês abraçou o corpo morto, e assim retomou ao seu trabalho de pesquisa.

Depois de uma semana, aquilo se tornou rotina. Pesquisar uma forma de ressuscitá-lo, consertá-lo, quase podia se sentir íntimo de Kiku – talvez mais do que quando se conheceram. Vestiu-lhe um terno que usava quando mais novo para que as manchas de sangue sumissem de vez. Todo esse cuidado muitas vezes quase o levava aos prantos ao ter um leve deslumbre de como seria viverem juntos; tê-lo em sua rotina, observando seu jeito introspectivo, mas que guardava um coração de ouro... Quem sabe, poderiam até se casar?

 “Ah, é verdade...”

O loiro abriu uma das gavetas de sua mesa de escritório e achou um porta-joias. Pegou-o com cuidado e abriu, revelando apenas para si dois anéis de ouro. Alianças. Sim, Arthur Kirkland estava tão certo de seu futuro que inclusive comprara as alianças... De algo que jamais acontecerá. Ele expirou todo seu ar, pensativo com o que fazer agora que todos seus sonhos morreram. E sabia que no fundo, jamais amaria alguém como amou Kiku Honda. “Injusto...” concluiu fechando o porta-joias.

Porém – para a surpresa até dele –, não teve coragem de retornar o objeto à gaveta. Depois de alguns momentos de hesitação, sua atitude foi outra: Levantou-se de lá e dirigiu-se até o japonês. Receoso, ajoelhou-se perante o cadáver e abriu o porta-joias, simulando um pedido de casamento. Arthur declamou seu discurso que preparou durante um bom tempo e colocou o anel no dedo anelar esquerdo do moreno. Logo depois, fez o mesmo em si. Um grande período de silêncio reinou na sala até que o inglês engoliu em seco e teve outra ideia doentia (era óbvio que questionaria sua própria sanidade mental depois disso). Ele buscou de sua sala de estar um fonógrafo – presente do seu amigo Alfred – e colocou uma valsa para tocar. Inseguro com sua ideia, pegou o cadáver de Kiku e ajeitou-o de forma que conseguisse tanto sustentar o corpo como dançar com ele. Aos primeiros passos, o inglês riu. Seu riso era falho e um pouco lunático, realmente chegara a este ponto? A dor da perda foi tanta que tinha que transformar seu amado em uma boneca? Todavia, aos poucos, a música foi entorpecendo a razão do loiro e no final, tudo que restou foi um louco descrente de sua condição dançando com seu amado boneco.

...

Um mês. Foi o que bastou para que todo aquele estranhamento inicial desaparecesse, e Arthur começasse a tratar Kiku quase que como seu esposo. Se algo maculasse a aparência dele, logo era costurado, trocado, escondido. Uma roupa nova a cada três dias, e longas conversas sem réplica. Arthur abriu de sua sanidade em troca de preencher o vazio do seu futuro estilhaçado – esta era sua ideia de nova vida, ao menos provisoriamente. Cegou-se tanto ao ponto de sequer perceber que seus vizinhos notaram um comportamento muito estranho. Cegou-se tanto que nem percebeu que aquelas pessoas ao redor mandaram um telegrama para seu melhor amigo, Francis Bonnefoy, para inspecionar a casa pessoalmente. E infelizmente, o dia chegou.

O tocar de campainha pareceu o tirar de um transe. Arthur se desesperou, pensando quem era e o porquê de estar lá. Mesmo com a respiração pesada, ele tentou aparentar tranquilidade, e prosseguiu até a porta. Francis entrou de supetão, fingindo ser uma “mera passagem por Londres” e se sentou no primeiro sofá que viu. Aquilo deixou o inglês profundamente irritado. Afinal, ele não mandou qualquer tipo de telegrama, não questionou se podia entrar e ainda chega esparramando-se na sala? Cerrando os punhos e ao ponto de expulsá-lo só por estes atos, fechou a porta a contragosto e se sentou em outro sofá.

A conversa que era rasa e apenas servia como desculpa para puxar assunto tomou outros ares quando Francis notou o anel dourado que por uma desventura Arthur esqueceu de tirar. De um jocoso sorriso e diversas perguntas sobre qual razão um anel caríssimo estaria no dedo anelar esquerdo, o tom foi tornando-se desconfortável conforme o inglês se recusava a falar. O francês notou que desta vez, ao mesmo tempo que ele escondia algo, também estava disposto a não cair em provocação alguma para confessar algo. Sabendo disso, ele aceitou as desculpas esfarrapadas e saiu, mas comentou os resultados com os vizinhos, extremamente preocupado com a condição mental de Arthur, mesmo que jamais fosse saber o que era.

Depois da tentativa de confissão, o inglês correu e abraçou seu boneco com força, tenso por quase ter sido descoberto. Londres não era mais segura para ele e seu esposo e faria o possível para fugir daquela cidade o mais rápido possível, algo que levaria dois ou três dias, considerando os custos e a forma que deveria transportar Kiku.

...

Dois, três dias. Foi o que bastou para que depois da visita do francês, crescesse um mutirão alimentado por boatos que se transformaram em uma verdadeira calúnia. A acusação popular era que Arthur Kirkland convidou um imigrante japonês e o matou a tiros. E um dos objetivos desse mutirão era achar o corpo do tal imigrante e levar o assassino às autoridades. Arthur estava nesse momento no porão, arrumando as últimas coisas para sair e pela distância não escutou o arrombar de portas, mas era inevitável ficar intrigado com um monte de passos apressados pela sua casa, esperando que fosse só impressão. Ao abrir a porta do porão, entretanto, viu-se terrivelmente enganado.

 “Ele está aqui! Pegue-o!” cinco ou seis pessoas se jogaram para agarrar o loiro. E por mais que se debatesse, elas o seguraram firme. Seu coração disparou. Para seus próprios conhecidos agirem assim, significava que algo estava muito errado. Não sabia se com ele ou com eles, mas agora temia por sua segurança – e a de Kiku. Mais uma tentativa de se desvencilhar, bem quando alguém que desceu o porão gritou em terror fazendo todos os demais descerem.

A cena de ver um corpo morto sendo prolongado artificialmente chocou muitos. Várias vaias ao inglês eram escutadas, tais como interjeições delineando a insanidade dele, e até uma comparação com Frankenstein. E essa comparação era a última gota para concluir a grande calúnia: Arthur Kirkland, um louco que quis imitar Victor Frankenstein, matou um imigrante japonês em busca de imitar a horrenda criação do livro.

O inglês negava aquilo com toda a força. Lágrimas copiosas de desespero pelo mal entendido rolavam, sequer poderia contra argumentar ao seu favor. As caras de nojo e desgosto julgando-o era o pior, e nem conseguia ver o rosto de Kiku, com tantas pessoas analisando o corpo – uma delas, por pura raiva, jogou o cadáver no chão, levando o loiro a tentar se desenvencilhar uma última vez, em vão. Ele gritou pelo nome de Kiku, entretanto a voz falhou para dar lugar unicamente ao choro, de cabeça baixa. Foi então que ouviu o barulho de uma arma sendo engatilhada. E assim entendeu perfeitamente o que fariam. Ele ergueu a cabeça apenas para ver o revólver apontado para sua testa. Ele fechou os olhos.

“Alguma última palavra, necrófilo?”

“Não...”

“Ótimo.”

Um tiro. Foi o que bastou para tirar a vida de Arthur Kirkland, culpado por assassinar Kiku Honda e ainda manter seu corpo para prazer próprio. Porém, com um pouco de força de vontade, em seu último suspiro, ele conseguiu chegar até o cadáver do japonês e segurar sua mão esquerda.

Ao menos, quem sabe, agora ele teria seu tão amado futuro.


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Notas finais do capítulo

Críticas construtivas são bem-vindos, e elogios mais ainda! Espero que tenha gostado - ou ao menos, que não tenha sido uma perda de tempo.



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